COMENTÁRIO B BLICO
7
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COMENTÁRIO BÍBLICO
BEACON ECLESIASTES
LAMENTAÇÕES STEPHEN
J.
BENNETT
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S'GOSPEL
GERÊNCIA EDITORIAL E DE PRODUÇÃO Gilmar Chaves
GERÊNCIA EDITORIAL E DE PRODUÇÃO Jefferson Costa
Ecclesiastes Lamentarions New Beacon Bible Commentary / Stephen J. Bennett /
©2010 Published by Beacon Hill Press of Kansas City, A division of Nazarene Publishing House. Kansas City, Missouri, 64109 USA This edition published by arrangement
with Nazarene Publishing House. All rights reserved. Copyrigh © 2016 por Editora Central Gospel.
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
COORDENAÇÃO EDITORIAL Michelle Candida Caetano COORDENAÇÃO DE COMUNICAÇÃO E DESIGN Regina Coeli TRADUÇÃO Elias Santos Silva
REVISÃO Maria José Marinho CAPA E
PROJETO GRÁFICO Eduardo Souza IMPRESSÃO E ACABAMENTO Gráfica EGB
Autor: BENNETT, Stephen J. Titulo em português: Novo Comentário Bíblico Beacon: Eclesiastes e Lamentações Título original: Ecclesiastes Lamentations New Beacon Bible Commentary Rio de Janeiro: 2016 312 páginas ISBN: 978-85-7689-492-6 1. Bíblia - Teologia I. Titulo II. É proibida a reprodução total ou parcial do texto deste livro por quaisquer meios (mecânicos, eletrónicos, xerográficos, fotográficos etc.), a não ser em citações breves, com indicação da fonte bibliográfica. Este livro está de acordo com as mudanças propostas pelo novo Acordo Ortográfico, que entrou em vigor a partir de janeiro de 2009.
Nota do editor no Brasil: Com o objetivo de facilitar a compreensão do co¬ mentário original, em alguns casos, a Central Gospel fez traduções livres de termos e palavras em inglês que não encontram equivalência nas versões ofi¬ ciais do texto bíblico traduzido para o Português. Ressalte-se, todavia, que foram preservadas a ideia e a estrutura textual idealizadas pelo autor.
1a edição: Julho/2016
Editora Central Gospel Ltda Estrada do Guerenguê, 1851 - Taquara Cep: 22.713-001 Rio de Janeiro - RJ TEL: (21) 2187-7000 www.editoracentralgospel.com
DEDICATÓRIA Eclesiastes 9.9:
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A Christi
EDITORES DO COMENTÁRIO Editores gerais
Alex Varughese Ph.D., Drew University Professor de Literatura Bíblica Monte Vernon Nazarene University Mount Vernon, Ohio
George Lyons Ph.D., Emory University Professor do Novo Testamento Northwest Nazarene University Nampa, Idaho
Roger Hahn Ph.D., Duke University Reitor do Corpo Docente Professor do Novo Testamento Nazerene Theological Seminary Kansas City, Missouri
Editores secionais
Joseph Coleson Ph.D., Brandels University Professor do Antigo Testamento Nazarene Theological Seminary Kansas City, Missouri
Kent Brower Ph.D., The University of Manchester Vice-reitor Palestrante Sénior de Estudos Bíblicos Nazarene Theological CollegeManchester,
Inglaterra Robert Branson Ph.D., Boston University George Lyons Professor Emérito de Literatura Bíblica Ph.D., Emory University Olivet Nazarene University Professor do Novo Testamento Bourbonnais, Illinois Northwest Nazarene University Idaho Nampa, Alex Varughese Ph.D., Drew University Professor de Literatura Bíblica Mount Vernon Nazarene University Mount Vernon, Ohio
Jim Edlin Ph.D., Southern Baptist Theological Seminary Professor de Literatura Bíblica e Línguas
Coordenador do Departamento de Religião e Filosofia MidAmerica Nazarene University Olathe, Kansas
Frank G. Carver Ph.D., New College, University of Edinburgh Professor Emérito de Religião Point Loma Nazarene University San Diego, Califórnia
SUMÁRIO Prefácio dos editores gerais
II
Agradecimentos
13
Abreviações
15
ECLESIASTES
21
Bibliografia de Eclesiastes,
23
INTRODUÇÃO A ECLESIASTES
29
A. Autoria
30
B. Data
32
C. Lugar de origem
37
D. Público, ocasião, propósito
37
E. Questões sociológicas e culturais
38
E História textual e composição 1. Texto 2. Cânone 3. Composição
39 39 39 40
G. Características literárias 1. Gênero 2. Estilo linguístico 3. Estilo literário 4. Estrutura
40 40 41 41 42
H. Temas teológicos
45 45
1. Vaidade de vaidades 2. A soberania de Deus 3. Limites da sabedoria e da justiça 4. Doutrina da retribuição e limitações 5. Proveito e porção
46 47 47
ó. Prosperidade e contentamento 7. Ética
49 49
48
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON
SUMÁRIO
4. Interpretação wesleyana
50 50 51 51 52
J. O uso litúrgico de Eclesiastes
52
I. Questões hermenêuticas 1. Diversidade de interpretação 2. Como lidar com as contradições 3. História interpretativa
....55
COMENTÁRIO DE ECLESIASTES
I. Vaidade de vaidades (título e tema) (1.1,2) A. Título (1.1)
56
B. Tema (1.2)
57
II. Não há lucro no trabalho (prólogo) (1.3-11)
61
A. Ninguém deixa um saldo positivo (1.3)
62
B. Nada muda (1.4-8)
65
C. Nada é novo, nada é relembrado (1.9-11)
70
—
III. Fui rei em Jerusalém (introdução) (1.12 2.26)
.75
A. Estudei e pesquisei (1.12-18)
77
B. Experimentei o prazer e a riqueza (2.1-11)
84
C. Experimentei a sabedoria (2.12-16)
90
D. Comecei a desesperar-me (2.17-23)
92
E. O que fazer? Desfrute! (2.24-26)
95
IV. Um tempo para tudo (3.1-22)
99
A. No tempo de Deus (3.1-8)
101
B. O que fazer? Desfrute! (3.9-22)
107
(Um tempo de julgamento [3.16,17]) V. O que é melhor? (4.1-16)
6
55
111
117
A. É melhor não nascer (4.1-3)
118
B. É melhor o pouco com alegria (4.4-6)
120
C. Não há contentamento (4.7,8)
122
D. Melhor é serem dois do que um (4.9-12)
123
E. Melhor é ser pobre, porém sábio (4.13-16)
124
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON
SUMÁRIO
VI. Que as suas palavras sejam poucas (5.1-9)
129
A. A conduta diante de Deus (5.1-7)
130
B. A opressão e a justiça (5.8,9)
133
—
VII. As limitações da riqueza (5.10 6.9)
137
A. Não há satisfação (5.10-12)
138
B. Um grave mal (5.13-17)
141
C. Contentamento (5.18-20)
142
B’. Mal (6.1-6)
143
A’. Não há satisfação (6.7-9)
146
—
VIII. As limitações da sabedoria (6.10 7.14) A. A soberania de Deus: os homens não têm a presciência (6.10-12) B. Não despreze o passado/presente por causa do futuro (7.1-4)
(A sabedoria ainda é valiosa [7.5,6]) C. A sabedoria é limitada (7.7)
B’. Não despreze o futuro/presente por causa do passado (7.8-10)
(A sabedoria ainda é valiosa [7.11,12]) A’. A soberania de Deus: goze a vida (7.13,14) IX. O juízo, a retidão e a sabedoria são elusivos (7.15-29)
149 ....150 152
...154
... 155
155
157
...158 161
A. O juízo é elusivo (7.15- 18)
162
B. A justiça é elusiva (7.19-22)
165
C. A sabedoria é elusiva (7.23,24) D. Existe o juízo; a justiça e a sabedoria são superiores (7.25-29) X. Os dias dos ímpios não serão longos (8.1-17) A. A soberania do rei (8.1-9)
B. O mistério da retribuição (8.10-15) C. A soberania de Deus e a limitação da sabedoria (8.16,17) XI. O mesmo destino sobrevém a todos (9.1-18) A. O mesmo destino para o justo e o ímpio (9.1-6)
... 166
... 167
173
174
... 178 181
185 187
7
SUMÁRIO
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON
B. Desfrute a vida (9.7-10)
189
C. O sucesso é imprevisível (9.11,12)
191
D. Os resultados da sabedoria são imprevisíveis (9.13-18)
192
XII. Moscas no perfume (10.1-20)
197
A. A tolice pode suplantar a sabedoria (10.1-7)
198
B. Os resultados podem ser imprevisíveis (10.8-15)
200
C. Os benefícios de um rei sábio (10.16-20)
202
—
XIII. Lança o teu pão sobre as águas (conclusão) (11.1 12.7)
207
A. A generosidade (11.1,2)
209
B. O conhecimento é limitado (11.3-6)
211
C. A felicidade na juventude (11.7-10)
212
D. Lembre-se do seu Criador (12.1-7)
215
XIV. Palavras agradáveis (tema e epílogo) (12.8-14)
225
A. Tema: vaidade de vaidades (12.8)
226
B. O valor da sabedoria (12.9-12)
227
C. O temor a Deus e a justiça (12.13,14)
229
LAMENTAÇÕES
233
Bibliografia de Lamentações
235
INTRODUÇÃO A LAMENTAÇÕES
239
8
A. Autoria
239
B. Data
240
C. Local de origem
241
D. Ocasião
241
E. Propósito
242
F. Questões sociológicas e culturais
242
G. História textual e composição
243
H. Características literárias 1. Gênero
244 244
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON
2. Estilo linguístico 3. Estilo literário
I. Temas teológicos 1. O sofrimento 2. A soberania de Deus 3. O sofrimento é resultado do pecado 4. O arrependimento 5. A esperança COMENTÁRIO DE LAMENTAÇÕES
SUMÁRIO
245 245 248 248 249 249 249
249 251
I. Poema um: como está deserta (1.1-22)
251
A. Como está deserta a cidade (1.1-11)
252
B. Veja o meu sofrimento! (1.12-22)
260
II. Poema dois: a nuvem da ira de Deus (2.1-22)
269
A. A nuvem da ira de Deus (2.1-12)
270
B. O que posso dizer-lhe? (2.13-19)
275
C. Veja, ó Senhor! (2.20-22)
.277
III. Poema três: eu sou o homem (3.1-66)
,279
A. Eu tenho visto a aflição (3.T20)
280
B. Fé, esperança e amor (3.21-36)
284
C. Nós pecamos e nos rebelamos (3.37-54)
288
D. Ouça a minha petição! (3.55-66)
291
IV. Poema quatro: o ouro perdeu o brilho (4.1-22)
295
A. O ouro é tratado como barro (4.1-9)
296
B. Os profetas e os sacerdotes derramam sangue (4.10-16)
298
C. Procuramos ajuda em vão (4.17-22)
299
V. Poema cinco: lembra-te, Senhor (5.1-22)
303
A. Lembra-te, Senhor! (5.1-18)
304
B. Restaura-nos, Senhor! (5.19-22)
307
9
PREFÁCIO DOS EDITORES GERAIS
O propósito do Novo Comentário Bíblico Beacon é tornar disponível a pas¬ bíblico do século 21 que reflita a melhor cultu¬ ra da tradição teológica. O projeto deste comentário visa tornar essa cultura acessível a um público mais amplo, a fim de auxiliá-lo na compreensão e na proclamação das Escrituras como Palavra de Deus. Os escritores dos volumes desta série, além de serem eruditos na tradição teológica e especialistas em suas áreas de atuação, têm também um interesse es¬ pecial nos livros designados a eles. A tarefa é comunicar claramente o consenso crítico e o amplo alcance de outras vozes confiáveis que já comentaram sobre as Escrituras. Embora a cultura e a contribuição eruditas para a compreensão das Escrituras sejam as principais preocupações desta série, esta não tem como ob¬ jetivo ser um diálogo acadêmico entre a comunidade erudita. Os comentaristas desta série, constantemente, visam demonstrar em seu trabalho a significância da Bíblia como o Livro da Igreja e, também, a relevância e a aplicação contempo¬ rânea da mensagem bíblica. O objetivo geral deste projeto é tornar disponível à Igreja e ao seu serviço os frutos do trabalho dos eruditos que são comprometidos com a fé cristã. A Nova Versão Internacional (NVI) é a versão de referência da Bíblia usa¬ da nesta série; entretanto, o foco do estudo exegético e os comentários são o texto bíblico em sua linguagem original. Quando o comentário usa a NVI, ele é impresso em negrito. O texto impresso em negrito e itálico é a tradução do autor. Os comentaristas também se referem a outras traduções em que o texto tores e alunos um comentário
possa ser difícil ou ambíguo. A estrutura e a organização dos comentários nesta série procuram faci¬ litar o estudo do texto bíblico de uma forma sistemática e metodológica. O estudo de cada livro bíblico começa com uma Introdução, que fornece uma visão panorâmica de autoria, data, proveniência, público-alvo, ocasião, propó¬ sito, questões sociológicas e culturais, história textual, características literárias, questões hermenêuticas e temas teológicos necessários para entender-se o livro. Essa seção também inclui um breve esboço do livro e uma lista de obras gerais e comentários padrões.
A seção de comentários para cada livro bíblico segue o esboço do livro apresentado na introdução. Em alguns volumes, os leitores encontrarão súmulas
PREFÁCIO DOS EDITORES GERAIS
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON
grandes porções da Bíblia, com comentários gerais sobre sua estrutura literária global e outras características literárias. Uma característica consistente do comentário é o estudo de parágrafo por parágrafo dos textos bíblicos. Essa seção possui três partes: Por trás do texto, No texto e A partir do texto. O objetivo da seção Por trás do texto é fornecer ao leitor todas as informa¬ ções relevantes necessárias para a compreensão do texto. Isso inclui situações históricas específicas refletidas no texto, no contexto literário do texto, nas questões sociológicas e culturais e nas características literárias do texto. No texto explora o que o texto diz, seguindo sua estrutura, versículo por versículo. Essa seção inclui uma discussão dos detalhes gramaticais, dos estudos de palavras e da ligação do texto com livros/ passagens bíblicas ou outras partes do livro em estudo (o relacionamento canónico). Além disso, fornece transliterações de palavras-chaves em hebraico e grego e seus significados literais. O objetivo aqui é explicar o que o autor queria dizer e/ou o que o público-alvo teria entendido como o significado do texto. Essa é a seção mais ampla do co¬ seccionais de
mentário. A seção A partir do texto examina o texto em relação às seguintes áreas: significância teológica, intertextualidade, história da interpretação, uso das ci¬ tações do Antigo Testamento no Novo Testamento, interpretação na história, na atualização e em aplicações posteriores da Igreja. O comentário fornece anotações complementares sobre tópicos de inte¬ resse que são importantes, mas não necessariamente fazem parte da explanação do texto bíblico. Esses tópicos são itens informativos e podem conter ques¬ tões históricas, literárias, culturais e teológicas que sejam relevantes ao texto bíblico. Ocasionalmente, discussões mais detalhadas de tópicos especiais são
incluídas como digressões. Oferecemos esta série com nossa esperança e oração, a fim de que os leito¬ res a tenham como um recurso valioso para a compreensão da Palavra de Deus e como uma ferramenta indispensável para um engajamento crucial com os textos bíblicos.
Roger Hahn, Editor-geral da Iniciativa Centenária Alex Varughese, Editor-geral (Antigo Testamento) George Lyons, Editor-geral (Novo Testamento)
12
AGRADECIMENTOS
A ironia de escrever outro comentário sobre um livro que adverte que “não há limite para a produção de livros” (Ec 12.12) ficou perdida com Pineda, que, em 1620 d.C., escreveu um comentário gigantesco sobre Eclesiastes, contendo 1.079 páginas (Ginsburg, 1861, p. 123). E os comentários sobre Eclesiastes continuam a serem publicados. O meu interesse por Eclesiastes, pelo menos, vem desde os tempos do ensino médio; eu escolhia Eclesiastes 12 quando era
minha vez de ler diante da classe. Meu estudo sobre Eclesiastes para este comentário fez com que eu me tornasse incrivelmente consciente da constante relevância desse livro em minha vida pessoal. À medida que o meu trabalho progredia, começava a notar que meus filhos perguntavam: “Você está ocupado?”, sem nenhuma esperança de receberem alguma atenção de minha parte (“ocupado” é um dos temas de Eclesiastes, ex.: 1.13; 3.10). Em minha vida cotidiana, as citações de Eclesiastes surgem repetidas vezes em minha mente, e eu estou aprendendo a ficar mais satisfeito com a porção que Deus me deu (Ec 5.18). “Descobri que não há nada melhor para o homem do que ser feliz e praticar o bem enquanto vive” (Ec 3.12). O livro de Lamentações também é um “livro muito moderno” (Provan, 1991, p. 24). A obra envolve o leitor em seu questionamento sobre Deus e, no entanto, mostra uma profunda fé em meio a essa atividade. Aparentemente, o livro foi escrito em resposta a uma tragédia específica, contudo, ao dar expressão à angústia, ele continua sendo útil para trazer ordem ao caos de qualquer tragédia, seja pessoal ou nacional. Os livros de Seow (1997), Whybray (1989) e Ginsburg (1861) têm sido muito influentes em meu pensamento sobre Eclesiastes. O livro de Provan (1991) foi muito útil para Lamentações. Eu gostaria de agradecer a Roderick T. Leupp, Christi-An C. Bennett e Alex Varughese (editor) pela cuidadosa leitura do manuscrito e pelas várias e úteis sugestões. Meus alunos do Nyack College e do Seminário Teológico Alliance também me ajudaram a refinar meu pensamento ao sugerirem novas interpretações. Sou grato ao Nyack College pela licença concedida, que me proporcionou mais tempo para escrever. O Centro de Retiro e Conferência Taconic gentilemente forneceu um lindo espaço para meus períodos concentrados de escrita. Sthephen J. Bennett
ABREVIAÇÕES Com raras exceções, estas abreviações seguem as que estão no livro The SBL Handbook of Style (Alexander, 1999).
Geral a.C. ABD ACCE AT
BDB BDF BHQ BHS ca.
cap.
d.C. ed. EDNT esp.
antes de Cristo
The Anchor Bible Dictionary Antigo comentário cristão sobre as Escrituras Antigo Testamento Léxico Hebraico em Inglês do Antigo Testamento Blass, Debrunner, Funk (1961) Bíblia Hebraica Quinta Bíblia Hebraica Stuttgartensia cerca de
capítulo(s) depois de Cristo editado por Exegetical Dictionary of the New Testament, editado por Balz e Schneider (1990 1993) especialmente
—
etc.
et cetera, e o restante
ex.
exempli gratia, por exemplo Gesenius Hebrew Grammar as Edited and Enlarged by the Late E. Kautzsh Hebrew and Aramaic Lexicon of the Old Testament, editado por Koehler e Baumgartner (1994)
GKC
HALOT i.e.
ktl. LXX n. NIDOTTE
id est, isto é kai ta loipa (significa etc. na transliteração grega) Septuaginta nota
vol.
New Internacional Dictionary of Old Testament Theology and Exegesis Novo Testamento século sem data sub verbo, implícito Theological Dictionary of the Old Testament Theological Wordbook of the Old Testament Texto Massorético (do AT) versiculo(s) volume
Versões bíblicas ARC
Almeida Revista e Corrigida
NT see.
s.d. s.v.
TDOT TWOT TM V.
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON
ABREVIAÇÕES
ARA
KJV NEB NTLH NVI RSV Por trás do texto:
No texto: A partir do texto:
Almeida Revista e Atualizada King James Version New English Bible Nova Tradução na Linguagem de Hoje Nova Versão Internacional Revised Standard Version
Informações históricas ou literárias preliminares que os leitores medianos podem não inferir apenas pela leitura do texto bíblico. Comentários sobre o texto bíblico, palavras, gramática, e assim por diante. O uso do texto por intérpretes posteriores, relevância contem¬ porânea, implicações teológicas e éticas do texto, com ênfase especial nas questões wesleyanas.
Fontes antigas
Antigo Testamento Génesis
Deuteronômio
Gn Êx Lv Nm Dt
Josué Juízes
Js Jz
Rute 1 Samuel 2 Samuel 1 Reis 2 Reis 1 Crónicas 2 Crónicas
Rt 1 Sm 2 Sm 1 Rs 2 Rs 1 Cr 2 Cr
Esdras
Ed Ne
Êxodo Levítico
Números
Neemias Ester
Et
Jà
Jà
Salmos Provérbios Eclesiastes Cantares Isaías
SI
Jeremias
Jr
Lamentações Ezequiel
Lm Ez Dn Os
Daniel Oseias
Joel 16
Pv Ec
Ct Is
J1
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON
Am
Amós Obadias
Ob
Jonas
Jn
Miqueias Naum
Mq
Habacuque Sofonias Ageu Zacarias
Malaquias
ABREVIAÇÕES
Na Hc
Sf Ag Zc Ml
(Nota: A numeração de capítulo e versículo no TM e na LXX geralmente difere em comparação com as Bíblias em inglês/português. Para evitar confusão, todas as referências bíblicas seguem a numeração de capítulo e versículo das traduções para o português, mesmo quando o texto TM e LXX está em discussão.) Novo Testamento Mateus Marcos Lucas
Mt Mc Lc
João
Jo
Atos dos Apóstolos Romanos 1 Coríntios 2 Coríntios
At
Gálatas Efésios Filipenses Colossenses 1 Tessalonicenses 2 Tessalonicenses
G1 Ef Fp Cl 1 Ts 2Ts 1 Tm 2 Tm Tt Fm Hb
1 Timóteo 2 Timóteo Tito Filcmom
Hebreus Tiago 1 Pedro 2 Pedro
Rm 1 Co 2 Co
Tg
1 João 2 João
1 Pe 2 Pe ljo 2 Jo
3 João Judas
3Jo Jd
Apocalipse
Ap
Apócrifos Sir.
Sabedoria de Siraque, Eclesiástico ou Sirácida
17
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON
ABREVIAÇÕES
SS Bar.
Sabedoria de Salomão Baruque
Transliteração do Grego
Letra
Transliteração
a
alfa beta gama gama nasal delta epsilon
a b
y 1
5 E
ç 9
zeta eta teta
t
iota
K
1 Vv
5
capa lambda mulmi nulni
g n (antes de y, K, %, f)
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o
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rô rô (em início de palavra)
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* to
X
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úpsilon úpsilon
y
fi chi psi
ph ch
ômega respiração elaborada
« (em ditongos: au, eu, éu, ou, ui)
Ps õ
h (antes de vogais iniciais ou ditongos)
Transliteração do Hebraico/ Aramaico N 3 1 7
n 1
T
Letra
álef bêt guímel
Transliteração
dálet he
b; v (fricativa) g d h
vav zain
z
ÍOUIÍ>
n
hêt
h
tét
t
18
ABREVIAÇÕES
NOVO COMENTÁRIO BfBLICO BEACON
iode
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p; f (fricativa)
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cof
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sin
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to
shin
/
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Í4«
19
ECLESIASTES
BIBLIOGRAFIA DE ECLESIASTES
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INTRODUÇÃO A ECLESIASTES
O título Eclesiastes deriva do hebraico qõhelet, que se refere a alguém que é líder de uma assembleia ou congregação (ekklesia, em grego). A maioria dos eruditos hoje se refere ao livro pelo seu nome hebraico, Coélet. Na Bíblia he¬ braica, esse livro está agrupado com Ester, Lamentações, Rute e Cantares que, juntos, são conhecidos como Meguilot ou os Cinco Rolos Festivos. Eclesiastes é um dos livros mais interessantes da Bíblia; em parte, porque é tão diferente dos outros, até mesmo dos outros livros de sabedoria (Jó, Pro¬ vérbios e Cantares). Assim como os livros de sabedoria, Eclesiastes ignora am¬ plamente a história e a lei do antigo Israel, mas também desafia a teologia e os temas aceitos pela tradição da sabedoria. Isso tem levado à perplexidade dos leitores em geral e a uma grande diversidade de interpretação por parte dos eruditos. Como tal, é importante ler as palavras de Coélet no contexto de seu argumento como um todo e reconhecer a possibilidade de que outras interpre¬ tações também estejam corretas. O propósito deste comentário é apresentar uma interpretação viável (e útil também, espero eu) de Eclesiastes e, ao mesmo tempo, incluir alguma diversidade de interpretações que já foram feitas anteriormente.
Parece que os paradoxos, os enigmas e as contradições de Eclesiastes são propositalmente apresentados para comunicar uma mensagem coerente, que tenta chegar ao verdadeiro significado da vida, e, ao mesmo tempo, também
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reconhecer as limitações da vida no contexto do AT, onde não havia uma compreensão desenvolvida sobre a vida após a morte. De acordo com Coélet, o significado da vida é limitado pelo efeito nivelador da morte, pela soberania de Deus que limita o controle humano e, possivelmente, pela ameaça da guerra, que estava sempre presente nos períodos helenísticos e persas. Isso torna a busca pela imortalidade, em termos de riqueza e fama, uma tarefa futil, mas restaura o significado dos prazeres simples da vida (comida, bebida, relacionamentos), que devem ser desfrutados como um dom de Deus. Dessa forma, o livro defende o contentamento acima da acumulação, a sabedoria acima da riqueza e a porção acima do lucro proveitoso (veja Temas teológicos). O livro reconhece que até a sabedoria tem significativas limitações. Tudo na vida pode ser limitado, abreviado, incompreensível ou até absurdo, mas existe algo bom e até alegre à espera daqueles que conseguem aceitar isso e viver a vida debaixo da soberania de Deus.
A. Autoria A autoria de um livro bíblico há muito tem sido conectada à autoridade do livro (pelo menos desde o período rabínico; Berlin, 2002, p. 31). A autoridade bíblica para os livros do NT estava sempre ligada à autoridade apostólica; logo, as objeções quanto às datas primitivas têm sido vistas como desafios à autori¬ dade do livro. Esse princípio tem sido aplicado aos livros do NT, em que a au¬ toridade estava ligada a um profeta ou a alguma outra figura cujas credenciais poderiam ser testadas. Em um mundo sem prelos, entretanto, a produção de li¬ vros bíblicos era mais um processo de desenho, porque as cópias tinham de ser feitas à mão, e, portanto, a comunidade tinha mais envolvimento com a escrita. Logo, o teste de competência autoral é inadequado e contestado pelo fato de que muitos livros bíblicos são anónimos, embora a tradição possa ter atribuído autoria à maioria deles. A autoridade de um livro bíblico, afinal, encontra-se no conteúdo do livro, que foi reconhecido como inspirado e canónico pela comunidade da fé (Kinlaw, 1968, p. 609). A visão tradicional considera Salomão como o autor de Eclesiastes. Essa tradição, pelo menos, vem desde o Talmude (antiga escrita rabínica). A au¬ toria de Salomão não foi mencionada nas discussões judaicas em Jamnia (ca. 90 d.C.), e a Septuaginta (antiga tradução grega) não traduz Eclesiastes 1.1 de modo que identifique Salomão, mas traduz qõhelet como Ekklesiastou, um membro da assembleia dos cidadãos (Christianson, 2007, p. 89).
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INTRODUÇÃO A ECLESIASTES
Antigas opiniões sobre a autoria As opiniões sobre a autoria no mundo antigo eram diferentes dos conceitos modernos, e, na maior parte do período do AT, os autores preferiam permanecer anónimos, o que é aparentemente o objetivo da enigmática autoidentificação de Coélet. Não havia lei de copyright nem ganho financeiro pela autoria, e os autores tinham a tendência de não serem muito individualistas acerca de suas obras. Qualquer livro era considerado uma propriedade da comunidade e estava propício a tornar-se um produto desta. Copiar manuscritos à mão era caro, e, se alguém investisse o tempo e o dinheiro para fazer uma cópia, então, acréscimos poderiam ser feitos para tornar o livro mais valioso para o dono. Com o passar do tempo, tomou-se menos provável que mudanças intencionais fossem feitas nos livros que eram considerados escritura sagrada. Um acréscimo comum, que geralmente era importante, era a identificação do autor do livro ou, mais especificamente, a origem da profecia ou dos discursos que identificavam os profetas, cuja mensagem ou cujo material bibliográfico tinha sido registrado ou colecionado. Do mesmo modo, diversos sábios são identificados como autores do livro de Provérbios (Salomão, Ezequias, como colecionador dos provérbios de Salomão, Agur e o rei Lemuel). No período entre o AT e o NT, identificar a autoria tornou-se mais comum e também levou à prática de atribuir um livro a uma pessoa famosa do passado distante, como Enoque, Abraão ou os doze filhos de Jacó. Essa prática, chamada de pseudonímia, começou no terceiro século a.C. (Baldwin, 1978, p. 17).
A palavra qõhelet (NVI, “mestre”) podia ser um nome pessoal, mas é bem provável que seja uma identificação do título do autor (real ou presumido). A palavra é desconhecida fora de Eclesiastes e tem a forma de um substantivo feminino, embora seja usada sempre com verbos masculinos (se 7.27 for um erro de grafia). Coélet é adicionalmente identificado como “filho de Davi, rei em Jerusalém”, que é uma referência óbvia a Salomão, embora 1.1 não mencione Salomão especificamente pelo nome. Ainda que a palavra para “filho” ( bên ) possa também significar descendente ou discípulo, as qualificações adicionais “rei em Jerusalém” (1.1) e “rei de Israel” (1.12) reduzem o resultado somente a Salomão. Ele foi o único filho de Davi que reinou em Jerusalém, embora Absalão e Adonias também reinassem brevemente sem o consentimento do pai.
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INTRODUÇÃO A ECLESIASTES
Nenhum outro descendente de Davi reinou sobre todo o Israel, exceto Roboão, o filho de Salomão que sucedeu seu pai o tempo suficiente para ver o reino dividido com Jeroboão, o rei das tribos do norte. As ênfases massoréticas e as referências posteriores em 1.12 2.26 mostram que o próprio Coélet era rei, e
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não apenas um filho do rei (embora o último seja gramaticalmente possível). A
autoria a Salomão é apoiada por Garrett (1993, p. 257-267), Archer (1964, p. 470), Unger (1957, p. 284) e Cohen (1946, p. 106). Existem, porém, razões para pensarmos que Salomão não seja o autor de Eclesiastes. O livro foi provavelmente escrito muito depois da época de Sa¬ lomão (veja a seção a seguir sobre a data), e existem elementos que parecem não terem vindo de Salomão ou mesmo de qualquer outro rei. A seção sobre a reflexão do autor sobre a vida (1.12 2.26) parece estar vagamente baseada na descrição de Salomão em 1 Reis 4, mas não se relaciona bem com a descrição de 1 Reis 11. Em Eclesiastes, o rei está consciente das limitações da sabedoria, da riqueza e do prazer que haviam caracterizado seus primeiros anos. Ao con¬ trário, o retrato de Salomão em 1 Reis 11 é o de um rei que se afastou de Deus em sua velhice, praticou o mal e até se sucumbiu à idolatria. O Talmude explicou essa anomalia dando às palavras “eu, o mestre, fui rei” (1.12) o significado de que, em algum momento, Salomão deixou de ser rei, sendo deposto por Ashmedai, o príncipe dos demónios, como castigo pelos seus pecados de idolatria; porém, depois, Salomão arrependeu-se ( Gittin 68a). A autoria de Eclesiastes a Salomão foi ignorada durante séculos, mas en¬ trou em um estudo crucial no século 17. Em 1644, Hugo Grotius levantou o primeiro desafio sério (Christianson, 2007, p. 95). Driver notou diversas in¬ consistências com a autoria de Salomão, tais como o lugar do juízo sendo cheio de impiedade (3.16), os erros cometidos pelos opressores poderosos (4.1) e a corrupção dos governantes, que impedem o processo de apelo (5.8) (1897, p. 441). Os reis dos tempos antigos não escreviam sobre si mesmos sob uma luz negativa. Archer declarou que os argumentos contra a autoria real não eram decisivos (1964, p. 462-469). Entretanto, a perspectiva do livro sobre o reina¬ do é sugestiva a uma autoria que não seja de realeza.
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B. Data A evidência para a data de um livro bíblico procede de diversas fontes. A data mais remota em que o livro poderia ter sido escrito ( terminus ante quem)
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INTRODUÇÃO A ECLESIASTES
é a data da cópia mais antiga. Os documentos eram escritos à mão antes da invenção da imprensa, e nenhum dos documentos originais dos livros bíblicos sobreviveu, mas somente as cópias (das cópias). A idade de uma cópia pode, às vezes, ser determinada pelo local onde foi encontrada ou pelo estilo da escrita, já que a grafia mudava com o passar do tempo. Raramente, a datação por car¬ bono ou os tipos de materiais que foram usados podem auxiliar a pôr data nos manuscritos. Os fragmentos mais antigos de Eclesiastes vêm dos Pergaminhos do mar Morto e são datados a partir de 175 a.C. Isso significa que Eclesiastes, mais provavelmente, vem de um período anterior ao segundo século. A data informada por Whitley, do segundo século a.C., é, sobretudo, excluída por essa evidência, porque é muito improvável que um livro relativamente novo fosse aceito como autoritativo em tão pouco tempo (1979, p. 148). Claras alusões a Eclesiastes em outros escritos seriam a próxima evidência que poderia ajudar com a data. Existem semelhanças e diferenças entre Ecle¬
Sirácida (datado de 175 a.C.). Algumas destas podem ser entendidas como alusões ou críticas a Eclesiastes. Por exemplo, Sirácida con¬ corda com Coélet no fato de a morte ser o destino final de toda a humanida¬ de. “Quer você viva dez, cem, ou mil anos, na mansão dos mortos ninguém ficará discutindo sobre a vida” (Sir. 41.4; veja Ec 6.3-6; Kriiger, 2004, p. 28). Deve-se tomar cuidado com essa abordagem, porque ideias comuns podem ter influenciado ambos os livros; entretanto, os fragmentos dos Pergaminhos do mar Morto apoiam uma data para Eclesiastes, que é anterior a Sirácida. Referências históricas podem providenciar um indício quanto à data. Se um livro menciona a queda de Jerusalém como um fato passado, então, ele deve ter sido escrito após esse fato. As referências históricas em Eclesiastes são poucas e não auxiliam muito quanto à data, apesar das tentativas de encontrar aconteci¬ mentos plausíveis na história que possam ser relevantes (4.13-16; 8.2-4; 9.1315; 10.16,17; Whybray, 1989, p. 9). Não obstante, Crenshaw, por exemplo, usou “dados políticos escassos” para sugerir uma data entre 250 e 225 a.C. para Eclesiastes (1987, p. 50). Ele baseia isso no aparente cenário de tempos pacífi¬ cos do livro (indicando uma data antes da Revolta dos Macabeus, 164 a.C.), na atitude em relação aos governantes estrangeiros e na prosperidade económica dos judeus, mas com restrições sob Antíoco IV. Whybray também defende uma data helenística parcialmente, por causa de uma perceptível falta de evidência em Eclesiastes sobre o conflito que assolou a Palestina antes de 300 a.C. (1989, p. 11). Entretanto, os argumentos de Crenshaw e Whybray quanto à falta de siastes e o livro de
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guerras em Eclesiastes podem estar mal colocados, tendo em vista as possíveis alusões ao conflito ou aos resultados de guerra no livro (ex.: 3.1-8; 12.1-8). Na ausência de uma data histórica precisa, às vezes, são feitas tentativas de datar o livro ao comparar-se as ideias contidas nele com outras literaturas contemporâneas. Esse método é vulnerável, porque presume que as ideias se desenvolvam de um modo linear e que todos os escritores de uma determinada época compartilhem os mesmos conceitos. Não obstante, se os dados históricos não estão disponíveis, o desenvolvimento conhecido das ideias pode ajudar a estabelecer a data do livro ou de parte do livro. Para Whybray, o desenvolvimento do pensamento tem sido o maior fator para datar Eclesiastes, que coloca a data do livro em um período helenístico, em grande parte, com base nas conexões com o pensamento grego, tal como a percepção de Deus como escondido ou remoto, e no desafio de Coélet à dou¬ trina da retribuição (1989, p. 8). Como Whybray reconhece, Coélet é também largamente dependente das tradições da religião e da sabedoria de Israel, e al¬ guns elementos, que são identificados como helenísticos, podem também ser encontrados, até certo ponto, na literatura hebraica. Por exemplo, o livro de Jó (ex.: 2.3-5; 7.20) já oferece alguma nuance da doutrina da retribuição. Uma filosofia análoga pode também ser o resultado de uma experiência similar. Não existem outros indicadores definitivos da dependência direta do grego, como palavras gregas em Eclesiastes. Como tal, o desenvolvimento do pensamento não pode oferecer uma data precisa para Eclesiastes. A evidência linguística é uma espécie de último recurso para datar um livro antigo, e existem, comparativamente, poucas evidências sobre o desen¬ volvimento das línguas antigas. Com frequência, o livro em questão contri¬ bui para o nosso conhecimento da linguagem, e, assim, os argumentos sobre a data correm o perigo de tornar-se falaciosos. Tampouco é o desenvolvimento da linguagem necessariamente linear. Outros fatores podem intervir no uso de inovações linguísticas, tais como uma influência estrangeira, um tom colo¬ quial, um assunto e uma perspectiva conservadora. Apesar disso, a linguagem de Coélet tem sido a principal consideração quanto à data, não apenas por cau¬ sa da falta de dados concisos de outras fontes, mas também porque a linguagem difere extremamente do estilo do hebraico empregado na maior parte da Bíblia hebraica. Por essa razão, Carol Newsom identificou a linguagem de Eclesiastes como um dos problemas perenes da interpretação nos meios eruditos atuais (1995, p. 184).
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C. L. Seow resumiu os argumentos linguísticos para a datação sob os títulos de ortografia, influências estrangeiras e dicção (1997, p. 11-21). A ortografia re¬ fere-se à escrita, que sofreu variações com o decorrer do tempo quando os escribas hebreus tentavam indicar as distinções das vogais no manuscrito consonantal. Eclesiastes contém mais desses indicadores de vogais ( matres lectiones) do que os escritos pré-exílicos. A influência estrangeira na linguagem de Eclesiastes é vista em duas pala¬ vras emprestadas da Pérsia (2.5; 8.11), assim como vocabulário e influência aramaicos significativos. Palavras persas não se encontram na escrita pré-exílica. O vocabulário aramaico encontra-se nas escritas pré-exílicas, porque Israel era vizinho da nação de onde essa língua era originária (Síria), mas a exposição ao aramaico foi maior após o exílio, e os livros bíblicos pós-exílicos refletem isso. Seow tenta refinar a datação ao período persa por meio das nuances que não são encontradas fora desse tempo (1997, p. 14). Por exemplo, a palavra sãlaf geralmente significa “ter direito, poder”, mas, em Eclesiastes, significa “ter o direito de mandar”, um significado encontrado somente no período persa (ex.: Ne 5.15, mas não Daniel; veja Gropp, 1993, p. 34). Juntamente com outras evidências para nuances encontradas apenas no período persa, o argumento de Seow é persuasivo, embora Krúger rejeite a opinião de que sãlat nunca denote poder (político) em Eclesiastes (verbos: 2.19; 5.19; 6.2; 8.9; substantivos: 7.19; 8.4,8; 10.5) (2004, p. 36). A categoria da dicção refere-se ao vocabulário e à gramática. Um elemen¬ to comum na datação é a escolha de pronomes relativos (“que”, “qual”). Os livros pré-exílicos usam a forma mais longa ( ãser), exceto em sete ocorrên¬ cias, enquanto a forma abreviada (se) é comum em muitas obras posteriores. Eclesiastes é responsável pela metade das ocorrências da forma abreviada, mas também usa a forma longa cerca do mesmo número de vezes (essa combinação de formas é incomum). A escolha de pronomes relativos pode ter sido influen¬ ciada por um vocabulário estrangeiro, um dialeto do norte ou um discurso coloquial, mas, analisado em conjunto com outras evidências linguísticas, é altamente sugestivo de uma data pós-exílica. Seow encontrou 26 expressões em Eclesiastes que ocorrem em algum outro lugar somente em textos pós-exílicos (1997, p. 17-19), enquanto a análise de Schoors encontrou 34 características que são típicas do hebraico pós-exílico (1992, p. 221). Gleason Archer defendeu a autoria a Salomão principalmente ao rejeitar a data pós-exílica da linguagem de Eclesiastes. Ele argumentou que, já que a
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linguagem é peculiar, ela não pode ser usada para datar o livro em período algum (1964, p. 462-469). Todavia, como o estudioso alemão Franz Delitzsch disse em sua famosa citação: “Se o livro de Coélet for da velha origem de Salo¬ mão, então, não existe uma história da linguagem hebraica” (1875,p.l90).Os argumentos de Fredericks para uma data exílica ou pré-exílica para a lingua¬ gem de Eclesiastes dependem de muitas possibilidades para as quais há falta de evidências (1988, p. 262). Por exemplo, quando Coélet compartilha voca¬ bulário com documentos pós-exílicos, mas esse vocabulário carece de textos pré-exílicos, Fredericks apela para a possibilidade de que as palavras pudessem ter entrado naquela língua antes do que é mostrado na evidência literária que nós temos (Schoors, 1992, p. 15). Uma data pré-exílica também é defendida por M. Elyoenai, que vê a linguagem como uma língua primitiva popular não literária (1977, citado por Schoors, 1992, p. 11). Esse argumento é hipotético, porque não se pode saber a natureza de uma língua não literária. O livro como um todo não pode ser datado precisamente pela base lin¬ guística ou por outras. Essa é a posição de Eaton, que não tenta datar o livro com base na linguagem e deixa o assunto indefinido (1983, p. 19,24). A análise estruturalista de Isaksson também rejeita a datação de Eclesiastes pela base lin¬ guística (1987, p. 197). Não obstante, existem muitos elementos da linguagem de Eclesiastes que são desconhecidos no período pré-exílico, e as argumentações linguísticas em favor e uma data pós-exílica são convincentes. As principais escolhas dentro dessa estrutura são a era persa e a era helenística. Os argumentos em prol de uma data persa compilados por Seow são impressionantes e muito precisos (1997, p. 11-21). Entretanto, de certo modo, eles argumentam pelo silêncio porque, se existissem mais dados da era helenística, estes poderiam revelar um uso mais complexo da linguagem. Todavia, ele tem acumulado uma boa quan¬ tidade de evidências. Os argumentos para uma datação helenística também tendem a depender do silêncio, tal como a perceptível falta de evidência de guerras. A maioria dos eruditos apoia a datação helenística, contudo, a evidência não exclui a datação persa. Felizmente, as condições sociais de ambas as eras são semelhantes, e os interesses comerciais de Coélet aplicam-se ao sistema mo¬ netário que começou na era persa e continuou a desenvolver-se na era helenís¬ tica. Então, este comentário tentará interpretar sua mensagem em relação ao período pós-exílico em geral e à era persa em particular.
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C. Lugar de origem A evidência linguística tem sido usada para defender a proveniência do norte de Israel para Eclesiastes (Dahood, 1966, p. 264-282), mas as características linguísticas do livro são tão peculiares, e o conhecimento atual do norte hebraico é tão limitado, que tal fato não pode ser definitivo. Jerusalém é men¬ cionada em 1.1, mas isso talvez não forneça uma informação sobre a origem, já que o versículo foi provavelmente acrescentado, mais tarde, pelo editor. A Palestina é favorecida como a origem de Eclesiastes por causa de elemen¬ tos no livro que se encaixam melhor na localização geográfica do que outras possibilidades. Estas são referências a mananciais e cisternas (2.6; 12.6), telha¬ dos com vazamento (10.18), templo (5.1; 8.10), atenção do fazendeiro quanto ao vento (11.4), três produtos primários: pão, vinho e azeite (9.7,8) e também amendoeiras (12.5; Murphy, 1992, p. xxii).
D. Público, ocasião, propósito As literaturas padrões da sabedoria, tais como as encontradas no livro de Provérbios, tendem a ser dirigidas aos filhos que estão sendo educados nas habili¬ dades para a vida (Pv 1.1-8). Eclesiastes compartilha essa inflexão, de certa forma (11.9; 12.12), mas parece observar os jovens mais velhos, que já começaram a ver as limitações dos ensinamentos simplistas dirigidos às crianças. Essa juventude está desenvolvendo um pensamento abstrato e tem notado as complexidades da vida. Fazer o bem não parece garantir a bênção de Deus. Coélet não quer, sim¬ plesmente, identificar-se com “o ceticismo característico da juventude” (Davis, 2000, p. 161), mas, sim, ajudar os jovens a enxergarem que a sabedoria ainda tem valor, e que Deus ainda é soberano. A doutrina da retribuição está aberta ao abuso em duas direções. Uma é trabalhá-la retrogradamente e julgar a justiça ou a impiedade pela riqueza material. O livro de Jó trata desse problema. A outra é usar a justiça como um meio para alcançar a riqueza material, um tipo de manipulação de Deus. Coélet rejeita essa abordagem e adverte que a riqueza não traz uma satisfação duradoura, podendo ser facilmente perdida (ex.: em um mau investimento, 5.14). Ao contrário, a orientação de alguém na vida deve ser o temor de Deus. Qualquer bênção material que alguém tiver deve ser desfrutada como uma dᬠdiva de Deus, sem ficar eternamente correndo atrás de mais. De certa forma, esse é o conselho de Coélet para os homens suportarem o mundo pós-exílico,
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onde o dinheiro se tornara uma comodidade, e a riqueza pudera ser facilmente acumulada. Ele queria “destruir a preocupação deles” com o dinheiro (Seow, 1997, p. 69). As eras pós-exílicas foram épocas de grandes impérios. Territórios como a Palestina trocavam de domínios e eram, às vezes, enredados em conflitos familiares e estrangeiros. A ameaça de guerra era frequentemente real, e os resultados do conflito podiam ser devastadores. Coélet trata da realidade existencial da morte que cada um enfrenta. Ele poderia também estar dando uma advertência sobre encontrar o significado da vida à luz da possibilidade de que a guerra poderia varrer para longe aquela vida que as pessoas conheciam. A morte poderia vir inesperadamente ou a propriedade poderia trocar de domínio, de forma injusta, com a chegada de um novo regime.
E. Questões sociológicas e culturais Eclesiastes foi escrito para um público pós-exílico, que vivia em sistemas sociais muito diferentes das monarquias anteriores de Israel e Judá. Os impera¬ dores babilónicos, persas e helenísticos, alguns dos quais chamavam a si mesmos de “rei dos reis” (ex.: Dario I; Rainey e Notley, 2006, p. 286), tiveram um tre¬ mendo controle sobre a liberdade individual, especialmente por meio do sistema de províncias e governadores (Matthews, 1991, p. 151). Isso deve ter tido um impacto significativo no conselho de Coélet em relação à conduta diante do rei e, especialmente, à sua doutrina sobre a soberania de Deus. As mudanças económicas na era pós-exílica refletiam um crescente des¬ locamento da economia agrícola das monarquias pré-exílicas em direção ao sistema monetário. Neemias 5.3-5 indica a continuação das atividades agrícolas, mas estas se tornaram complicadas devido aos impostos pesados que geralmente eram pagos, hipotecando a terra e até mesmo escravizando membros da família. Isso era possível em um sistema monetário económico, e o kesep tornou-se mais do que a prata, que era pesada para cada transação; ele transformou-se em dinhei¬ ro. Moedas oficiais eram carimbadas à mão a partir do sexto século (Matthews, 1991, p. 177). Essas moedas levavam o nome da província, “Yehuda”. Um gran¬ de número de moedas de pequeno valor, cunhadas localmente e datadas do quarto século a.C„ também foi encontrado em Israel; os papiros de Samaria mencionam a compra, a venda e o uso de dinheiro na economia local e no pa¬ gamento de impostos (Leith, 1998, p. 417). A chegada do dinheiro como uma
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comodidade que poderia ser acumulada foi o alvo das advertências de Coélet sobre a orientação do indivíduo na vida (Ec 5.13). O sistema económico era abastecido pelo comércio, que foi incrementado pela construção e pela manutenção de estradas e, também, pelo desenvolvi¬ linhas marítimas (Ne 13.16). O novo sistema monetário tinha um grande potencial para o avanço económico, e até os escravos podiam fazer ne¬ gociações no comércio. Porém, aqueles que eram motivados pela ganância es¬ tavam vulneráveis a grandes perdas. Coélet abordou a nova ênfase do comércio em uma advertência sobre o fracasso dos empreendimentos arriscados (Ec 5.14). Essas inovações da era persa foram adotadas e expandidas no período helenístico, com a “introdução das técnicas gregas e do novo capital operacional” (Matthews, 1991, p. 194). Embora a data exata de Eclesiastes não possa ser determinada, a análise anterior sugere fortemente que a mensagem do livro tenha alcançado um público tanto da era persa como da helenística. mento de
F. História textual e composição 1. Texto A cópia completa mais antiga de Eclesiastes em hebraico é o Códice de Leningrado, do Texto Massorético (1008 d.C.). Eclesiastes não é o mais an¬ tigo no Códice de Alepo. Os fragmentos do livro nos Pergaminhos do mar Morto (1.10-14; 5.14-18; 6.3-8; 6.12—7.6; 7.7-10,19,20) têm sido datados a partir de 175 a.C., em meado do primeiro século a.C.. A tradução de Ecle¬ siastes na Septuaginta difere das antigas traduções gregas de outros livros do AT. Ela tem mais em comum com as traduções literais de Áquila. Traduções siríacas e latinas também seguem o hebraico na maioria dos casos (Krúger, 2004, p. 37,38).
2. Cânone Eclesiastes é um dos livros cuja autoridade foi contestada pela escola rabínica de Shammai. O Talmude registra a dispensa dessa contestação recorrendo aos 72 anciãos famosos pela tradução da Septuaginta (Ginsburg, 1861, p. 16).
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3. Composição A integridade de Eclesiastes como obra inteiramente de um único autor tem sido questionada por significativos intérpretes, como Delitzsch (1875, p. 188,200) e Fox (1999, p. 159). No entanto, a maioria dos comentaristas mo¬ dernos vê pelo menos 1.1 e 12.9-14 como acréscimos editoriais. Existem outros que veem, no decorrer do livro, relevantes adições de editores posteriores (D. C. Siegfried enxergou nove mãos; Barton, 1908, p. 28). A narrativas em terceira pessoa (1.1; 12.9-14) realmente parecem ser acrés¬ cimos editoriais. Os acréscimos editoriais são uma característica comum nos livros proféticos do AT, já que os antigos pergaminhos não tinham a tendência de possuir uma capa indicando autor, título e detalhes de publicação. Whybray apresentou um convincente argumento de que o refrão “vaidade de vaidades” (ARC), encontrado com variações no início e no fim do livro (1.2; 12.8), tam¬ bém seja um acréscimo editorial (1989, p. 35; Barton, 1908, p. 69, discorda). Embora a palavra hebel (“vaidade”) seja encontrada 38 vezes no decorrer do livro, isso não é uma declaração absoluta (fora 1.2 e 12.8), mas uma resposta a circunstâncias ou observações específicas.
G. Características literárias 1. Gênero As três formas literárias dominantes de Eclesiastes são reflexão, instrução e ditado, nessa ordem. Nas reflexões, o autor usa pensamentos pessoais e obser¬ vações para trazer conclusões sobre a verdade. A reflexão em 1.12 2.26 tem a forma de autobiografia de um rei. Von Rad atribuiu a forma “Testamento de uma realeza” ao livro todo (1972, p. 226). Entretanto, nem todas as reflexões são da perspectiva de uma realeza. Embora o tom autobiográfico permeie o livro, a perspectiva real não o faz. Alguns aspectos da reflexão de Coélet com¬ põem-se de um tipo de diálogo com sabedoria ou provérbios adquiridos (ex.: Pv 11.19; Ec 3.16), mas o livro como um todo é mais complexo do que a dia¬ tribe da era helenística (Murphy, 1992, p. xxxi). As instruções são um elemento comum do ensino da sabedoria, e ambas as instruções positivas (7.14) e negativas (7.21) estão inclusas em Eclesiastes.
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Coélet instrui o seu público a aproximar-se de Deus (5.1-7) e a comportar-se diante dos reis (8.2-6). Os ditados específicos não são conhecidos fora de Eclesiastes, e alguns podem ter sido da autoria de Coélet, mas outros podem, não obstante, ser ci¬ tações de ditados que eram bem conhecidos na época. Às vezes, ele parece di¬ tar um adágio conhecido ou uma perspectiva com o propósito de refutá-lo ou matizá-lo (7.1), ou citar um adágio sarcasticamente (10.19). Outras formas literárias em Eclesiastes são exemplos de histórias (9.1316), questionamentos (alguns retóricos, 1.3; veja Johnson, 1986, p. 1-304), oráculos de infortúnio (4.10) e poemas didáticos (1.4-11). O gênero de Eclesiastes como um todo é tão elusivo quanto à justiça e à sabedoria sobre as quais Coélet escreve (3.16; 7.24). Já que todas as diferentes formas literárias do livro têm o propósito de instrução na tradição dos professo¬ res da sabedoria, talvez uma designação apropriada para o livro como um todo seja “coleção didática”. Reflexões, instruções e adágios são colecionados para provar um ponto sobre como responder às complexidades da vida.
2. Estilo linguístico A linguagem de Eclesiastes é peculiar no AT e em todas as literaturas he¬ braicas. Há um uso desconcertante do pronome pessoal que os outros livros normalmente só usam para dar ênfase (porque é inerente ao verbo hebraico na flexão finita). Outra característica linguística enigmática é a alternância en¬ tre os dois pronomes relativos se e ãser (veja a seção Data). Coélet faz pouco uso do waw consecutivo, uma construção verbal comum em hebraico, mas isso pode ser explicado pela falta de narrativa em Eclesiastes. Os particípios são uma característica comum em Eclesiastes, um formato de que o Antigo Testa¬ mento faz pouco uso, mas que se torna mais popular no hebraico pós-bíblico.
3. Estilo literário O estilo autobiográfico (exceto nos capítulos 11 e 12, que passam para o diálogo direto) dá lugar ao uso acentuado de pronomes pessoais no livro. A NVI faz a tradução de “eu” 83 vezes (38 vezes em autobiografia nobre), o que inclui o uso do verbo finito na primeira pessoa, mas não o uso redundante do pronome pessoal no livro (o que acrescentaria outras 23 ocorrências).
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Coélet também favorece as palavras-chaves e as frases, a repetição, o jogo de palavras, a aliteração, o quiasmo (a estrutura: A, B, C, B’, A’) e as compara¬ ções (para exemplos, veja o comentário). A repetição é tão importante que as palavras favoritas de Coélet compõem 20% do livro (Murphy, 1981, p. 130, citando Loretz). Coélet também usa um vocabulário muito raro ou peculiar. Há palavras que não são encontradas em nenhum outro livro bíblico ( hapax legomena), e algumas não são encontradas em nenhuma outra literatura hebraica. Muitas são aramaicas ou sua forma é influenciada pelo aramaico. Essas características poderiam ser explicadas pela data, pelo dialeto ou pelo local de origem. Contu¬ do, Coélet poderia estar usando as características do aramaico, a língua franca de seu tempo, para dar o sabor dos novos sistemas comerciais aos quais aque¬ la língua servia (sugerido por Charles Eapen em um seminário de estudantes, Alliance 'Theological Seminary, 2009; há também um vasto número de termos comerciais em Eclesiastes). Do mesmo modo, as anomalias gramaticais (tais como a combinação de pronomes relativos) podem ter a intenção de desorientar o leitor, a fim de espelhar o efeito desnorteador dos enigmas da vida.
4. Estrutura Muitos eruditos não veem estrutura discernível em Eclesiastes (veja New¬ som, 1995, p. 187). Outros veem uma estrutura cuidadosamente composta, baseada na forma, e não no conteúdo (tais como A. G. Wright, 1980). Ginsburg analisou o livro em quatro seções principais, além do prólogo e do epílogo (1.1-10; 1.11—2.26; 3.1—5.20; 6.1—8.15; 8.15—12.7; 12.8-14) (1861, p. 17-21). Seow também analisou a densidade do livro em quatro seções: refle¬ xão: tudo é efémero e inconstante (1.2 4.16); ética: lidando com a incerteza (5.1 6.9); reflexão: tudo é ilusório (6.10 8.17); ética: lidando com os riscos e com amorte (9.1 12.8) (1997, p. 46,47). Tal análise requer a compactação de diversos temas sob títulos simplificados, e o hábito de Coélet de reciclar os temas tende a desafiar a identificação desse tipo de estrutura. Existem, entretanto, indicações de que algum tipo de estrutura intencional esteja presente no livro como um todo, particularmente quanto aos acréscimos editoriais. Eclesiastes começa com um título (1.1) e, depois, com um tema, “vaidade de vaidades” (1.2 ARC). Semelhantemente, o livro termina com uma repetição (quase idêntica) do tema (12.8) e um epílogo (12.9-14). A densidade
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do livro não contém o tema, como mencionado em 1.2 e 12.8, mas uma das variações costumeiras ocorre em 6.9 (“isso também é ilusão, é correr atrás do vento” [NTLH]) que, coincidentemente, está precedida de 1.491 palavras e seguida de 1.491 palavras. Isso é também um pouco antes do versículo cen¬ tral dos massoretas (6.10), que inicia a segunda série de 111 versículos (Seow, 1997, p. 45, citando D. N. Freedman). A unidade anterior a esse ponto central trata das limitações da riqueza (5.10 6.9), e a unidade seguinte trata das li¬ mitações da sabedoria (6.10 7.14). Isso tem levado alguns a procurarem um quiasmo para o livro todo (Lohfink, 2003, p. 8), mas é algo difícil de identificar (Kriiger, 2004, p. 8). Embora alguns temas principais sejam repetidos no de¬ correr do livro, eles não parecem estar dispostos em quiasmo ou em nenhuma outra estrutura obviamente globalizante. Barbour observa que a autobiografia nobre (1.12 2.26) e o cenário conclusivo (12.1-8) compartilham a temática de casas, plantas, servos, cantores, ouro e prata (2008). Se a conclusão (12.1-8) estiver apresentando a imagem da desolação da guerra, então a sua posição no livro assinala a reversão da prosperidade sob o governo de Salomão, com a qual o livro começou (veja comentário em 12.1-8). Este comentário analisa o livro em 14 unidades, que vêm a seguir:
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Esboço I. Vaidades de vaidades (título e tema) (1.1,2) II. Não há lucro no trabalho (prólogo) (1.3-11) III. Fui rei em Jerusalém (introdução) (1.12 2.26) IV. Um tempo para tudo (3.1-22) V. O que é melhor? (4.1-16) VI. Que as suas palavras sejam poucas (5.1-9) VII. As limitações da riqueza (5.10 6.9) VIII. As limitações da sabedoria (6.10 7.14) IX. O juízo, a retidão e a sabedoria são elusivos (7.15-29) X. Os dias dos ímpios não serão longos (8.1-17) XI. O mesmo destino sobrevém a todos (9.1-18) XII. Moscas no perfume (10.1-20) XIII. Lança o teu pão sobre as águas (conclusão) (11.1 12.7) XIV. Palavras agradáveis (tema e epílogo) (12.8-14)
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Sumário O livro de Eclesiastes começa com um título que identifica o livro como as palavras de Coélet e a declaração de um tema: “Vaidade de vaidades! É tudo vaidade” (1.1,2 ARC). O livro também é introduzido por um tratado de ati¬ vidades infindáveis da natureza e da humanidade e pela falta de proveito que um indivíduo pode deixar para trás à luz dessa inconstância (1.3-11). Isso é seguido de uma investigação definida como uma reflexão autobiográfica de Sa¬ lomão, o que determina o tom do livro inteiro (1.12 2.26). Nessa introdução, o rei investiga os prazeres, a riqueza e a sabedoria, mas não encontra uma satis¬ fação duradoura em nenhum deles. Um poema sobre o tempo é introduzido, enfatizando a soberania de Deus nas questões humanas (3.1-8), e é seguido de um conselho para desfrutar-se a vida (3.9-22) e também de uma advertência sobre a hora do juízo (3.15-17). As comparações no capítulo 4 começam com o desespero (4.1-3), mas também recomendam a alegria (4.4-6), o companhei¬ rismo (4.7-12) e a sabedoria (4.13-16). O capítulo 5 começa com o pedido de cautela no falar (5.1-9) e também aborda questões de opressão e justiça (5.8,9). Um quiasmo surge, o qual mostra que a riqueza não traz uma satisfação dura¬ doura e aconselha o contentamento com aquilo, seja o que for, que Deus tenha dado (5.10 6.9). A limitação e o valor da sabedoria são abordados na unida¬ de seguinte, em uma estrutura quiástica também (6.10 7.14). Então, Coélet tratada ilusão do juízo (7.15-18), da justiça (7.19-22) e da sabedoria (7.23,24) com a conclusão de que o juízo é, não obstante, uma realidade iminente, e que a justiça e a sabedoria ainda são superiores às alternativas (7.25-29). Mais conselhos para desfrutar-se a vida surgem, apesar dos mistérios de um mundo imprevisível (8.1 9.12). Logo, Coélet discute os benefícios limitados da sabe¬ doria ao dar exemplos, alguns envolvendo os reis (9.13 10.19). A generosidade é incitada (10.20 11.6), e, depois, aparecem mais conselhos para desfrutar-se a vida, mas com o conhecimento de que todas as ações serão julgadas por Deus (11.7 12.7). Esse curso de ação deve começar na juventude, antes que as tempestades da idade avançada e a morte (ou talvez a guerra) sobrevenham. O tema editorial é repetido (12.8), e o epílogo recomenda o livro ao leitor como “palavras agradáveis” (ARC) e acrescenta conselhos para que se tenha obediência aos mandamentos de Deus, já que toda ação estará sujeita ao Seu julgamento (12.8-14).
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H. Temas teológicos
Ginsburg sobre a teologia de Eclesiastes O desígnio desse livro... é trazer o povo abatido de Deus de várias situações, às quais ele tem recorrido em consequência das inexplicáveis dificuldades e perplexidades do governo moral de Deus, e reuni-lo na co¬ munidade do Senhor, mostrando-o a completa ineficiência de todos os es¬ forços humanos para obter a real felicidade, que não pode ser alcançada pela sabedoria, pelo prazer, pela indústria, pela riqueza etc., mas consiste do calmo desfrutar da vida na resignação aos tratamentos da providên¬ cia, a serviço de Deus, e na crença em um futuro estado de retribuição, quando todos os mistérios do presente curso do mundo serão resolvidos (1861, p. 16,17).
1. Vaidade de vaidades ( hãbel hãbãlim hakkõl hãbel) O tema mais óbvio de Eclesiastes é “vaidade de vaidades” (ARC) (“Que grande inutilidade!” na NVI), encontrado em 1.2 e 12.8, e traduz a palavra hebel, que é usada 38 vezes no livro. Na versão KJV tradicional, “vaidade” é derivada da palavra latina para “vazio”, uma nuance que está provavelmente perdida para a maioria dos leitores da língua inglesa de hoje. A palavra hebraica que, na forma literal, significa “sopro, vapor” desafia a tradução, já que Coélet a utiliza em uma variedade de nuances (embora a NVI sempre a traduza como “inutilidade” em Eclesiastes, mas usa 19 traduções diferentes quando a palavra é usada em outros lugares na Bíblia. Fox sempre traduz hebel como “absurdo” [1999, p. 30]). A ambiguidade da palavra parece favorecer Coélet quando ele apresenta a misteriosa natureza da vida em seu livro, frequentemente usando uma lin¬ guagem enigmática (daí a tradução de hebel por Bartholomew como “enig¬ mático” [2009, p. 93]). É provável que muitos de seus usos de hebel tenham a intenção de transmitir mais do que uma nuance por vez (Scott, 1965, p. 202). Usa-se hebel geralmente em conexão com a frase “correr atrás do vento” (1.14;
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2.11,17,26; 4.4,16; 6.9). Isso parece implicar uma tarefa fútil ou, pelo menos, um objetivo inatingível. Outros usos estão acoplados à palavra “mal” (ra), su¬ gerindo que Coélet não goste desses aspectos da vida (2.17; 4.8; 6.2). Alguns contextos parecem indicar o significado de bebei como “breve, fugaz” (6.12; 9.9; 11.10; veja Jó 7.16; SI 39.5,6,11; 144.4; Tg4.14 [atmis]). A palavra pro¬ veito, ganho é um tema importante em Eclesiastes, e a falta de lucro está, às ve¬ zes, ligada à bebei (2.11; 6.11). Algumas atividades na vida são inconsequentes. Outra nuance que Coélet parece ter em mente é “incompreensível” (2.15,26; 3.19; 4.16; 5.10; 8.10,14; vejajó 35.16, onde bebei está paralelo com a expres¬ são “sem conhecimento”).
Os significados “fútil”, “inatingível”, “mal”, “fugaz”, “inútil”, “inconsequen¬ te”, “ineficiente” e “incompreensível” são usados em diferentes contextos, com uma certeza variável e, às vezes, com sobreposições. As declarações generaliza¬ das em 1.2 e 12.8, que sugerem que a vida é sempre e tão somente sem sentido, não parecem captar a mensagem do livro como um todo. Existem algumas coi¬ sas na vida que são sem sentido (como acumular riquezas e ter inveja), mas ou¬ tras coisas (como a sabedoria e a família) devem ser valorizadas e desfrutadas, ainda que seus valores e o potencial de desfrutá-las possam ser limitados por outros fatores, como a sua inatingibilidade plena e sua natureza fugaz. Uma parte do segredo de desfrutar a vida é o temor de Deus e a aceitação da Sua soberania.
2. A soberania de Deus {yad hã ’êlohfm ) A soberania de Deus é o tema principal de Eclesiastes e, às vezes, é reve¬ lada na expressão “a mão de Deus” {yad haèlõhim, 2.24; 9.1). Uma das coisas incompreensíveis (bebei) da vida é que as ações humanas (tais como a sabe¬ doria e a justiça) nem sempre levam ao resultado previsível (sucesso na vida). A resposta de Coélet para isso é que tudo acontece no tempo de Deus (cap. 3) e segundo a vontade dele. Tudo que alguém tem na vida é uma dádiva de Deus, veio da Sua mão; não está sob o controle humano. Deus, entretanto, tem todo o direito de trazer o juízo sobre aqueles que são ímpios e, sem dúvida, fará isso um dia (8.6; 11.9; 12.14). Deus não é o “déspota distante” (contra Crenshaw, 1987, p. 30, que usa a linguagem de Pedersen), mas, como os reis descritos em Ecle¬ siastes, Ele pode ser imprevisível e deve ser abordado com reverência e obedi¬ ência (5.1; 8.2; 10.20). Deus é mencionado 39 vezes em Eclesiastes, enquanto
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hebel aparece 38 vezes. Isso, provavelmente, é coincidente, mas sugere, todavia, a prioridade com que Deus assume os enigmas da vida. Embora, ocasionalmen¬ te, pareça que a justiça e o significado estejam ausentes do mundo, Deus, ainda assim, tem o controle, e, ao final, Seu juízo prevalecerá.
3. Limites da sabedoria e da justiça ( hokmâ e sedeq) Eclesiastes faz parte da tradição da literatura da sabedoria, que inclui Pro¬ vérbios, Jó, Cantares, alguns salmos e uma rica literatura fora da Bíblia (existe também indício de influência no NT). O lugar de Eclesiastes entre essa litera¬ tura é visto parcialmente na frequência do vocabulário da raiz “sabedoria” (53 vezes), bem como o vocabulário relacionado (tal como “conhecer”; 36 vezes) e outras características da literatura da sabedoria, como provérbios e ditados (Seow, 1997, p. 67). A mensagem padrão da literatura da sabedoria para o seu público jovem é que as escolhas piedosas levam ao sucesso na vida, e es¬ sas escolhas devem ser conduzidas na base do temor do Senhor (veja a seção sobre retribuição, a seguir). A apresentação da sabedoria ao público jovem é necessariamente simplificada, e Eclesiastes parece estar caminhando para além das respostas simples, para alcançar um público mais adulto que já começou a enxergar as complexidades da vida. A sabedoria (e sua correspondente, a jus¬ tiça) nem sempre alcança os resultados esperados. Às vezes, Coélet deixa cla¬ ro, com toda a veemência, que parece que a sabedoria não vale absolutamente nada (1.18; 2.16; 6.8; 7.7,16; 8.17; 10.1), mas, em outras ocasiões, o valor da sabedoria é expresso, mesmo que o seu poder seja limitado, e toda a humani¬ dade deva, finalmente, submeter-se à soberania de Deus (2.13,14,19,26; 4.13; 7.5,6,11,12,19; 8.1,5; 9.10,13,15,16,17,18; 10.10,12; 12.11).
4. Doutrina da retribuição e limitações (mispãt ) A aliança entre Deus e Israel incluía consequências para o cumprimento e o descumprimento. Essas consequências são identificadas como bênçãos e mal¬ dições para a nação e estão enumeradas em Deuteronômio 27 e 28. A literatura da sabedoria tem um foco mais individual, e as consequências não foram tão nacionais como individuais. As consequências em Deuteronômio também es¬ tão mais intimamente ligadas a Yahweh (o Senhor), enquanto, na literatura da sabedoria, elas tendem a ser quase automáticas, sem a menção do envolvimento
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de Deus (Seow, 1997, p. 66). As consequências na literatura da sabedoria são, às vezes, conhecidas como as “doutrinas da retribuição” e podem ser resumidas em um provérbio: “Você colhe o que plantou” (vejajó 4.8; Pv 11.18; 22.8; Os 8.7; 10.12; e também 1 Co 9.11; G1 6.7). Tal doutrina está aberta à simplificação extrapolada, e, embora seja a premissa padrão da literatura da sabedoria, como está refletido no livro de Provérbios, existem contestações à doutrina dentro das Escrituras (Pv 11.16; 13.23; 14.13; 21.31; Jr 12.13; Mq 6.15). O livro de Jó provê um debate sig¬ nificativo com a defesa de que a justiça não pode ser medida pelas bênçãos materiais (Jó 1.8; 2.3; 23.10). Eclesiastes, às vezes, parece abandonar comple¬ tamente a doutrina (8.14; 9.2,3), mas, depois, também reconhece algum valor nela (11.9; 12.14). Ginsburg viu em Eclesiastes um reconhecimento das limitações da retribui¬ nesta vida e, logo, a crença de que a justiça seria servida em um mundo vin¬ ção douro, antecipando, assim, a posição do NT (1861, p. 27). Entretanto, a maior parte do AT não prediz um julgamento escatológico, e as referências a um julga¬ mento futuro em Eclesiastes podem todas ser entendidas como referência à retri¬ buição que o indivíduo terá nesta vida. Não obstante, é possível que Eclesiastes estivesse participando de uma progressiva crença em um dia de juízo escatológico que o NT, mais tarde, desenvolve. Contudo, a inflexão de Eclesiastes parece estar lamentando a falta de um julgamento oportuno de Deus enquanto se segura na crença de que Ele, apesar disso, trará justiça (nesta vida).
5. Proveito e porção (yitrôn e heleq) A doutrina da retribuição padrão da literatura da sabedoria aconselha esco¬ lhas piedosas que levam ao sucesso na vida, mas Coélet, repetidamente, contesta o proveito (yitrôn) das atividades humanas básicas. Isso parece ser uma contradi¬
ção direta à economia monetária emergente das eras persa e helenística. A dou¬ trina da retribuição poderia facilmente ser abusada como um meio de adquirir riqueza excessiva, mas Coélet rejeita essa abordagem com a advertência de que os resultados da sabedoria são incertos, e que a satisfação da riqueza é limitada. Em vez de buscar o lucro, Coélet recomenda a satisfação com a porção (heleq) de cada um, que é a dádiva que Deus, em Sua soberania, tem dado a cada pessoa. Essa porção não pode ser mudada, e o segredo da felicidade é o contentamento com essa dádiva.
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6. Prosperidade e contentamento ( kesep e rã’âtôb) A riqueza é um tema importante em Eclesiastes, e, embora Coélet sarcasti¬ camente identifique o dinheiro {kesep) como a resposta para tudo (10.19), ele também adverte contra os empreendimentos arriscados, a falta de fiabilidade da riqueza e a incapacidade de a fortuna trazer uma satisfação duradoura (5.1014). Os bens não devem ser a orientação da vida da pessoa. Em vez disso, o indivíduo deve contentar-se com a porção que Deus lhe deu. O desfrute ou o contentamento é literalmente ver o bem {rã ' âtôb) e en¬ xergar os dons que Deus tem dado, em vez de ficar esforçando-se para ter mais ou desejar obter mais (2.24; 3.12,13; 5.18,19; 9.7-9). Não há garantia de que se possa ganhar mais neste mundo incerto, e, mesmo que houvesse, isso não traz uma satisfação duradoura, nem deixa uma impressão indelével no mundo. Essa não é uma perspectiva fatalista caracterizada pela frase “comamos e bebamos, porque amanhã morreremos” (Is 22.13), mas uma profunda convicção de que as dádivas de Deus são boas, e o desfrutar delas não deve ser reduzido pela constante luta para obter-se mais. O interesse de Coélet pela riqueza é visto em seu rico vocabulário de ter¬ mos comerciais, como “ganho” {yitrôn), “falta” {hesrôn), “projeto” {hesbôn), “possessões” {nêkãsim), “dinheiro” {kesep), “riqueza” ( ‘õser), “homem rico” ( ãsir), “tesouro” {sêgullâ), “retorno” {sãkãr), “herança” {nahalâ), “habilida¬ de” {kisrôn), “salário” {tébú a), “riqueza” {hâmôn), “carga” ( 'inyãn), “tarefa” ( 'ãmãl), “consumir” ( 'ôkêl), “trabalhador” ( 'õbêd), “recompensa” {hêleq) (Seow, 1997, p. 22; veja Dahood, 1952, p. 221).
7. Ética Eclesiastes, como outras literaturas da sabedoria, é muito focado na luta do indivíduo e não reivindica reformas abrangentes para trazer justiça social. Tal¬ vez a reforma nem fosse vista como uma possibilidade nos impérios do período pós-exílico. Quando Coélet resolve chamar a atenção para a luta do oprimido, é somente para mostrar o incómodo que é para os sábios observarem a opressão (4.1; 5.8; 7.7). Não obstante, Coélet dá conselhos sobre como agir diante dos reis (8.2-4) e também conclama à generosidade (11.1,2). O chamado para a obediência aos mandamentos de Deus no epílogo não é mencionado em nenhum outro lugar no livro, embora a sabedoria e a obediên¬ cia à Lei sempre andem juntas nas outras ocorrências (Sl 1; 119). O chamado
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para temer a Deus é encontrado em outros lugares em Eclesiastes, e esse é um tema comum da literatura da sabedoria (5.7; 7.18; 8.12,13; 12.13; 20 ocorrên¬ cias em Provérbios).
I. Questões hermenêuticas 1. Diversidade de interpretação Existe tanta diversidade de interpretação dolivrode Eclesiastes que quaisquer conclusões devam ser alcançadas com precaução. As aparentes contradições do livro devem permitir que alguns intérpretes se concentrem em um lado do argumento, e outros se concentrem no outro lado. É difícil alcançar um equilíbrio de interpretação que dê conta dos paradoxos e da complexidade do texto. A interpretação de Crenshaw fica de um lado do espectro (1987, p. 23,24). Ele vê a “mensagem opressiva” de Coélet como se “a vida não tivesse proveito algum; fosse totalmente um absurdo”. Ele argumenta que Coélet “não discerne ordem moral alguma”, uma mensagem que fica em total contraste com o ensino da sabedoria do livro de Provérbios. Ele vê as referências sobre o juízo (ordem) divino como um distúrbio de pensamento e sintaxe, isto é, elas são acrescenta¬ das por um escriba ortodoxo para neutralizar “o conselho chocante de Coélet” (ex.: 11.9b). Calvino parecia desconfiar de Eclesiastes e não escreveu um co¬ mentário sobre ele, somente o citou algumas vezes em seus Institutes (Brown, 2007, p. 76). Seow coloca-se do outro lado do espectro. Ele vê Eclesiastes como uma unidade (até mesmo o epílogo) e percebe a tonalidade da mensagem como um tom de alegria (1997, p. 38-43). Lutero também tinha essa visão de Eclesiastes (Ginsburg, 1861, p. 112). A complexidade do texto é, até certo ponto, uma reflexão da complexida¬ de da própria vida (Fox, 1999, p. 3). Embora Crenshaw acredite que Coélet veja a vida como “totalmente absurda”, ele também é capaz de dizer: “Assim como [Coélet], eu observo uma discrepância entre a visão de um mundo justo, a qual recuso abandonar, e a realidade como eu a percebo” (1987, p. 23,53). Coélet gasta muito tempo criticando a sabedoria e a retribuição, mas, ainda assim, recusa-se a abandonar essa doutrina como um todo. Em vez disso, ele tenta matizá-la para que não seja vista como uma garantia absoluta. A vida é totalmente absurda se é seguida visando a certos valores, mas, sob outras con¬ dições, ela faz sentido, embora tenha limitações.
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A interpretação do livro também se apoia na compreensão do indivíduo sobre palavras-chaves e expressões como hebel (“vaidade”, “insignificante”) e “correr atrás do vento”. Ambas são metáforas, e o significado delas deve ser determinado pelo contexto no qual são usadas. “Correr atrás do vento” é um desperdício de tempo, porque o vento não pode ser capturado. Entretanto, algumas buscas (Como a tentativa de interpretar Eclesiastes!) valem a pena, mesmo que elas nunca terminem em uma resolução definitiva.
2. Como lidar com as contradições Eclesiastes é famoso por suas contradições, e estas têm sido explicadas de diversas maneiras: (1) o livro é uma coleção de ditados escritos por diferen¬ tes autores, e não se deve esperar coerência alguma; (2) o editor (ou editores) acrescentou interpretações moralistas para garantir que a heterodoxia perce¬ bida de Coélet não pudesse ter a palavra final; (3) Coélet citou diversos dita¬ dos tradicionais da sabedoria, com o propósito de refutá-los ou de matizá-los; (4) as contradições de Coélet são intencionais, já que ele tenta fornecer uma imagem balanceada das complexidades da vida. A última destas é a abordagem deste comentário, mesmo reconhecendo a presença de algumas citações que Coélet frequentemente refuta ou matiza. Essa abordagem considera seriamente a forma final do texto e dá sentido ao livro assim como ele se apresenta.
3. História interpretativa As interpretações conhecidas de Eclesiastes começam com Siraque, que aparentemente conhecia Eclesiastes e escreveu ao dialogar com Eclesiastes, em certo sentido. O Talmude também registra interpretações rabínicas e especial¬ mente o debate questionando se o livro “corrompe as mãos”, isto é, tem o tipo de autoridade que requeira o ritual de purificação. A interpretação literal deu
lugar à alegoria lá pelo quarto século d.C., tanto nos círculos judaicos como nos cristãos. Por exemplo, o primeiro viu uma referência à Torá em “comer” e “beber” (ex.: 2.24), e o segundo, uma referência à santa ceia. A interpretação literal retornou com a Reforma. A interpretação histórico-crítica (começan¬ do com Grotius, 1644 d.C.) começou a abandonar o epílogo como a chave interpretativa do livro e, em vez disso, viu uma coleção de opiniões diferentes. Essa metodologia alcançou o ápice por volta da virada do século 20 (ex.: Bar¬ ton, 1908), e, durante o século 20, a tendência havia voltado a enxergar o livro
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como uma unidade (geralmente com a exceção do epílogo, mas nem sempre). Bartholomew cataloga diversas abordagens recentes para a interpretação de Eclesiastes, a saber, leitura canónica, literária, nova critica, estruturalista, dialógica, narrativa-literária, pós-estruturalista, feminista e psicanalítica (1999, p.
7-13).
4. Interpretação wesleyana
John Wesley escreveu Explanatory Notes on Ecclesiastes e interpretou o livro literalmente, com exceção das representações em 12.1-6. Ele levou a so¬ berania de Deus no capítulo 3 seriamente, explicou 7.29 em termos do peca¬ do original e considerou 7.20 com o significado de que ninguém é universal e perfeitamente bom. Ele apreciava uma paráfrase intitulada Choheleth; or, the Preacher, escrita por um “Mercador Turco” (Diário, 8 de fevereiro de 1768). Wesley escreveu em seu diário (12 de janeiro de 1777) que as várias partes de Eclesiastes estão “conectadas de uma forma tão extraordinária; todas tentando provar a grande verdade que não há felicidade longe de Deus”. Thomas Coke escreveu A Commentary on the Holy Bible, que continha Eclesiastes no terceiro volume (1802). Ginsburg o chamou de “quase uma to¬ tal reimpressão da obra do infeliz Dr. [William] Dodd” e observa que ele vê Eclesiastes como um argumento pela necessidade da vida futura ( 1861, p. 196). O comentário de Adam Clarke, de 1813, segue a controvérsia do Merca¬ dor Turco de que “o assunto do livro é a bondade principal ou soberana, a qual o homem, como um ser racional e responsável, deveria, aqui, propor a si mes¬ mo”. Ele nega a autoria de Salomão e nota a linguagem peculiar de Eclesiastes (Ginsburg, 1861, p. 196,197). Os comentários wesleyanos do livro incluem as obras de Harper (.Bea¬ con Bible Commentary, 1967), Kinlaw (Wesleyan Bible Commentary, 1968) e Schultz (Asbury Bible Commentary, 1992).
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J. O uso litúrgico de Eclesiastes Na tradição judaica, Eclesiastes é lido no fim do período de seca, durante a Festa dos Tabernáculos (Sucote). Na Bíblia hebraica, Eclesiastes está agrupado a cinco pergaminhos que são lidos em festas diferentes. A razão pela qual Eclesiastes foi escolhido para essa festa não está clara, mas Christianson (2007, p. 31) sugere
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duas possibilidades: os outros quatro festivais tinham pergaminhos associados a si, portanto, Sucote e Eclesiastes juntaram-se automaticamente; e “Eclesiastes reflete os ânimos transientes, frágeis e alegres de Sucote, relembrando a época de perambulações pelo deserto, habitações instáveis... e a esperança da Terra Prometida”. Lohfink sugere que os convites para regozijar-se em Eclesiastes le¬ varam à sua associação com Sucote, que é conhecida como “a ocasião do nosso regozijo” (2003, em Steingerg, 2007, p. 165). Alguns pensam que Eclesiastes fornece um equilíbrio sóbrio para a celebração de Sucote (Peterson, 1980, p. 162). Outra possibilidade é que Eclesiastes fosse, de alguma forma, visto como uma advertência contra a orientação à vida de alguém de acordo com a colhei¬ ta (i.e., a riqueza), já que Sucote vem depois da safra de frutas, que é a última colheita do verão, antes que a estação de chuvas e o ciclo de aragem e plantio continuem.
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I. VAIDADE DE VAIDADES (TÍTULO E TEMA) (1.1,2) POR TRÁS DO TEXTO A frase de abertura de Eclesiastes é a sobrescrita e funciona como um tipo de página de título de um livro. A primeira palavra ou expressão de um livro hebraico é geralmente usada como título e, portanto, é escolhida com cuidado. O título hebraico de Eclesiastes é a segunda palavra, qõhelet (mestre). Assim como os sobrescritos de outros livros do AT, o versículo 1 foi, provavelmente, acrescentado por um editor ou escriba para identificar o livro. A menção ao filho de Davi, rei em Jerusalém, traz à mente Salomão em toda a sua glória, mas há razões para pensar que Eclesiastes vem de uma data posterior, da era persa ou da helenística (veja as seções Autoria e Data, na In¬
trodução). Os dois primeiros versículos de Eclesiastes estabelecem a estrutura editorial e o tema do livro. O versículo 1 é o título do livro, e o versículo 2 introduz o tema do livro. A expressão “vaidade de vaidades” (ARC) (hãbél hãbãlim, Inutilidade! Inutilidade!) é um artifício literário que indica algo
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maior ou melhor (ex.: Cantares). Esta também forma um par de colchetes com sua equivalente, em 12.8. Embora o versículo 2 estabeleça a tonalidade, a declaração de Inutilidade! não é seguida em um sentido absoluto pelo restante do livro. Ao contrário, essa declaração é explicada com exemplos da
complexidade e, frequentemente, da ambiguidade da vida. As palavras do mestre Os títulos editoriais dos livros do AT ou de coletâneas geralmente começam com a fórmula: as palavras de X ou algo semelhante. O livro de Provérbios começa com "Os provérbios de Salomão" e também tem co¬ letâneas introduzidas, como "Ditados de Agur", "Ditados do rei Lemuel", "Ditados dos sábios" e "Estes são outros provérbios de Salomão" (Pv 1.1; 30.1; 31.1; 22.17; 25.1). Os livros proféticos também usam essa fórmula, por exemplo, "Palavras de Jeremias" e "Palavras de Amós" (Jr 1.1; Am 1.1). Uma fórmula semelhante é encontrada na literatura da sabedoria egípcia, chamada de "instruções", por exemplo, "A instrução do prefeito e vizir Ptahhotep” (Pritchard, 1969, p. 412).
NO TEXTO
A. Título (1.1) I 1 O versículo 1 introduz o conteúdo do livro com as palavras do mestre (qõhelet). Coélet é uma palavra exclusiva de Eclesiastes e deriva do substantivo qãhãl, que significa “assembleia, convocação” (BDB 874). Logo, qõhelet é o “convocador [da assembleia]” ou o “colecionador (de frases)” (BDB 875 [embora o verbo nunca seja usado para colecionar-se objetos]). BDB identifica isso como um substantivo masculino, mas ele tem uma terminação de substantivo feminino e usa um verbo masculino (exceto em 7.27, que pode ser um erro do escriba). Ginsburg explicou o formato feminino sugerindo que Salomão estivesse personi¬ ficando a sabedoria, que é um substantivo feminino em hebraico (1861, p. 7; assim também Agostinho e outros). Entretanto, há outros casos em que uma função usa a forma feminina, embora aquele que exerce a função seja masculino (soferet, es¬ criba, Ed 2.55), e também homens cujos nomes têm forma feminina (Alemete, 1 Cr 7.8). A tradução de Moore é “o líder do louvor” que está baseado parcialmente
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na dedicação do templo por Salomão, em 1 Reis 8 (2001, p. 17,117). Liderar o louvor não é uma função de Coélet em Eclesiastes. Outra sugestão é “argumentador”, baseado no vocabulário aramaico (Ullendorff, 1962, p. 215). A Septuaginta traduziu qõhelet com a palavra grega Ekklesiastou (“mem¬ bro da assembleia política”). A tradução de “pregador” (ARC) é enganosa, por¬ que Coélet não era pregador em uma igreja ou em qualquer outro ajuntamento
religioso. Em vez de um cargo ou função, qõhelet poderia ser um pseudónimo ou um apelido (Lohfink, 2003, p. 10). Em um ou dois usos da palavra, o artigo é usa¬ do (“o Coélet”, 12.8 e provavelmente 7.27), o que seria incomum para um nome próprio. Entretanto, Eclesiastes também usa qõhelet como nome próprio em 1.12 e 12.9,10. Não há filho de Davi ou qualquer outra pessoa conhecida pelo nome de qõhelet, embora a forma verbal seja usada com Salomão como sujeito em 1 Reis 8.1. Ginsburg pensava que qõhelet fosse usado a fim de apresentar Salomão como um ideal, e não como o verdadeiro autor (1861, p. 244,245). Este comentário usará “Coélet” para referir-se ao autor do livro e “Ecle¬ siastes” para referir-se ao livro como um todo. A expressão filho de Davi, rei em Jerusalém, claramente aponta para Sa¬ lomão, embora isso não seja um indicador confiável de sua autoria. Salomão era considerado o pai da sabedoria no antigo Israel, e o seu pedido de sabedoria em 1 Reis 3.3-15 é bem conhecido. Na lista das realizações de Salomão, ele tam¬ bém é creditado com a escrita de três mil provérbios e mil e cinco músicas (1 Rs 4.32). Ele está ligado ao livro de Provérbios, de Cantares e ao livro apócrifo Sabedoria de Salomão.
B. Tema (1.2) I 20 versículo 2 estabelece o tema do livro com a declaração de Coélet: “Inutilidade! Inutilidade!” O significado da palavra hebraica por trás de inu¬ tilidade (hehel) é difícil de ser traduzido para a nossa língua. O contexto deve determinar que significado é sugerido em certo versículo. Neste versículo te¬ mático, o contexto é o livro de Eclesiastes como um todo, logo, o termo carrega ricas conotações de usos diferentes. Esses significados podem ser resumidos como fútil, inalcançável, mal, fugaz, inútil, inconsequente, ineficiente e incom¬ preensível (veja a Introdução). O significado literal de hebel é “fôlego, vapor”. O fôlego não é, por natureza, inútil. Ele é essencial à vida. Ele é, no entanto, breve, e, embora seja satisfatório
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respirar, a respiração deve ser uma atividade contínua para que a vida continue. Então, um só fôlego não traz uma satisfação duradoura, porém deve haver mais fôlegos. Do mesmo modo, o respirar não é um fim em si mesmo, mas é mera¬ mente um meio de vida. Essa é a natureza da vida. Ela é cheia de coisas boas que são, naturalmente, temporárias, e estas podem ser satisfatórias, mas não são um fim em si próprias. A palavra hebraica hebel é um veículo adequado para esse aspecto da vida, o qual Coélet deseja transmitir. Isso deve ser encontrado no relacionamento com Deus.
Hebel (inutilidade) O substantivo hebel é usado 38 vezes em Eclesiastes e 35 vezes em outras partes do AT. O significado literal é "vapor, fôlego", que é visto em Isaías 57.13, no qual hebel é usado em paralelo com o "vento". O vento ou o fôlego levarão os ídolos para longe. O significado figurado é "vaidade", no sentido de insubstancial ou sem valor (BDB 210) e, logo, refere-se a algo que evapora (Ginsburg, 1861, p. 259). Isso é relevante no caso dos ídolos que "perecerão" (Jr 10.15). Os livros de Deuteronômio, Reis e Jere¬ mias frequentemente usam hebel com o sentido de ídolos inúteis (ex.: Dt 32.21; 1 Rs 16.13; Jr 2.5). Isaías denunciou a ajuda militar do Egito como hebel, no sentido de "inútil" (Is 30.7). A palavra também é usada em para¬ lelo com "nada" ( tõhú ) em Isaías 49.4. O nome "Abel" é hebel em hebraico e mostra o significado de "temporário", já que sua vida foi tão curta (ten¬ do sido assassinado por seu irmão Caim). O mesmo radical é usado como verbo cinco vezes (2 Rs 17.15; Jó 27.12; SI 62.10; Jr 2.5; 23.16).
A expressão “vaidade de vaidades” (ARC) ( hãbêl hãbãlim, Inutilidade! Inutilidade!) segue uma expressão idiomática hebraica que expressa o superla¬ tivo. Outros exemplos são “Cantares” (a melhor canção'), “céu dos céus” (ARC) (“os mais altos céus”, 1 Rs 8.27), “servo dos servos” (ARC) (“escravo de escra¬ vos”, Gn 9.25) e “Lugar Santo” (NTLH) (“Lugar Santíssimo”, Êx 26.33). A natureza superlativa de “vaidade de vaidades” parece fora de lugar, já que o res¬ tante do livro usa esse vocabulário para vários aspectos da vida, mas não como uma avaliação generalizada da vida como um todo (exceto como um forma de englobar o livro todo em 12.8). Isso pode ser uma indicação de que o versículo 2 (e 12.8) tenha sido acrescentado pelo editor final (Rashbam; Japhet e Salters, 1985, p. 92,212). Outra razão pela qual isso parece ser um acréscimo editorial é que Coélet é referido na terceira pessoa.
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O versículo 2 parece indicar que a significância daquilo que Coélet obser¬ va sobre a vida e a natureza não está limitada à sua geração. O verbo hebraico ’ãmar (diz) está no tempo perfeito, que é geralmente traduzido como passado. Entretanto, ele também pode referir-se a um acontecimento que é visto como um todo, embora pudesse não estar completo no momento da escrita. A tradu¬ ção de diz, no tempo presente, enfatiza a contínua relevância e a validade das conclusões de Coélet (Crensaw, 1987, p. 58). O versículo 2 é concluído com a frase: Nada faz sentido! A palavra hebraica kõl ( todas as coisas ou tudo) é encontrada no decorrer do livro em aproximadamente 91 versículos dos 222 versículos do livro. O uso predominante dessa palavra por Coélet transmite uma perspectiva universal e uma preocupação de Coélet com “toda a vida”, enquanto ele reflete sobre o significado da vida (Towner, 1997, p. 278). O versículo 2 serve não só como o tema ou o lema do livro todo, mas também como a declaração de abertura para a introdução (1.3-11). Essa intro¬ dução não usa a palavra hebel, mas descreve a atividade contínua da natureza, a falta de novidades e a falta de memória. O autor descreve as atividades nos versículos 3-11 como hebel, que, no contexto, pode tomar o significado de “in¬ compreensível, ineficiente”. O impacto da aliteração no versículo 2 é gritante. Existe uma preponderância de sons de “h” e “1”, não menos por causa da re¬ petição da palavra hebel (cinco vezes em oito palavras): hãbêl hãbãtím ’ãmar qõhelet hãbêl hãbãlim hakkõl hãbel. O próprio som da frase tem um caráter contínuo e incompreensível. Essa aliteração serve para enfatizar a natureza constante e a incompreensão das atividades descritas nos versículos 3-11.
A PARTIR DO TEXTO Para o autor de Eclesiastes, Salomão é o principal exemplo de alguém que teve grande sabedoria e riqueza, mas que fracassou em alcançar o real significado da vida. Embora as descrições da ciência e da fortuna de Salomão em 1 Reis sejam superlativas, ele terminou a vida longe de Deus, aprisionado pelos próprios prazeres que estiveram disponíveis a ele por causa de sua sabedoria e de seus bens. Logo, o exemplo de Salomão serve como uma terrível advertência àqueles que pensam em fazer do conhecimento e da riqueza um fim em si mesmos e, assim, arriscam perder o verdadeiro significado da vida: um relacionamento correto com Deus e o contentamento com o que Ele, em Sua soberania, tem proporcionado a cada um. Entretanto, para a maioria das pessoas no antigo Israel, a vida na terra não era inútil, embora, em sua fé, não houvesse um desenvolvimento claro da ideia da
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vida após a morte. Os fiéis em Israel estavam compromissados em viver a vida em sua plenitude no aqui e agora. Coélet não diz que a vida, na análise final, é “inútil” ou “absurda”. Embora ele enxergasse a vida como temporária e incompreensível, também a considerava uma dádiva de Deus, que deve ser valorizada e vivida em sua plenitude. É essa percepção da vida que nos leva a encontrar a satisfação em Cristo. É isso que Paulo parecia estar dizendo quando ele escreveu: “Aprendi a adaptar-me a toda e qualquer circunstância” (Fp 4.11; veja também Fp 1.21-26). Viver a vida plenamente, em submissão a Deus, é o antídoto contra o desespero e a inutilidade. Uma imagem da vaidade: o estilo de pintura imóvel, conhecido como “vanitas”, dos séculos 16 e 17, no norte da Europa, é geralmente acompanhado pelo lema de Eclesiastes 1.2 em latim. As pinturas têm a intenção de transmitir a natureza transiente e frágil da vida por meio de símbolos, como crânios, bo¬ lhas, instrumentos musicais e ampulhetas (Leppert, 1996, p. 57,58).
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II. NÃO HÁ LUCRO NO TRABALHO (PRÓLOGO) (1.3-11) POR TRÁS DO TEXTO Os versículos 3-11 seguem o pronunciamento temático de que tudo é vai¬ dade (v. 2). Embora esse pronunciamento possa ter sido um acréscimo editorial e certamente tenha a intenção de funcionar como o tema do livro como um todo, ele também realça a leitura do que vem logo a seguir (1.3-11). Esses versículos formam a introdução do livro e marcam a tonalidade do li¬ vro por completo. Não fica imediatamente óbvio qual é, na verdade, o tom. Os tópicos em questão são o fluxo constante e a natureza insaciável do meio am¬ biente e da vida (ex.: rios correndo para o mar, v. 7). Será que isso torna a vida inútil ou significativa? A estrutura de abertura e o fechamento da passagem parecem sugerir a segunda opção. Não há proveito no trabalho humano (v. 2), e não haverá lembrança na mente das futuras gerações (v. 11). A linguagem usada é também caracterizada pela redundância e pela ajuda a dar ênfase na natureza insignificante da vida. Porém, a falta de lucro duradouro não significa que a vida não possa ser desfrutada de modo significativo, como Coélet deixará explícito nos capítulos seguintes.
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Diversos temas importantes são introduzidos nesta unidade pelo uso das palavras: ganha, trabalho, debaixo do sol e lembra. A observação de que a água flui para o mar, mas não faz o mar transbordar (v. 7), levou à suposição, no mundo antigo, de que a água, de alguma forma,
fazia seu caminho de volta aos rios, especificamente por meio de passagens sub¬ terrâneas. O Targum de Eclesiastes torna isto explícito: “Todos os rios e todas as fontes de água correm e fluem para o oceano, que circula o mundo como um anel, e o oceano não fica cheio; e, para o lugar onde os rios correram e fluíram, de lá, eles tornaram a voltar por meio de canais subterrâneos” (veja Ginsburg, 1861, p. 263). Os versículos 3-11 podem ser rotulados de um poema de reflexão. Esses versículos transmitem as observações do autor sobre diversos aspectos da natu¬ reza e da vida humana. Os artifícios literários incluem formas verbais e nomi¬ nais que usam o mesmo radical (v. 3, trabalho, labuta, 'ãmal), repetição (v. 6) e perguntas retóricas (v. 3,8,10). A repetição enfatiza a mensagem acerca de que não há nada novo (v. 9). Os versículos 3-11 podem ser esboçados do seguinte modo: Ninguém deixa um saldo positivo (1.3) Nada muda (1.4-8) Nada é novo, nada é relembrado (1.9-11) NO TEXTO
A. Ninguém deixa um saldo positivo (1.3) Hl 3 A pergunta retórica de Coélet, O que o homem ganha com todo o seu trabalho em que tanto se esforça debaixo do sol?, introduz um tema im¬ portante: a falta de um lucro duradouro para a atividade humana durante o pouco espaço de tempo de vida de cada indivíduo. Coélet usa a palavra homem ( ’ãdãm) no versículo 3 e em outros lugares do livro de uma forma genérica, referindo-se a toda humanidade (mas veja o comentário em 7.28). O trabalho infindável, sem qualquer ganho, é a porção de toda a humanidade. A serventia ou o que se ganha (yitrôn) não é o saldo normal que surge da atividade comercial ou do emprego. É o ganho extra que permite que alguém seja bem-sucedido e deixe um saldo positivo no fim da vida (a forma da raiz
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yãtar significa “permanecer além”). Por exemplo, o lucro do fazendeiro é o excesso da safra, que poderia ser vendido depois de suprir as necessidades de sua família e dos animais e de garantir a semente para o próximo ano. Em um empreendimento de negócios, o ganho era o saldo que permitia a expansão do negócio, e não apenas o pagamento dos empregados e das dívidas e a compra do novo estoque. A palavra é de origem aramaica (Fredericks discorda; 1988, p. 277) e ocorre apenas em Eclesiastes (1.3; 2.11,13; 3.9; 3.9,16; 7.12; 10.10,11), mas é comum no hebraico pós-bíblico (Ginsburg, 1861, p. 260). Isso sugere uma data pós-exílica para o livro. Outras palavras para “proveito” ocorrem no decorrer do AT (yã 'al, sãkan, hãlaq, bãsa '), e a pergunta retórica “O que ganha?” ocorre 19 vezes (ex.: Hc 2.18; Jó 21.15; oito vezes em Eclesiastes; Johnson, 1986, p. 127,128).
Diálogo entre um homem e sua alma Você não é um homem? Verdadeiramente, está vivo, mas que pro¬ veito tem? No entanto, você anseia pela vida como um homem próspero (Faulkner, 1973, p. 203).
A palavra ganha assinala um interesse comercial em Eclesiastes, que é evidenciado por uma infinidade de termos comerciais e um interesse em empreendimentos empresariais (ex.: 5-14). Ela é também um dos quatro exemplos que Seow identificou, os quais ocorrem como termos económicos nos textos aramaicos egípcios do quinto século a.C. (mas não antes do quinto século; também “faltando”, 1.15; “razão”, 7.25; “riquezas”, 6.2) (1997, p. 13). Em Eclesiastes, o termo ganha ou serventia é usado em contraste com “lote” ou “porção”. Embora houvesse jovens empreendedores nas economias emergentes da era pós-exílica que orientassem sua vida em torno do lucro, Coélet aconselhava o contentamento com a porção de cada um. A riqueza e a sa¬ bedoria não seriam suficientes para controlar a vida em um mundo incompre¬ ensível e imprevisível (hebel). O que é necessário, em vez disso, é a submissão à soberania de Deus, que conduz ao contentamento com a porção que Ele tem atribuído a cada indivíduo. O lucro em questão é o resultado do trabalho ( ãmãí). Esse trabalho não é o exercício positivo de um trabalhador realizado. Seu uso predominante indica
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uma ênfase peculiar de Coélet (22 das 50 vezes na Bíblia hebraica). O termo aqui conota um serviço árduo e é, às vezes, traduzido como “tristeza” (Jr 20.18; existem mais palavras neutras para “trabalho”, mã 'ãseh, 'ãbôda). Isso é intensi¬ ficado pelo uso do mesmo radical para substantivo e verbo: Todo o seu trabalho em que tanto se esforça (bêkol- ãmãlô seyya 'ãmõl). A ênfase está, portanto, na
aflição, no sofrimento e na dor do trabalho duro, o destino dos humanos refle¬ tido na narrativa de Génesis 3 (Towner, 1997, p. 280). A frase em que tanto se esforça debaixo do sol contém um vocabulário especial de Coélet. O pronome relativo que {se) não é incomum no hebraico pós-exílico, mas o uso por Coélet é incomum, porque o autor também usa uma palavra mais longa com o mesmo significado ( 'ãser). A maioria dos livros bíbli¬ cos usa uma ou outra. Não há uma explicação para essa combinação, a não ser que Coélet esteja tentando retratar os enigmas da vida usando uma linguagem enigmática. A expressão debaixo do sol é exclusiva de Eclesiastes no AT (usada 29 vezes; Eclesiastes é responsável por 35 ocorrências da palavra sol, do total de 184 do AT). Em inglês, a conotação de debaixo do sol pode ser negativa, espe¬ cialmente no contexto de fadiga. Trabalhar debaixo do sol quente é cansativo (Sl 121.6). Contudo, o sol também representava luz e fonte de vida no mundo antigo e era até objeto de veneração (Sl 84.11; Ec 11.7). A expressão preferida no AT é “debaixo do céu”, que também é usada por Coélet (1.13; 2.3; 3.1). Parece que debaixo do sol se refere ao mundo dos vivos, enquanto “debaixo do céu” não faz distinção entre a existência mortal na terra dos vivos ou no Sheol, o submundo. Entretanto, Coélet usa ambas as expressões, sem qualquer diferença aparente no significado. Coélet também pode estar enfatizando a universalidade de suas observações (Elubbard, 1991, p. 46). O intérprete judeu medieval Ibn Ezra viu na expressão debaixo do sol uma alusão ao tempo giratório, o que é consistente com a interpretação co¬ mum do versículo 5 como uma ênfase nos ciclos do sol (veja Ginsburg, 1861, p. 49). O versículo 5, porém, está mais provavelmente enfatizando uma ativi¬ dade contínua e constante em vez de ciclos. Debaixo do sol é usado em alguns textos extrabíblicos, incluindo textos gregos. Isso não comprova a influência grega, já que também é usado em documentos fenícios e elamitas do sexto e sé¬ timo séculos a.C. (Eaton, 1983, p. 58). O foco particular da frase do versículo 3 é, aparentemente, a brevidade da vida de um indivíduo quando comparada à constância da natureza. A vida individual dura “apenas um dia” (i.e., um sol), enquanto a terra permanece para sempre (v. 4, ôlãm).
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Epopeia de Gilgamesh, 2000—1550 a.C. Tenho de deitar minha cabeça no coração da terra para que possa dormir por todos os anos? Deixem meus olhos contemplarem o sol Para que eu obtenha minha porção de luz! As trevas se retiram quando há luz suficiente. Que aquele que está morto possa ainda contemplar o resplendor do sol! (Versão da Antiga Babilónia; Pritchard, 1969, p. 89)
O que os humanos ganham com o trabalho se eles estão apenas sobrevi¬ vendo? Isso é como o provérbio do menino, que reclamou por não aprender muito na escola, como evidenciado pelo fato de ele ter de voltar ao colégio no dia seguinte! Assim como o sol se levanta ( sô’êp) em seu trajeto ao céu (1.5), os homens estão presos em uma correnteza infinda de eventos que não podem ser compreendidos ou controlados. O contexto é necessário para determinar a resposta desejada para essa pergunta retórica. Uma série de valores positivos do trabalho poderia ser enumerada se o versículo 2 já não tivesse declarado tudo como bebei, e os versículos seguintes não enfatizassem a constância da natureza. Da forma como está, a resposta para a pergunta retórica é “nada”. Nada há para ganhar-se com o trabalho da humanidade. Uma vez que a vida humana acaba, o mundo continua sendo o mesmo que sempre foi. Nenhum saldo positivo é deixado para trás. Esse é um tema importante em Eclesiastes, já que sugere uma falta de contentamento com a porção que Deus tem dado. Embora exista uma definitiva satisfação em um dia de trabalho intenso (5.12), haverá uma insatisfação se aquele trabalho estiver orientado em torno da luta por um lucro excessivo.
B. Nada muda (1.4-8)
140 versículo 4 dá continuidade ao tema da atividade infindável com a frase gerações vêm e gerações vão, ou mais literalmente; Uma geração vai, e outra geração vem. O verbo ir (hãlak ) é usado em outros lugares para referir-se à morte, tanto em Eclesiastes (3.20; 5.15) como em outros textos do AT (SI 39.13; Jó 10.21; 14.20; 2 Sm 12.23). O uso desse verbo é importante nesta unidade e ajuda a enfatizar a natureza contínua da vida. O particípio aqui (hõlêk ), que enfatiza uma ação contínua, acrescenta peso ao tema.
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Embora a vida humana individual não dure muito “debaixo do sol” no quadro geral, existe uma constância da vida humana. Uma geração vai para o túmulo, enquanto outra vem ao mundo (o hebraico bô’ pode significar “vir” ou “entrar”). O foco da palavra gerações (dôr) está no grupo de pessoas (fami¬ liares), e não na quantidade de tempo (esta, às vezes, significa “habitação”; Is 38.12 ARA). São as pessoas que vêm e vão, e não o tempo que vem e vai. Ogden sugere que o destaque poderia estar nas gerações da natureza, em vez de pessoas (1987, p. 30). Enquanto as gerações humanas vêm e vão, a terra permanece para sem¬ pre. A terra representa o primeiro dos quatro elementos que os filósofos da antiguidade discutiam. Os outros, ar, fogo e água, são assuntos dos próximos versículos (Ibn Ezra, veja Ginsburg, 1861, p. 261). Para sempre ( 'ôlãm) não tem uma conotação de infinito em hebraico como tem em nossa língua. Ôlãm significa muito tempo, ou uma era, seja no passado ou no futuro (o pensamento hebraico antigo tinha a tendência de ser mais concreto do que abstrato). Essa última parte do versículo 4 é, geralmente, entendida como um con¬ traste entre a permanência da terra e a natureza temporária da vida humana. No entanto, Fox parece estar certo quando sugere que a ênfase está na natureza imutável da humanidade (i.e., o mundo), e não na permanência da terra (1999, p. 166). Gerações vão ou andam (hõlêk ), enquanto a terra permanece ou fica ( 'õmãdet, Ginsburg, 1861,p. 261; veja SI 104.5; 119.90). Seja indo ou ficando, tanto a vida humana quanto a própria terra (ou o mundo, i.e., a população) permanecem, em essência, as mesmas. Então, a conjunção (mas) deveria pro¬ vavelmente ser entendida como “e/também”. Não obstante, ao fazer alusão à morte, Coélet também marcou a brevidade da vida humana individual. É precisamente por causa do contínuo ir e vir das gerações humanas que uma vida humana individual pode fazer pouca diferença (ou “proveito”) para o todo. 15 O versículo 5 mostra a natureza imutável da atividade do sol. Se Coélet estivesse interessado na economia de palavras, então a expressão “o sol nasce e se põe” teria sido suficiente. A repetição de sol na frase dá acréscimo ao impac¬ to poético e ajuda a enfatizar a natureza infinita da vida, que é o assunto desta unidade. Há uma anomalia no hebraico da primeira palavra do versículo 5, que é literalmente se levantou ou se levantará (perfeito Qal, wêzãrah). Os outros ver¬ bos desse versículo são particípios, enfatizando o movimento contínuo do sol (até a outra ocorrência da palavra levanta está no particípio, zôrêah). Logo,
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wèzãrah é normalmente traduzido como particípio (levantado), com a supo¬ sição de que as duas primeiras consoantes da palavra foram invertidas por erro do escriba (chamado de metátese; wzrh, em vez de zwrh, sugerido pela BHS. As duas primeiras letras parecem idênticas no hebraico, waw e zayin, 1 e T). Entretanto, o mesmo resultado é possível ao trocar apenas as vogais, o que tem a vantagem de preservar as consoantes ( wêzôrêah; Kriiger, 2004, p. 47). A linguagem do versículo 5 reflete a visão da antiguidade do sol nascendo e se pondo. O uso moderno mantém esse vocabulário, mas nós entendemos que o sol fica parado, enquanto a terra gira ao redor dele. A cultura hebraica antiga não entendia isso, mas baseou sua ciência na observação. O sol se põe é literalmente o sol entra., isto é, ele entra na terra. A cosmologia antiga explicava o surgimento do sol de volta no leste todos os dia, com a suposição de que ele houvesse viajado debaixo da terra (atravessando o Sheol) para voltar ao seu lugar. A “corrida” do sol poderia ser uma analogia ao trabalho humano. O sol está suspirando de exaustão ao percorrer seu curso inútil pelo céu mais uma vez, assim como os jumentos selvagens suspiram por ar em exaustão e fome (Jr 14.6). O suspiro traz à mente o significado literal de hebel, “fôlego”. Contudo, a “corrida” ( sô’êp, “suspirar” ou “apressar-se”) parece ser positiva aqui; um sus¬ pirar de antecipação. Assim, no Salmo 19.5, o sol é retratado como um noivo que deixa o seu aposento e percorre o seu trajeto com alegria, retornando como um homem forte. Gordis pensa que o autor transmite no versículo 5 a ideia dos ciclos do sol como “monótonos, exaustivos..., sem alegria ou significado” (1968, p. 206). No entanto, Weeks sugere que o movimento constante, e não a natureza cíclica do movimento do sol, possa ser o foco aqui (2008). Logo, a atividade do sol permanece imutável pelo trabalho humano, e a terra, também (v. 4). 16 O assunto do versículo 6 é adiado no hebraico, para que o leitor seja atra¬ ído à presunção de que ainda é o sol que vai para o sul e vira para o norte; dá voltas e mais voltas, seguindo sempre o seu curso (veja a Septuaginta). À primeira vista, isso parece um absurdo (o sol viajar do leste para o oeste, e não do norte para o sul), e a maioria dos intérpretes vê o vento como o sujeito. O problema é que o vento na Palestina, geralmente, sopra do oeste para o leste (saindo do Mediterrâneo). O sujeito detido tem o efeito de retratar tanto o sol como o vento circulando. A palavra virar é usada quatro vezes (sõbêb>, vira, voltas, voltas, curso), e ir é usada duas vezes ( hõlêk , sopra, vira). A repeti¬ ção de palavras parece enfatizar a atividade contínua do sol e do vento. Isso também sugere que sõbêb e sêbibõtãyw (voltas e voltas; curso), no versículo 6b, deveriam ser traduzidos no sentido normal de “girar”, já que o vento não
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ciclos previsíveis (11.4,5), e a ênfase parece estar na atividade contínua do vento (Weeks, 2008). Pode ser que Coélet queira completar os quatro pontos cardeais para mostrar a natureza compreensiva da atividade do sol e do vento. O movimento norte-sul do sol não era problemático para os intérpretes da antiguidade, que presumiam que o sol fazia o seu caminho de volta para o leste todos os dias, por uma rota norte invisível, ou interpretavam o versículo 6a como uma referência ao movimento norte-sul do sol durante o espaço de um ano (Weeks, 2008). Então, ao que parece, o versículo 6a confirma que a menção ao sol no versículo 5 não enfatiza os ciclos, mas um movimento varia¬ do e especialmente contínuo. Assim como as gerações e a terra, a atividade do sol é constante e não muda com a atividade dos humanos enquanto eles lutam pelo lucro. H 7 A constante atividade do sol e do vento é equiparada aos rios, no versículo 7. O ciclo de evaporação e precipitação era um mistério no mundo antigo. Aristófanes também ficava surpreso pelo fato de o mar não aumentar de volume, apesar de ser suprido pelos rios (veja Barton, 1908, p. 74). Os antigos hebreus, aparente¬ mente, acreditavam que a terra fosse um disco que flucuava sobre o oceano, e que essa água (que já não mais era salgada) fazia um caminho para cima, por meio da terra, para reabastecer os ribeiros e as fontes. Essa visão é refletida no intérprete judeu medieval Rashi, que cita, com aprovação, o livro Siphri: “Elas retornam por uma passagem submarina, e vão novamente sobre a terra para o mar, e voltam de novo por baixo do mar” (veja Ginsburg, 1861, p. 39). Entretanto, a água que volta pode não ser um problema em 1.7. O hebrai¬ co literalmente diz: Ao lugar (o mar) onde os ribeiros vão, eles tomam a ir {ou estão retomando para ir). A ênfase está no fluxo contínuo das águas, e não em seu retor¬ no ou de onde ele vem (assim consta em Hertzberg, citado por Gordis, 1968, p. 207). Embora a palavra súb, em geral, signifique “retornar”, nesse contexto, ela significa “novamente” (BDB 998a; Delitzch, 1875, p. 223; veja 4.1,7; 9.11). Brown vê a atividade dos versículos 4-7 como penosa e sem propósito (2000, p. 23). Isso é extraordinário, já que a previsibilidade da natureza tem sido celebrada em outro lugar da Escritura como elemento de uma ordem di¬ vinamente estabelecida do universo (Gn 1 ), conforme necessário para a vida, desde um desvio que pudesse causar um dilúvio desastroso (Gn 8.21,22) e como o produto da sabedoria de Deus (Pv 8.22-31). O sol faz o que faz todos os dias, porque Deus o criou dessa maneira (Gn 1.16-18); qualquer desvio seria um caos. O mar não transborda porque Deus determinou limites para que ele não pudesse atravessá-los (Gn 1.6-10; Pv 8.27). Tudo isso foi declarado bom tem
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em Génesis 1, e, no entanto, Coélet parece achar isso tedioso. Bonaventura percebeu essa anomalia no século 13 d.C. (Ginsburg, 1861, p. 109). É possível que Coélet questionasse as considerações recebidas sobre a ordem na natureza. Seu livro desafia a sabedoria naturalsobre a ordem moral. No entanto, esse não parece ser seu ponto de vista no capítulo 1. A evidência revela uma visão positiva ou, pelo menos, neutra, da previsibilidade da natureza. O ponto de vista dele é que a atividade humana não muda as funções básicas do universo. 18 0 versículo 8 estende a constância da natureza ao caráter contínuo da atividade humana. A expressão todas as coisas também poderia ser traduzida como todas as palavras (haddèbãrim), e todas as outras ocorrências de haddèbãrim, em Eclesiastes, têm o significado de palavras, e não de coisas. Essa tradução [palavras) c relevante, uma vez que a próxima sentença é, literalmente, ninguém é capaz de dizer (não é capaz de descrevê-las), e, mais adiante, no versículo, o ouvido está cheio de ouvir palavras. A menção de canseira [yègé 'im) parece, a princípio, confirmar a interpre¬ tação da repetição monótona da natureza nos versículos 4-7. Todas as palavras foram usadas excessivamente. Ficaram cansados (“débeis”, Ginsburg, 1861, p. 263) e cansaram-se aqueles que ouvem, embora Ibn Ezra rejeite a interpreta¬ ção transitiva (veja Ginsburg, 1861, p. 51,264). O adjetivo ocorre apenas mais duas vezes (ambas intransitivas; Dt 25.18; 2 Sm 17.2). O verbo é intransitivo quando está na conjugação Qal e transitivo quando, na Piei (Ec 10.15; Js 7.3). Dessa forma, Delitzsch rejeitou a tradução palavras e argumentou que as coi¬ sas mencionadas anteriormente (gerações, sol, vento, rios) são cansativas ou estão em trabalho de parto (1875, p. 224). Essa interpretação vê o versículo 8a como uma conclusão das observações da natureza, que são vistas como uma analogia à atividade inútil do universo humano. Parece, porém, que as observações da atividade humana são meramente mais evidências da constância da vida, da incapacidade de a atividade humana causar uma impressão duradoura no mundo. Assim, Weeks interpreta o versí¬ culo 8a como uma pergunta retórica, apoiando as afirmações do restante desse mesmo versículo: “Quando todas as palavram estiverem desgastadas, será que não se poderá mais falar?” (2008). A resposta para isso é sim. O falar não cessa por causa de todo o cansaço das palavras, tampouco cessam o ver e o ouvir. Es¬ sas atividades nunca terminam (a NEB traduz a segunda metade do versículo 8 como uma pergunta e a primeira metade como uma afirmação). O olho já viu tudo, mas não está satisfeito, e o ouvido já ouviu tudo, mas, as¬ sim como o mar, ainda não está cheio. Embora a ênfase disso esteja na constância
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do mundo, que não é transformado pelo proveito humano, ela também ante¬ cipa um tema que virá mais tarde no livro; isto é, a falta de satisfação humana (4.4; 5.10).
C. Nada é novo, nada é relembrado (1.9-11)
■ 9 Coélet continua o seu argumento de que nada pode ser acrescentado ao mundo ao acompanhar os exemplos específicos dados nos versículos 3-8 com afirmações gerais; O que foi tornará a ser, o que foi feito se fará novamente; não há nada novo debaixo do sol. Com essas reivindicações, Coélet rejeita a possibilidade de que o esforço humano possa fazer a diferença no mundo. O versículo 9 introduz uma característica linguística incomum, envolven¬ do o raro pronome relativo se (veja comentário em 1.3). Essa é uma combinação mah-sse- (literalmente, o qual, o que) com o sentido de “aquilo que”. Geralmente, mâ é uma interrogação (“o quê?”). Tal combinação é comum em Eclesiastes (1.9; 3.15,22; 6.10; 7.24; 8.7; 10.14) e no Mixná. É equivalente às expressões aramaicas mãh-zi e mãh-di (Dn 2.28,29). 10 “Não há nada” ( ên kot), no versículo 9, é equiparado a há alguma coisa (haverá algo ,yés dãbãr), no versículo 10. “Veja! Isto é algo novo!” é uma ci¬ tação hipotética que é negada. Qualquer um que diz que alguma coisa é nova está errado. Já existiu há muito tempo (desde a antiguidade; lit.: há séculos, lê 'õlãmim). Esse uso irónico de “não há nada” parece ser um criticismo sutil da tradição da sabedoria que, frequentemente, introduz um provérbio de sabedo¬ ria com esses dizeres (oito vezes em Provérbios). Coélet tem mais críticas da tradição da sabedoria, mais adiante, no livro. Entretanto, a negação da novidade de Coélet não é absoluta. O próprio Coélet introduz a novidade ao escrever seu livro usando uma linguagem que é peculiar ou nova na literatura do AT. O versículo 10 usa uma palavra excepcional para já (kèbãr), que somente ocorre em Eclesiastes (oito vezes). Exis¬ tem muitas outras características exclusivas no linguajar de Coélet. A palavra antes (lêpãnênú) trai o conceito hebraico de avançar o tempo, já literalmente significa em face ou diante de (BDB 816b). Em vez de marchar que adiante para o futuro, a mente hebraica concebia caminhar de ré para o futuro, o que é sensato, já que podemos ver o que já foi, mas não o que ainda será. De ma¬ neira semelhante, o advérbio depois (i.e., o que acontece mais tarde ou no futuro, 'ahar, 4.16) literalmente significa atrás, para trás (a parte de trás) (BDB 29b).
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Assim como a incapacidade de os seres humanos acrescentarem ganho ao mundo vai contra o ensinamento padrão da sabedoria, a negação da novidade vai contra os ensinamentos bíblicos em outros lugares. As ações de Deus no decorrer da história de Israel envolviam a novidade, e os profetas anunciaram uma nova aliança (Jr 31.31-33), um novo coração (Ez 18.31) e um novo êxodo (Is 43.5,6). Porém, embora Coélet seja pessimista quanto à capacidade humana de fazer a diferença, ele é mais positivo quanto ao poder de Deus e advoga a submissão humana à Sua soberania (3.14). H 11 Coélet também descarta a reivindicação hipotética da novidade (v. 10), com a afirmação no versículo 11 de que qualquer que diz que existe algo novo, simplesmente, não se lembra desse mesmo fenômeno no passado. A falta de memória está relacionada aos que precederam (que viveram na antiguidade, lãri ’sonim) e aos que hão de ser (aqueles que ainda virão, lã 'ahãrõnim). Isso pode referir-se a pessoas, a coisas ou ao tempo. No fluxo do argumento, todos os três já passaram e serão esquecidos. Ginsburg era favorável à interpretação de “pessoas”, pois via a unidade toda como um contraste entre a natureza duradoura e a humanidade fugaz (1861, p. 267). Isso é apoiado pela forma masculina de precederam e hão de ser, que sempre se aplica a pessoas, enquanto a forma feminina é usada para coisas (Is 42.9; 48.3 etc.). A fadiga das gerações precedentes não fez diferença nas atividades da natureza humana. Ela nem mesmo é lembrada.
A PARTIR DO TEXTO
Não há lucro no trabalho Nesta unidade (1.3-11), Coélet convida seus leitores a refletirem no lucro do trabalho, que é uma preocupação para os seres humanos. Será que existe proveito no trabalho de alguém? Será que o esforço humano pode acrescentar alguma coisa ao mundo? A resposta é não. O trabalho humano não deixa um saldo positivo que faça alguma diferença perceptível no mundo (v. 3). As gera¬ ções continuam vindo (v. 4), o sol continua brilhando (v. 5), o vento continua soprando (v. 6), os ribeiros continuam fluindo (v. 7), bocas, olhos e ouvidos continuam falando, vendo e ouvindo (v. 8), e as coisas do passado continuam rumo ao futuro, e não há nada novo (v. 9,10). Qualquer percepção contrária é simplesmente uma falta de memória, e as realizações humanas atuais também não serão lembradas (v. 11).
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Esse é um corretivo útil para as tentativas humanas de controlar os resulta¬ dos, e até de controlar Deus. No sistema do mundo como um todo, o trabalho humano não deixa um saldo positivo. Portanto, cabe ao povo aceitar a sobe¬ rania de Deus e ficar satisfeito com os dons que Ele dá, e, se não houver um esforço infindável, isso não fará uma diferença duradoura. A satisfação na vida só pode vir por meio da rendição do controle de Deus e do Seu tempo. Isso significa desfrutar a vida e até o trabalho, que vêm a nós como dádivas bondosas e uma oportunidade de participar da obra criativa de Deus no mundo por intermédio da instituição humana. Paulo convida os colossenses a abordarem o trabalho “de todo o coração, como para o Senhor” (Cl 3.23), logo, dando à atividade humana um significado em Jesus. Até o sofrimento tem significado para aqueles que estão em Cristo (1 Pe 4.13). A chamada dc Coélet ao contentamento critica aqueles que usariam a doutrina da retribuição como um meio de obter riqueza e uma vida fácil. A ideia de que a justiça gera recompensa para o indivíduo é um ótimo tema do livro de Provérbios. Essa é uma doutrina valiosa quando se dirige ao público jovem de Provérbios, o qual precisa saber que suas ações têm consequências. Entretanto, quando é levada ao extremo, ela pode induzir a abusos, tal como a atitude julgadora dos conselheiros de Jó, que presumiram que o sofrimento dele fosse o resultado do pecado (veja também Pv 11.6; 13.23; 14.13; 21.31). Ela também está sujeita ao abuso quando tomada como garantia de uma vida boa que, depois, torna-se uma motivação inapropriada para a justiça. Esse pa¬ rece ser o abuso que Coélet ataca. O trabalho é bom, assim também como a sabedoria e a justiça, mas o lucro do trabalho não deve ser o fim em si mesmo, nem a sabedoria e a justiça devem ser impulsionadas por motivos egoístas.
Novidade e fama A lembrança do passado era muito importante na cultura hebraica, por¬ que a imortalidade era alcançada por meio da memória (o AT não desenvolve a doutrina da ressurreição em grande extensão). Coélet desafiava a ênfase de¬ masiada na reputação de alguém após a morte (7.1,2), já que parecia que as gerações passadas eram logo esquecidas. O NT trata dessa deficiência na ressur¬ reição. A imortalidade não será apenas por meio da memória. A reivindicação de Coélet de que nada é novo é extraordinária para nós, que temos visto uma rápida mudança na era moderna. Parece que, em grande parte, Eclesiastes foi escrito para um público que havia crescido com uma sabedoria
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simplista, e este, tendo amadurecido, foi tentado a abandonar aquela sabedoria em favor de novas possibilidades. Coélet concorda até certo ponto. No entan¬ to, a sabedoria ainda tem valor, embora necessite ser matizada. De algumas formas, esse sentimento ecoa no poema “The Gods of the Copy Book Headin¬ gs”, de Kipling, em 1919. O título refere-se aos cadernos de exercícios usados na escola na época dele. Provérbios eram impressos no início de cada página, para que as crianças copiassem e, assim, aprendessem a sabedoria tradicional enquanto praticavam a caligrafia. O poema de Kipling nota o desvio da sabe¬ doria tradicional, na época dele, em favor de uma mudança que deveria trazer um mundo melhor. A Primeira Guerra Mundial (1914 1919) deixou tais es¬ peranças estilhaçadas, e a sabedoria proverbial dos cadernos de exercício, de re¬ pente, tornaram-se relevantes novamente. Coélet pode contestar tais esperan¬ ças e sonhos com um provérbio dele próprio: Não há nada novo debaixo do sol (1.9). Apesar dos rápidos avanços tecnológicos da era moderna, ainda há valor na antiga sabedoria, embora não deva ser simplificada demasiadamente.
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Vaidade (hebel) O leitor é alertado para a temática “vaidade” (inutilidade, hebel) pelo palavra hebel não é usada em 1.311.0 sentido no qual as atividades da vida e da natureza e a falta de novidade e memória nos versículos 3-11 são consideradas hebel não é imediatamente óbvio. Será que elas são inúteis, temporárias ou incompreensíveis? É o trabalho humano que é temporário e inconsequente quando justaposto com as ativida¬ des da natureza e até da humanidade como um todo. Isso não é verdade em sentido absoluto. Como Towner diz: “Atos de coragem, bondade e compaixão” realmente fazem a diferença no mundo e representam a participação na “eter¬ na realidade do amor de Deus”, como revelada por intermédio de Jesus Cristo (1997, p. 294). tema editorial do livro no versículo 2, mas a
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III. FUI REI EM JERUSALÉM (INTRODUÇÃO) (1.12-2.26) POR TRÁS DO TEXTO Eclesiastes 1.12 junto com 1.1 levam a mente do leitor ao magnífico rei Salomão. Embora o livro, provavelmente, não tenha sido escrito por Salomão, suas famosas sabedoria e riquezas (1 Rs 4; 10) preparam o palco para o argu¬ mento de Coélet de que até a maior sabedoria e riqueza possíveis não podem trazer uma satisfação duradoura. As unidades anteriores do livro estabeleceram o tema de hebel e da cons¬ tante natureza da vida. Esta unidade dará um exemplo do grande rei Salomão, do qual poderíamos esperar que tivesse a capacidade de encher seus cofres e de experimentar a sabedoria ao máximo. Entretanto, até mesmo ele foi incapaz de satisfazer essas buscas, assim como os ribeiros nunca enchem o mar (1.7). A busca de Salomão por satisfação nessas coisas resultou na corrida atrás do vento, uma tarefa que nunca termina (2.11; 1.6). Esta unidade será seguida pelo tópico da soberania e do tempo de Deus (3.1-22), que enfatiza o contraste
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entre o constante anseio humano e a aceitação de tudo o que Deus tenha dado
em Seu tempo (3.11).
Reis vangloriosos Na antiga epopeia épica de Gilgamesh, o herói é um rei que teve muitas realizações em sua cidade, Uruk, incluindo ver, experimentar e
considerar tudo, até uma longa viagem em busca da imortalidade. Ele construiu o muro e o santuário de sua cidade com tijolos de alta qualida¬ de, e o documento diz que os seus feitos foram inigualáveis e não serão equiparados por nenhum futuro rei (Pritchard, 1969, p. 73). Isso forma parte do pano de fundo para a vanglória do rei em Eclesiastes 1.12—2.26. Gilgamesh também está colocado no contexto de uma busca falida pela imortalidade, que se assemelha à afirmação de Coélet sobre a finalidade da morte (3.19; 9.2,5,6,10). Coélet pode também estar zombando das ins¬ crições reais que vangloriaram os feitos dos reis, como a inscrição fenícia de Karatepe (oitavo século a.C; Fox, 1999, p. 154).
A concessão real O tema "porção" ou "recompensa" (heleq , 2.10,19) parece estar rela¬ cionado ao sistema persa de concessão de propriedades, que geralmente
favorecia parentes e amigos do rei. Essas concessões vinham com a res¬ ponsabilidade de coletar-se os impostos, mas também permitia que o beneficiário ficasse com uma porcentagem desses rendimentos. Certo contrato aramaico refere-se a isso como "a minha porção do rei" (Seow, 1997, p. 24). Outro vocabulário das concessões reais também é usado
em Eclesiastes (veja 5.18-20). As concessões não eram necessariamente herdadas pelos herdeiros do beneficiário. Isso justifica a preocupação em 6.2 de que um estranho herdará o fruto do trabalho de alguém. Coélet parece aplicar essa instituição da concessão real à humanidade em geral, que recebeu o dom da vida por parte de Deus como uma concessão real.
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O gênero de 1.12 2.26 é uma autobiografia real, um tipo de reflexão. Esse gênero é também conhecido em outros documentos antigos, como as instruções
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egípcias de Amenemhat e Merikare (Pritchard, 1969, p. 414-419); veja tam¬ bém Longman, 1991, p. 1-274; Longman, 1997, p. 15-20). Ele também se assemelha às “biografias do túmulo” gravadas nas paredes dos jazigos egípcios. Estas continham um recital de realizações, uma coleção de máximas e exortações para refletir sobre a morte (Davis, 2000, p. 174). Os recursos literários incluíam variações do ditado “é melhor que” (2.13,24) e metáforas (2.14). A palavra coração (lêb ) é repetida 14 vezes nesta unidade (41 vezes no livro todo), com o sentido de “mente”. As traduções em inglês nem sempre transmitem essa pa¬ lavra como “coração”, mas geralmente traduzem lêb como comigo mesmo ou mente (veja 2.3). A repetição da palavra coração mostra a natureza pensativa e autobiográfica desta unidade e do livro como um todo. Eclesiastes 1.12 2.26 pode ser esboçado da seguinte forma: Estudei e pesquisei (1.12-18) Experimentei o prazer e a riqueza (2.1-11) Experimentei a sabedoria (2.12-16) Comecei a desesperar-me (2.17-23) O que fazer? Desfrute! (2.24-26)
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NO TEXTO
A. Estudei e pesquisei (1.12-18) I 12 O versículo 12 começa com uma autoidentificação (eu, o mestre, fui rei de Israel em Jerusalém) que identifica claramente esta unidade como uma autobiografia real. Existem duas formas do pronome na primeira pessoa (eu) em hebraico. Coélet consistentemente usa a forma mais curta e mais recente 'ãni, em vez de ’ãnõki. A autoidentificação é semelhante à nota do editor no início ( 1.1 ) ; o editor pode ter estruturado o início com base nesse versículo. O versículo 12 pode ser uma imitação de outros textos reais antigos, tais como: “Eu sou Kilamuwa, filho de Hayya”, “Eu sou Yehaumilk, rei de Byblos” e “Eu sou Azitawadda, bendito de Baal” (Fox, 1999, p.170,171). Coélet também é identificado no versículo 1 como rei em Jerusalém. A expressão de Israel estreita a possibilidade de identidade do rei no versículo 12. “Filho de Davi”, no versículo 1, poderia significar qualquer descendente de Davi, e em Jerusalém sugere a possibilidade de quaisquer dos reis de Judá. No entanto, de Israel só pode ser aplicado a Saul, Davi ou Salomão, que foram reis
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durante os dias da monarquia unificada, ou àqueles que reinaram sobre o reino do norte após a divisão do reino de Salomão, em 922 a.C. A expressão “filho de Davi” exclui a possibilidade de quaisquer reis do norte, porque eles não perten¬ ciam à linhagem davídica. Já que Jerusalém não era a capital de Israel durante os dias de Saul, pode-se fazer uma presunção razoável de que Salomão seja o rei sugerido no versículo 12. Essa conclusão, entretanto, não significa que Salomão tenha escrito Eclesiastes, mas que essa autobiografia real está baseada na vida dele e contém lições retiradas de sua experiência. Não há indicação no livro de Reis de que Salomão ti¬ vesse remorsos no fim de sua vida. O autor de Reis conclui a narrativa do reinado de Salomão com uma forte condenação de sua idolatria (1 Rs 11.9,10). A forma gramatical das palavras fui rei (hãyttí melek) parece indicar que o indivíduo sugerido pelo versículo 2 já não era mais rei quando Coélet escreveu a sua obra. Isso apresentou um problema para os rabis antigos, porque implica que Salomão não foi o autor (a conclusão de Ginsburg; 1861, p. 245). Alguns rabis lidaram com isso supondo que Salomão tenha sido forçado a renunciar seu trono por um demónio chamado Ashmedai (Talmud, Gittin 68a). Outros interpretaram melek (rei) como “professor” e, assim, removeram a reivindica¬ ção da autoria de Salomão (Crenshaw, 1987, p. 71). A escolha do verbo foi provavelmente afetada pelo artifício literário de Coélet de escrever na voz de um rei do passado distante. De outra forma, se o autor fosse contemporâneo de Salomão, ele poderia ter usado o imperfeito ou o particípio (o último é muito comum em Eclesiastes). 13 No versículo 13, o rei que Coélet introduziu no versículo 12 começa a recontar sua jornada de busca e a investigar (...) tudo que é feito debaixo do céu. A expressão idiomática apliquei o meu coração (dediquei-me) refere-se à concentração da mente. O hebraico antigo não tinha o conceito da função do cérebro e atribuía todo poder de pensamento ao coração (acreditava-se tam¬ bém que outros órgãos estavam envolvidos na emoção: fígado, rins, entranhas; vejais 10.7; Jz 16.17; Jó 12.3; Jr 11.20; Lm 1.20; 2.11). Isso estava começando a mudar na época em que Daniel foi escrito; Nabucodonosor e Daniel tiveram visões na cabeça (Dn 2.28; 4.5,10,13; 7.1,15). A missão agora é investigar e explorar. Essa investigação e essa exploração serão feitas pela sabedoria (hokmâ). A sabedoria é a palavra-chave em Ecle¬ siastes (ocorrendo 53 vezes, incluindo as formas verbais).
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Hokmâ (sabedoria) A ênfase na sabedoria não está na capacidade intelectual, mas na prudência, no sentido de fazer um julgamento apropriado e de escolher o melhor curso de ação. O sentido literal concentra-se na habilidade, e essa palavra foi usada para descrever a habilidade dos construtores do tabernáculo (ex.: Êx 28.3). Logo, a sabedoria é a habilidade de vida; não significa apenas saber o que fazer, mas fazê-lo. Esse é o foco da literatura da sabedoria como um todo, que é primariamente voltada para os rapa¬ zes que estão aprendendo a tomar decisões sábias na vida — escolhas que conduzirão à prosperidade e ao bem-estar.
Coélet resolveu pesquisar todos os feitos que se realizam debaixo do céu. Coélet usa essa expressão três vezes no livro, em vez de sua expressão favori¬ ta debaixo do sol, que também ocorre no próximo versículo. Debaixo do céu parece ser uma expressão mais abrangente. Em hebraico, a palavra “céu” {sãmayim) era percebida como a morada de Deus, e não dos homens. No pen¬ samento pagão, acreditava-se que todos os deuses, inclusive o sol, a lua e as estrelas, habitavam no céu. Debaixo do céu, portanto, refere-se ao universo dos mortais, vivos e mortos. Debaixo do sol é mais especificamente a terra dos vivos, excluindo os mortos no Sheol, que nunca veem o sol. Coélet, porém, não parece fazer distinção entre as duas expressões. Debaixo do céu pode ter sido usada aqui para variar. Antes que o extenso relato sobre a investigação e a exploração seja dado, o resultado já é expresso na frase: Que fardo pesado Deus pôs sobre os ho¬ mens! Esse fardo pesado é, literalmente, um mau negócio (inyan rã '). Inyan é um dos muitos termos comerciais usados em Eclesiastes e mostra um inte¬ resse no sistema comercial emergente daquela época. O substantivo somente é usado em Eclesiastes (1.13; 2.23,26; 3.10; 4.8; 5.3,14; 8.16) e também é um hebraico pós-bíblico (BDB 775b). O radical de inyan é compartilhado com outros dois significados: “aflito” e “testemunha”. Isso poderia emprestar à frase as conotações de “má aflição” ou “má testemunha”, a última foi preferida por Ibn Ezra (veja Ginsburg, 1861, p. 53). O empreendimento que Deus deu à humanidade é mau (pesado, rã ‘), pa¬ lavra que tem um significado mais amplo em hebraico do que em inglês. Ela pode significar uma natureza má, mas também pode referir-se à calamidade.
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Logo, o “mal” pode vir de Deus na forma de um desastre natural ou de um ataque do inimigo (Jó 2.10; Am 3.6; Is 45.7). A soberania de Deus é expressa na última parte do versículo 13.0 negócio com o qual a humanidade se ocupa é algo dado por Deus (Deus pôs sobre os homens, nãtan ’êlõhím). O verbo dar é frequentemente usado em Eclesiastes para expressar a soberania de Deus. Depois, Coélet proporá o contentamento com a porção que Deus deu (ex.: 3.12,22; 8.15; 9.9; 11.8,9), mas, aqui, a ativi¬ dade do homem está caracterizada como um “mau negócio” (fardo pesado). A primeira menção a Deus em Eclesiastes mostra a preferência da literatu¬ ra da sabedoria pelo nome internacional e transcendente de Deus, Elohim, em vez do nome mais nacional e pessoal da aliança, Yahweh. Essa generalização se encaixa com a ênfase de Eclesiastes na soberania e na transcendência de Deus, em lugar da interação pessoal e da aliança ou de preocupações nacionais. H 14 O versículo 14 começa com a declaração tenho visto (rã 'iti), que é uma expressão essencial para Coélet e também o principal método de reunir infor¬ mações na literatura da sabedoria. Os professores da sabedoria observavam o mundo ou recebiam tradições de seus mestres de sabedoria, ao contrário dos profetas, que ouviam diretamente de Deus ou recebiam uma revelação por meio de visões e sonhos. A atividade de Coélet de ver é, então, observar e estu¬ dar o mundo para obter entendimento e esclarecimento quanto ao resultado final de toda atividade humana e do modo como o mundo é estruturado. Outra expressão essencial é introduzida neste versículo; Correr atrás do vento!A palavra usada para correr ( rèút) vem do verbo que se usa para apascen¬ tar um rebanho de ovelhas (rã'ah). As formas do radical hebraico dos verbos ver ( rã’ah) e correr ( rã 'ah ) soam idênticas, o que ressalta ainda mais a conexão entre a visão de Coélet quanto à atividade humana e ao correr atrás do vento. Essa metáfora parece comparar a tentativa humana de controlar o movimento do vento com o esforço do pastor para controlar o movimento das ovelhas. Ambos são fúteis e sem sentido. Uma imagem similar é usada em Oseias 12.1, em que se diz que Israel se alimenta do vento (rõ 'eh rúah) e persegue o vento oriental. No caso de Oseias, a busca inútil é multiplicar a falsidade e a violência e fazer uma aliança com a Assíria, simplesmente para ser conquistado pelo Egi¬ to. Ibn Ezra observou a possibilidade de “alimentar” ser o sentido do versículo 14, de forma que aqueles que se alimentam de vento não ficam satisfeitos (veja Ginsburg, 1861, p. 53,270). Correr atrás do vento é, portanto, uma metáfora para uma tarefa fútil com um objetivo inatingível, semelhante à comparação moderna de um cão
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perseguindo seu próprio rabo. O vento nunca pode ser pego, e a dificuldade do empreendimento é enfatizada pelo caráter do vento descrito em 1.6. Ele vai girando continuamente. Essa comparação provê uma nuance para hebel nesse contexto. As atividades que serão descritas não são meramente fugazes ou in¬ compreensíveis, elas são fúteis e inatingíveis. A conexão entre vento e vaidade {hebel) está também contida no sentido literal de hebel (Inútil), que é fôlego, vapor. A epopeia de Gilgamesh tem uma ligação semelhante: “Quanto aos se¬ res humanos, seus dias estão contados, e tudo o que eles continuam tentando alcançar é como o vento!” (Kovacs, 1989, p. 20). H15 No versículo 15, Coélet cita um provérbio que pode ter um antecedente na literatura da sabedoria egípcia: O que é torto não pode ser endireitado; o que está faltando não pode ser contado. O verbo “endireitar” (litqõn) é uma construção do infinitivo Qal, dando a tradução literal de o que é torto não se pode endireitar, daí a emenda sugestiva da BHS para lê-lo na passiva {léhittãqên, Niphal). Isso requer o acréscimo de uma consoante, mas é apoiado pela Septuaginta. A palavra faltando {hesrôn) é usada somente aqui no AT e é um termo económico usado em textos aramaicos egípcios do quinto século a.C. (e não é conhecido antes do quinto século a.C.; Seow, 1997, p. 13). Esse é um dos exemplos do vocabulário aramaico que sugere uma data pós-exílica
para Eclesiastes. A soberania de Deus nesse provérbio está mais clara do que em seu parale¬ lo em 7.13, que vem em uma lista de provérbios. Ali, especificamente, Deus fez algo torto, e a humanidade não é capaz de endireitá-lo. No contexto egípcio, o que estava torto era um indivíduo simples que poderia ser endireitado pela sabedoria {Instruction of Anh Seow, 1997, p. 122). O caminho da sabedoria é uma estrada reta (veja Pv 3.6). Aqui, Coélet parece estar antecipando o seu argumento de que até a sabedoria é vaidade. Os humanos não podem controlar os resultados, e os versículos seguintes explicam isso com referência à falta de satisfação no prazer, na riqueza e na sabedoria. As diferenças entre a expectativa e a experiência humanas são inumeráveis. M 16 Coélet continua com a personificação do seu coração no versículo 16, no qual ele conversa com o próprio coração (pensei comigo mesmo, lit.: falei com o meu coração). Isso é semelhante a esta frase: “Falei comigo mesmo”. Neste ponto, Coélet começa a enumerar suas realizações no estilo de um currículo. Suas grandezas e sua vasta sabedoria são as primeiras da lista. O es¬ tilo aqui é típico das ostentações dos reis assírios. A frase todos os que go¬ vernaram Jerusalém antes de mim faz parte do formato dessas ostentações
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(Delitzch, 1875, p. 229). Essa menção não quer referir-se ao rei Davi, o único rei israelita a reinar em Jerusalém antes de Salomão, nem aos reis jebuseus que possam ter reinado antes dos israelitas. Ginsburg viu isso como um argumento contra a autoria salomônica, já que enfatiza a função hipotética de Salomão (1861, p. 247,273). A palavra-chave ver é reiterada nesse versículo no sentido de adquirir. A combinação dos termos relacionados, sabedoria e conhecimento, é co¬ mum na Bíblia (ex.: Êx 35.31; Pv 1.7). O conhecimento tende a ser mais cog¬ nitivo, mas também inclui habilidades (Êx 31.3), experiência e relacionamento (conhecer alguém). A sabedoria envolve conhecimento e habilidade (Is 10.13) e enfatiza a colocação do conhecimento em prática nas escolhas da vida. Tanto o conhecimento quanto a sabedoria estão ligados ao temor do Senhor (Pv 1.7; SI 111.10).
O pensamento de Delitzsch sobre
a sabedoria e o conhecimento Em geral, podemos dizer que chokma é o fato de um poderoso co¬ nhecimento do verdadeiro e do correto e a propriedade que surge dessa posse intelectual; mas dããth é o conhecimento que penetra na profunde¬ za da essência das coisas, pelo qual a sabedoria é adquirida e no qual a sabedoria se estabelece (1875, p. 230).
H 17 O versículo 17 começa com
uma forma gramatical consecutiva waw ( wã 'ettênâ) muito comum na narrativa hebraica, mas usada somente três ve¬ zes em Eclesiastes (1.17; 4.1,7; Whitley, 1979, p. 1). Isso ocorre, em parte,
porque Eclesiastes não tem muita narrativa e, em parte, por ser um elemento da peculiaridade geral da linguagem de Coélet. De acordo com Crenshaw, a consecutiva waw é usada aqui (v. 17) para indicar um substancial período de observação e reflexão (1987, p. 75). No entanto, não fica claro que este seja o caso, pois as conclusões são dadas antes desse versículo, e mais explorações são recontadas no capítulo seguinte. O resultado da busca no versículo 17 tam¬ bém é correr atrás do vento, uma frase que usa as mesmas raízes de 1.14, mas uma forma substantivada diferente (ra yôn, em vez de rè'ut). O versículo 16 termina com a reivindicação de que Coélet se tornou gran¬ de em sabedoria e conhecimento. Há duas formas no infinitivo no versículo
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17 (“conhecer a sabedoria e a saber o que é loucura” [ARA]). A segunda forma (da 'at), que é a mesma da primeira, mas sem a preposição, poderia também ser entendida como um substantivo (“conhecimento”); logo, é possível ler a frase assim: “Conhecer a sabedoria, o conhecimento, a loucura e a tolice”. As versões antigas, portanto, tomaram o primeiro infinitivo para reger todas as quatro palavras (sabedoria, conhecimento, loucura, tolice; Septuaginta, aramaico, latim). As traduções modernas, porém, ao tomarem ambos os modos como infinitivos, traduzem a frase como: “Conhecer a sabedoria e a saber o que é loucura e o que é estultícia” (ARA) (compreender a sabedoria, bem como a
loucura e a insensatez). A tradução do versículo 17 tem outras dificuldades, especialmente em dar sentido às palavras loucura e insensatez ( hôlêlôt wéiiklút). A palavra traduzi¬ da como loucura (hôlêlôt) é usada outras vezes somente em Eclesiastes (2.12; 7.25; 9.3; cognata em 10.13; forma verbal em 2.2 e em outros livros). Ela vem do radical hãlal, “ostentar” (Qal) ou “louvar” (Piei). A palavra traduzida como insensatez está grafada erroneamente nessa sentença (siklât, sin em vez de samek), o que a relaciona, na verdade, a um radical que significa “prudente”. O significado de insensatez é confirmado, entretanto, por alguns manuscritos que possuem a grafia correta e pela combinação de loucura e insensatez em outros locais em Eclesiastes (com a grafia correta: 2.12; 7.25; 10.13). A confu¬ são das letras hebraicas sin e samek era comum no hebraico e no aramaico menos remotos (Jó 5.2; 6.2; 10.17; 17.7; Ed 4.5; 5.12; Whidey, 1979, p. 16). Será que Coélet, o professor de sabedoria, realmente experimentou a lou¬ cura e a insensatez? Ou ele está projetando essa experiência de volta a Salomão para o propósito de seu argumento ? Davi fingiu estar louco em 1 Samuel 21.1215, o que poderia também ser o caso de Coélet. Ele testou a loucura como parte de seus experimentos, mas não ficou realmente louco (veja Ibn Ezra, em Ginsburg, 1861, p. 54). Outra possibilidade é que loucura e insensatez este¬ jam completamente fora de lugar aqui porque, neste ponto, o experimento é para testar a sabedoria (mais tarde, ele considerará a loucura e a insensatez em 2.12). Ginsburg talvez estivesse certo em sua análise de que “as palavras (lou¬ cura e insensatez) foram acrescentadas ao texto pela falta de cuidado de um transcritor” (1861, p. 274). Embora não haja uma evidência textual para tal, isso faz mais sentido no contexto do argumento de Coélet. fl 18 O resultado de uma crescente sabedoria é um crescente desgosto. Existe um lado literal para esse sofrimento, já que o castigo corporal era usado nas escolas de sabedoria. Isso está documentado em textos egípcios e sumerianos
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(Crenshaw, 1987, p. 76). De forma mais significativa, o observador sábio vê a complexidade da vida e carrega o peso do seu conhecimento, diferentemente do tolo do provérbio inglês, para quem a “ignorância é a felicidade”. A repetição nesse versículo aumenta a sensação de movimento contínuo na observação e na aplicação da sabedoria, assim como foi feito na descrição das atividades infindáveis da natureza (ex.: 1.6). Existe também uma conexão entre sabedoria e conhecimento, como no versículo 16, sugerindo ainda que essas duas palavras andem juntas no versículo 17 (i.e., “sabedoria” é um subs¬ tantivo em 1.17, e não um verbo). Sofrimento e desgosto também estão em¬ parelhados em 2.23.
B. Experimentei o prazer e a riqueza (2.1-11)
■1 Um novo parágrafo é introduzido no capítulo 2 com a frase: “Disse eu no meu coração” [ARC] (pensei comigo mesmo). Esse verbo e essa preposição são diferentes daqueles na frase semelhante em 1.16. Neste caso, o verbo “disse”
é 'ãmartí (em vez de dibbartí), e a preposição é “no” (bê, em vez de “com”, ' im). Depois da exploração da sabedoria (1.16-18), o tópico agora é o prazer. Será que o prazer provará fornecer uma satisfação duradoura? O verbo experimentar ( ’ãnassèkâ ) tem uma grafia incomum com a le¬ tra hebraica he acrescentada ao sufixo (também encontrada em Gn 10.19; Jr 40.15; e em textos do Qumrã). A Vulgata Latina considerou o kaf{do sufixo) como parte do verbo, pressupondo o radical nsk, “derramar” (ao invés de nsh, “provar”), aparentemente com a ideia de derramar o vinho, que será o tópico do versículo 3 (Whitley, 1979, p. 18). A frase descubra as coisas boas da vida é, literalmente, veja o bem, conti¬ nuando com a ênfase do verbo ver nesta unidade. O verbo está no imperativo, e a frase tem o sentido de “divirta-se” (i.e., experimente o que é bom; veja 2.24; 3.13; 5.18; 7.14; 9.7; 11.7). Mesmo antes de as buscas pelo prazer serem con¬ tadas novamente, Coélet declara que isso é hebel - não dura ou não dá uma satisfação duradoura. A busca pelo prazer é inútil (Miller, 2002, p. 108). 12 0 versículo 2 declara que rir é tolice (loucura, mèhôlãt). O riso é sempre usado no sentido de escárnio ou zombaria (Jó 12.4; Jr 48.27). A acusação con¬ tra o prazer (alegria, simha] não é tão forte como para o ato de rir, mas a ale¬ gria também é considerada de nenhum valor. Mais à frente, no livro, a alegria é
louvada como um dom de Deus (2.26; 5.20).
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Ginsburg considerou esse versículo uma abordagem direta ao riso e ao pra¬ disse: (você está) louco; e, ao prazer: o que (você está) fazendo?” (veja Ginsburg, 1861, p. 276). Isso tem a vantagem de
zer, dando o sentido: “Ao riso, eu
considerar a preposição “ao” {lê) literalmente, em vez de fornecer a estranha tradução “de”. A palavra loucura (mèhôlãt) poderia ser traduzida como “digno de louvor”, como no Talmude e no Rashi, mas isso não se encaixa no contexto (Ginsburg, 1861, p. 277, citando Shabbat 30:2) A forma para esta {zõh) difere do aspecto normal (zõt), mas é usada oca¬ sionalmente em outros lugares no AT (Jz 18.4; 2 Rs 6.19; Ez 40.45). Ela se assemelha à forma posterior usada no hebraico pós-bíblico (zô, veja Os 7.16; SI 132.12; Murphy, 1992, p. 16). Esse é outro exemplo do uso peculiar da lingua¬ gem por Coélet (veja a Introdução). 13 0 versículo 3 transmite o vocabulário e o tema da introdução para esta unidade com a declaração decidi-me entregar (lit., explorei com meu coração; veja 1.13). No decorrer dessa jornada aos prazeres básicos do vinho (representando todos os banquetes) e da carne {bãsãr, me entregar), Coélet nota que ele permaneceu guiado pela sabedoria. Isso era apenas uma experiência ; talvez uma advertência aos jovens para que não fizessem essa experiência. Decidi-me entregar (mãíak ) ao vinho literalmente significa atrair, com duzir, prolongar. Eclesiastes é o único livro que usa isso com o sentido de “ani¬ mar” (e somente uma vez), aparentemente com a ideia de chamar atenção ou de atrair, logo, entregar (BDB 604). G. R. Driver sugeriu o sentido de “susten¬ tar” (com referência ao aramaico e ao árabe), e ele traduziu como “sustentar minha carne com vinho” (1954, p. 15). BHS sugere transpor as letras e emen¬ dá-las para dar outra palavra para “sustentar”, o que acontece em Cantares 2.5 {lismôk, em vez de limsôk). Embora a sabedoria não comprovara ter um valor duradouro em 1.16-18, Coélet é cuidadoso em explicar que suas experiências avançadas com o prazer e a loucura não são conduzidas sem a restrição da sabedoria (mantendo, porém, a mente orientada pela sabedoria). A palavra mantendo {nõhég) é usada no AT para conduzir animais (2 Rs 4.24; SI 78.52), mas, no hebraico posterior, tem o significado de “comportar-se, conduzir-se” (Whybray, 1989, p. 53). Esse significado parece concordar melhor com o contexto (i.e., “minha mente se comportando com juízo”). Uma aparente contradição entre se entregar à extravagância e ser guiado pela sabedoria levou à emenda sugerida por BHS, que diz: “Não abraçando
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a loucura” (/’7/z em vez de / 7/z). O argumento inteiro de 1.12 2.26 é usa¬ do para mostrar a loucura da “sabedoria” de Salomão, e, dessa forma, o ato de se entregar à extravagância não está fora de contexto aqui, e pensamentos
semelhantes ocorrem novamente em Eclesiastes (2.12). Poucos dias é literal¬ mente um número de dias (mispar yêmê) e, portanto, não enfatiza que a vida é curta.
Quatorze dias de felicidade Cinquenta anos se passaram desde que eu me tornei Caliph. Rique¬ zas, honras, prazeres - de tudo isso tenho desfrutado. Nesse longo tempo de aparente felicidade, enumerei os dias nos quais estive feliz. Quatorze (atribuído a Abd Er-Rahman III; in: Marvin, 1902, p. 2).
■ 4 0 que se segue é uma lista de realizações reminiscentes da tonalidade da
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descrição de Salomão em 1 Reis 3 11, embora haja poucas correspondências em detalhes e algumas notáveis omissões. Não há menção, em Eclesiastes, da construção do templo, uma das grandes realizações de Salomão; entretanto, casas são mencionadas, e “casa” é uma das palavras usadas para “templo” no AT (juntamente com estrangeirismos sumerianos, “palácio”, hêkãl; TDOT 3:382). Salomão realmente construiu casas, no sentido de palácios e templos, não só para si mesmo e para o Senhor, mas também para suas esposas e seus deuses (1 Rs 6; 7; 9.24; 11.7,8). As vinhas eram propriedades comuns para um rei. Acabe, rei de Israel, cobiçou a vinha de Nabote, já que ela era adjacente ao palácio (1 Rs 21), e o próprio Salomão é mencionado em conexão com uma vinha cm Cantares 8.11,12.
■ 5 As realizações do rei no versículo 5 - jardins, pomares e árvore - não são especificadas como realizações de Salomão em 1 Reis, mas os reis no mundo antigo eram conhecidos pelos seus pormares. Os jardins suspensos da Babiló¬ nia são um famoso exemplo. Os jardins não são hortas, mas pormares, e a pala¬ vra hebraica (gan) deriva do verbo “guardar”, que era uma das funções de Adão no jardim do Éden (Ginsburg, 1861, p. 280). O termo pomares (pardésim) é uma das duas palavras persas emprestadas em Eclesiastes, sendo uma impor¬ tante
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evidência de que o livro se originou na era persa ou posteriormente. A
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palavra é usada em outros livros pós-exílicos (Ne 2.8; Ct 4.13) e foi também emprestada ao grego na forma de paradeisos (usado para traduzir o jardim do Éden), de onde vem a palavra “paraíso” (via latim). I 6 Assim como os jardins e os pomares, os reservatórios eram frequente¬ mente construídos pelos reis. O rei Mesha de Moabe gloriou-se por isso na Pedra Moabita (nono século a.C.; Eaton, 1983, p. 66). Os reservatórios são uma bênção e uma necessidade na terra onde bá pouca ou nenhuma chuva na estação da seca e poucos rios significativos para a irrigação. A palavra reserva¬ tório compartilha sua grafia com “bênção”, já que receber uma bênção envolvia dobrar o joelho, como o ato de tomar água em um reservatório (Ginsburg, 1861, p. 282). Existe uma anomalia gramatical nesse versículo, pois o prono¬ me usado para reservatório é masculino, embora o verbo seja feminino. Essa característica é vista em outros lugares em Eclesiastes (2.10; 10.9; 11.8; 12.1; Murphy, 1992, p. 17). As anomalias linguísticas são comuns em Eclesiastes. I 7 Os escravos e as escravas ( ‘ãbãdim úsépãhot) não estavam designados a retratar Salomão como opressor, mas eram considerados um símbolo de posi¬ ção e também de luxo. A economia completamente diferente daquela época está refletida na falta de distinção entre “escravo” e “servo” na linguagem. O hebraico só tem uma palavra para ambas, cujo significado literal é trabalha¬ dor. Enquanto a escravidão podia ser cruel, ela era uma instituição variada, que era vista com indiferença. Ninguém proclamava a abolição da escravatura nem protestava contra ela. Alguns escravos podiam até possuir seus próprios escra¬ vos, como Ziba, o escravo de Saul, que possuía 20 servos (2 Sm 19.17; ABD 6:58-65). O versículo 7 inclui a reivindicação de Coélet de que ele tinha mais bois e ovelhas do que todos os que viveram antes dele em Jerusalém. U 8 A prata e o ouro que Coélet ajuntou era uma riqueza de se esperar dos reis e dos líderes de províncias. Províncias (hammêdinôt) podia também sig¬ nificar “prefeitos” (do radical “governar, julgar”), o que é confirmado na lite¬ ratura ugarítica cananeia ( Anat 2.15,16; Crenshaw, 1987, p. 80). O artigo está fora de lugar (“as províncias/prefeitos”), mas é típico da linguagem peculiar de Eclesiastes. O acúmulo de prata e ouro citado no versículo 8 correlaciona-se com os registros da grande riqueza em prata e ouro de Salomão em 2 Crónicas 9.27 e 1 Reis 10.14-25. No antigo Israel, os metais preciosos eram usados em transações, por meio da pesagem do metal e, mais tarde, pelo uso de moedas. Essa é uma de¬ claração de uma grande riqueza que, como os outros elementos dessa experiência real, não traz uma satisfação duradoura.
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A palavra hebraica para harém ( siddâ wéHddôt) utiliza o singular e o plu¬ ral da mesma palavra e, logo, tem uma construção gramatical incomum; o sig¬ nificado dessa palavra não é claro. Delizsch interpretou a gramática incomum como indicação de uma multidão de mulheres (1875, p. 238,239). A tradução harém ou “concubina” é baseada em uma possível conexão com a palavra “con¬ fiscar” (lad) ou “capturar [uma mulher como despojo de guerra]” (sãdad). As línguas cognatas acadiana, ugarítica e árabe têm palavras similares para “mu¬ lher” (Kriiger, 2004, p. 58). Os tradutores antigos lutaram com o significado e a traduziram como “mordomo” ou “cálice” (Longman, 1997, p. 92). A partir do contexto geral, as duas omissões mais óbvias da lista de atividades de Salo¬ mão aqui são os cavalos e as esposas, mas Eclesiastes não está seguindo a outra informação bíblica sobre Salomão muito de perto. O contexto do versículo é riqueza, mas também cantores. O tema da riqueza é apoiado pela leitura de Bõttcher (seguindo Rashi), “baú e baús”, no sentido de “uma abundância de qualquer coisa” (Wright, 1883, p. 330).
Rabi Eleazar sobre a riqueza de Salomão Se outro houvesse declarado vaidade de vaidades, disse Coélet (Ec 1.2), eu poderia ter dito que esse homem, que nunca possuiu dois cen¬
tavos na vida, faz pouco caso da riqueza do mundo e declara: "Vaidade de vaidades"; mas, para Salomão, isso era apropriado (In: Cohen, 1983, p. 86).
U 9 Os versículos 9-11 completam a busca pelo prazer com a conclusão de que “tudo era vaidade” (v. 11 ARC), assim como a busca pela sabedoria tam¬ bém era “correr atrás do vento” (veja 1.17). A redação de 2.9 é semelhante à de 1.16 e à de 2.7. A menção de todos os que viveram em Jerusalém antes dele é a última referência explícita ao autor como rei, embora sua experiência real continue até o fim do capítulo 2, e a tonalidade e a reflexão da primeira pessoa continuem ao longo do livro. Embora Coélet seja crítico da sabedoria em 1.16-18, em 2.9, ele garante ao seu público que a sabedoria continuou con¬ sigo durante o período em que experimentou o prazer. Essa contradição mostra que, ainda que ele desejasse expor as limitações da sabedoria, ele não queria abandoná-la. Ele continua sendo um mestre da sabedoria.
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I 10 A linguagem do versículo 10 ecoa o dom da sabedoria de Salomão em 1 Reis 3.5, onde Deus diz a Salomão: “Peça-me o que quiser, e eu lhe darei”. Meus olhos desejaram é literalmente meus olhos pediram. Salomão era um rei que estava acostumado a conseguir o que queria. O prazer que Coélet encontrou em seu trabalho foi a sua recompensa (helqi). Essa palavra também é traduzida como “porção” e é usada em referên¬ cia à terra que foi dividida aos israelitas quando Josué lá entrou. Essa é uma palavra-chave em Eclesiastes e pode ser contrastada com “proveito” {yitrôn; veja 1.3). Em Eclesiastes, “porção” é a sorte da vida que cada ser humano deve aceitar segundo a soberania de Deus. O eco da distribuição da terra por Josué sugere uma época da história de Israel em que a economia era baseada na agri¬ cultura. Se o sistema funcionasse como o esperado, ninguém poderia acumular excesso de lucro, porque a renda estava ligada à terra. A porção limitada de terra significava que a produção da safra era limitada, o que, por sua vez, signi¬ ficava que o lucro era limitado. Na época em que Eclesiastes provavelmente foi escrito (na era persa ou helenística), essa economia agrícola já havia passado, assim como a herança de terra da família estabelecida por Josué. A economia era baseada no dinheiro, e a possessão de terras era controlada pelo imperador e pelos seus representantes. Nessa economia, alguém poderia obter lucros excessivos {yitrôn), mesmo sem possuir terra. A premissa de Coélet, porém, é que um esforço para obter um proveito excessivo é vaidade (1.3). Não existe ganho no trabalho (excessivo), mas, em vez disso, o indivíduo deve contentar-se com a porção ( heleq) que Deus lhe deu, que, neste caso, é o prazer por meio do trabalho. Um dos prazeres desfrutados no experimento real é a riqueza; a pala¬ vra 'ãmãl (trabalho ou esforço) também pode significar “riqueza” (2.19; SI 105.44). O rei deliciava-se em seu trabalho, isto é, na riqueza que ele traba¬ lhou para acumular; o trabalho em si não é enumerado como um dos prazeres em 2.1-9.
Epicuro sobre o prazer O prazer é o início e o fim de uma vida abençoada. (In: Russell, 2004, p. 233)
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111 No versículo 11, Coélet virou-se (âpãniti, avaliou ) para refletir sobre o seu experimento (veja 2.20 e 4.1). Nos outros lugares, virar-se é “ver” alguma coisa na vida, como no versículo 12, mas, no versículo 11, há uma elipse. A virada é para considerar o que Coélet fez com suas próprias mãos. O versículo 11 fornece a conclusão preliminar que permeia Eclesiastes: Tudo foi inútil, foi correr atrás do vento; não há qualquer proveito no que se faz debaixo do sol. O contexto específico dessa inutilidade é a busca da sabedoria (1.1318) e do prazer (2.1-11). A autossatisfação não leva à satisfação duradoura (ela é inútil), e não se pode confiar na sabedoria para trazer resultados ou felicidade esperados. A vida não é tão simples assim, embora os mestres da sabedoria de Provérbios a houvessem retratado como a chave do sucesso na vida, e esse su¬ cesso como a motivação da sabedoria e da justiça.
C. Experimentei a sabedoria (2.12-16) 112 0 versículo 12 inicia um novo parágrafo, depois que o rei já considerou todas as realizações (1.13-15), a sabedoria (1.16-18) e o prazer (2.1-11), e a agora se volta (úpãniti) para o assunto da inevitabilidade da morte, que signifi¬ ca que a vantagem da sabedoria é limitada (2.12-16). O verbo “ver” (“considerar” ARC) é usado em outros lugares com o senti¬ do de “experimentar” (1.16). O rei havia experimentado os negócios, a sabedo¬ ria e o prazer (1.13 2.11), e agora ele dá um passo atrás e observa mais filoso¬ ficamente. Ele passa a refletir na sabedoria, na loucura e na insensatez à luz da sucessão dos reis. Assim como os reis das inscrições reais, o rei em Eclesiastes havia reivindicado ser maior do que todos os que reinaram antes dele. Se isso for assim, que reivindicação o próximo rei poderá fazer? O maior rei já existiu. Embora as palavras loucura e insensatez pareçam ser um acréscimo em 1.17, aqui, em 2.12, essas palavras não estão fora de lugar. Coélet não está experimentando a loucura e a insensatez, mas apenas analisando-as e comparando-as com a sabedoria, como mostra o versículo seguinte. As traduções em inglês têm fornecido o verbo “fazer”, como sugerido pela BHS, na pergunta retórica: O que pode fazer o sucessor do rei a não ser re¬ petir o que já foi feito? (meh hã ãdãm seyyãbô ahãrê hammelek; lit.: O que o homem [faz] que vem depois do rei?). Delitzsch tentou fazer uma tradução sem fornecer esse verbo: “Pois o que é o homem que poderá suceder o rei, a quem estabeleceram há tanto tempo atrás!” (1875, p. 245). O versículo 12 é um dos
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exemplos em Eclesiastes em que ambos os pronomes relativos (se e ’ãser) são usados no mesmo versículo. O resultado dessa mudança de pronome é um som muito estranho em hebraico, que pode ser a intenção da complexa escolha de palavras. O versículo faz uma pergunta enigmática e usa um hebraico enigmᬠtico para esse fim. B 13 Não obstante, Coélet admite que a sabedoria é superior à loucura, e não apenas um pouco melhor. A diferença é tão imensa quanto a diferença entre a luz e as trevas (veja a comparação em português, “como o dia e a noite”). A sabedoria é melhor que a insensatez significa literalmente: Existe um ganho pertencente à sabedoria (yêsyitrôn lahokmâ). Essa palavra para “ganho” (yitrôn ) é usada somente em Eclesiastes, e os usos anteriores foram negativos: não há ganho algum no trabalho (1.3; 2.11). Apesar de reconhecer as limitações da sabedoria, Coélet agora acha que há um proveito na sabedoria. A luz e a sabe¬ doria estão conectadas em outras passagens (Pv 6.23), e a Torá também está ligada à luz (SI 119.105); entretanto, a Torá não é uma ênfase em Eclesiastes, exceto na conclusão editorial (12.13). A luz é a verdade que guia as ações no Salmo 43.3. A sabedoria também liga a ignorância às trevas (veja Jó 38.19). B 14 Um provérbio agora é citado no versículo 14: O homem sábio tem olhos que enxergam, mas o tolo anda nas trevas. Os olhos abertos estão liga¬ dos à sabedoria em outras passagens (Êx 23.8; Dt 16.19; Pv 20.13). Mais uma vez, isso enfatiza o imenso abismo entre a sabedoria e a loucura. É a diferença entre enxergar e ser cego. Mas, depois, Coélet dispensa a importância dessa diferença, porque tanto o sábio como o tolo terão o mesmo destino; a ideia subentendida aqui é que ambos morrerão e irão para o mesmo lugar. O Sheol, lugar das sombras e das trevas, talvez esteja sugerido aqui como o destino de ambos, do sábio e do tolo. Destino (miqreh) é uma palavra-chave em Eclesiastes usada apenas três vezes em outras passagens do AT (Rt 2.3; 1 Sm 6.9; 20.26; ela é usada sete vezes em Eclesiastes, sendo três vezes em forma verbal). Nesse versículo, ela é mencionada no sentido de “acontecimento”, mas, em outros lugares do livro, ela tem o sentido de um acontecimento por acaso. Isso certamente está além do controle humano, mas pode ser interpretado como além do controle divino também. Todavia, no livro como um todo, a soberania de Deus é enfatizada, e o capítulo 3, especialmente, argumenta sobre o controle de Deus em todos os tempos e em todas as estações da vida. Talvez Coélet sugira um significado duplo de destino, que está debaixo da providência de Deus, como a palavra que é usada no acontecimento de Rute “por acaso” encontrar-se no campo de Boaz
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(Rt 2.3). Coélet também utiliza o verbo cognato “suceder” [ARC] (qãrâ) no versículo 14. H 15 O versículo 15 conclui que a universalidade da morte é vaidade (in¬ compreensível). A partícula 'ãz, nesse versículo, tem causado alguns proble¬ mas de tradução. Que proveito eu tive em ser sábio? Literalmente é: Por que eu estava a desejar, então, ganharia? (“Então, o que é que eu ganhei sendo tão sábio?” [NTLH]). A palavra “ganhar” (yôtêr) está relacionada à palavra-chave proveito ( yitrôn ) e é usada sete vezes no livro (2.15; 6.8,11; 7.11,16; 12.9,12) e uma vez fora de Eclesiastes (Et 6.6). Hebel (tolo) é usado aqui no sentido de “incompreensível”. Não faz sentido o sábio e o tolo terem o mesmo fim. H 16 O versículo 16 ecoa o movimento do poema de abertura (1.2-11), que começou com uma declaração compreensível sobre a vaidade e terminou sem a inclusão esperada (outra referência à vaidade), mas com o lamento de que nada seria lembrado. Isso é contrário à sabedoria de Provérbios 10.7, em que “a memória deixada pelos justos será uma bênção, mas o nome dos ímpios apodrecerá”. Em uma cultura que valoriza a honra e tem pouco conceito sobre a ressurreição, o modo como alguém é lembrado após a morte é muito im¬ portante. Todavia, Coélet é levado a interrogar: Como pode o sábio morrer como morre o tolo? O choque dessa indagação é intensificado pelo uso da palavra morre (yãmât), enquanto eufemismos são usados em textos anteriores para descrever a morte (“o mesmo destino”, 2.14; “gerações vão”, 1.4; “poucos dias”, 2.3).
D. Comecei a desesperar-me (2.17-23) ■ 17 O problema da morte ainda ocupa a atenção de Coélet no próximo parágrafo (2.17-23). O tom do versículo 17 é bem diferente daquele de 2.1-11, em que o rei disse ter encontrado prazer em seu trabalho. Agora, a natureza incompreensível da vida faz Coélet declarar que ele odiava a vida. Seguindo a brusca menção da morte como o nivelador final (v. 16), o versículo 17 chega como outro choque, porque o ensino da sabedoria como um todo promoveu a
ideia de uma vida longa e próspera (Pv3.16; 8.35). É possível fazer essa afirma¬ ção para valer, que Coélet realmente odeia sua vida sem sentido, mas essa de¬ claração é feita no contexto da autobiografia real. O fato é que o estilo de vida de Salomão não o levou a uma satisfação duradoura, mas representava uma distorção do ensino balanceado da sabedoria. Coélet usou o valor do choque para gerar um grande efeito: chamar a atenção de seu público.
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Se Coélet tivesse uma raiva da vida que fosse absoluta, então o curso lógico de ação seria o suicídio. Essa hipótese nunca é defendida no livro e não leva ao questionamento de Hamlet: “Ser ou não ser”. Coélet não se desespera por cau¬ sa da vida em si, mas por causa da orientação pela busca da riqueza e do prazer como um bem supremo. Isso não conduz à satisfação duradoura. Coélet la¬ menta a finalidade da morte, mas, no final, essa realidade deve ser aceita como o quinhão de toda a humanidade, quer seja sábio, quer seja tolo. Tão alto era o valor da vida na tradição bíblica que os intérpretes não acha¬ vam nada ortodoxa a afirmação de que a vida é odiável; então, o Targum, as versões antigas e os Pais da Igreja têm interpretado isso como o ódio contra o pecado (Ginsburg, 1861, p. 294). Isso é desnecessário, todavia, porque a vida que é odiada não é a vida em si, mas a vida vivida na futilidade de uma corrida atrás da riqueza e do prazer. A nuance “futilidade”, para bebei (inutilidade), é assinalada pela designação que a acompanha: correr atrás do vento. Sobre a dura realidade da morte e da vida, Coélet disse: “Começou a não valer nada para mim” [NTLH]. A preposição al, significando “para mim” aqui, é um desenvolvimento novo; seu significado normal é “sobre” (Et 3.9; 1 Cr 13.2). Em certo sentido, a questão também está “sobre” Coélet como um fardo pesado, uma parte do peso que o professor de sabedoria deve carregar (1.18; veja Is 1.14). B 18 Coélet lamenta que ele terá de deixar tudo pelo qual trabalhou para aquele que o suceder. Essa afirmação é incompreensível na economia agrí¬ cola do antigo Israel. Era de extrema importância ter filhos que perpetuassem o legado de alguém e deixá-los com uma “bela herança” (Sl 16.6; Jr 3.19). No caso de Salomão, entretanto, como Coélet diria, seu filho Roboão foi um tolo e perdeu o império, e até a nação. Depois da tolice de Roboão, somente a tribo de Judá foi governada pelos reis davídicos. Na época em que Eclesiastes provavelmente foi escrito (período persa ou helenístico), a questão da herança era muito diferente. Já que as concessões de terra eram feitas pelo imperador ou pelos seus representantes, o dono da propriedade nem sempre tinha o direito de repassar os bens para a próxima geração (Seow, 1997, p. 23). Ele, literalmente, não sabia se o futuro dono de sua terra seria sábio ou tolo (v. 19). Ginsburg viu nisso uma sugestão de que o rei não teve herdeiro, logo, um argumento contra a autoria salomônica (1861, p. 248). B 19 A visão permanente de Coélet sobre o valor da sabedoria fica aparente no versículo 19, quando ele lamenta a possibilidade de que o seu sucessor possa
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ser um tolo. Coélet pode estar disposto a expor as limitações da retribuição e do conhecimento, mas ele foi criado no ensinamento padrão da sabedoria e parecia desejar que a vida pudesse ser simples assim. Quem pode dizer é, geralmente, usado em sentido positivo de antecipa¬ ção a algo que de bom pode advir dessa situação (2 Sm 12.22; Jl 2.14; Jn 3.9; SI 90.11; Et 4.14). Para Coélet, essa é uma expressão retórica, com conclusão ine¬ vitável de que o resultado é negativo (Ec 2.19; 3.21; 6.12; 8.1; veja Pv 24.22). O verbo sãlat (dominar sobre) é uma palavra-chave em Eclesiastes (2.19; 5.19; 6.2; 7.19; 8.4,8,9; 10.5). Em outro lugar no AT, ela ocorre em textos mais recentes (Ne 5.15; Et 9.1; SI 119.133) e em textos aramaicos (Dn 2.39; 3.27; 5.16; 6.24). Isso sugere uma data pós-exílica para Eclesiastes. O significado bᬠsico é “dominar, ser o senhor” (BDB 1020). Seow, que coloca Eclesiastes no quinto ou no quarto século a.C., argumenta que sãlat significa “ter o direito de dispor” na era persa (1997, p. 14). Esse parece ser o significado aqui no versículo 19; a questão é quem receberá o fruto do trabalho do rei, e não quem governará sobre ele. Em usos mais recentes, entretanto, essa palavra parece ter ganhado uma conotação mais geral de “governar” (Gropp, 1993, p. 34; veja Kriiger, 2004, p. 36). A nuance de hebel (tolo), nesse versículo, é “incompre¬
ensível”. M 20 No versículo 20, Coélet “volta-se” novamente, mas o vocabulário é di¬ ferente de 2.12 (a NVI não traduz essa palavra). Dessa vez, a palavra é sãbab, a mesma que foi usada em 1.6 para o vento que girava e circulava em seus cir¬ cuitos. Talvez ele voltou-se para considerar tantas coisas, já que agora estava girando como o vento! Verdadeiramente, o resultado desse redirecionamento não é outra consideração, mas o fato de ele se desesperar por causa de todo o trabalho em que tanto se esforçou debaixo do sol. B 21O colapso das leis da herança não é só incompreensível {hebel), mas tam¬ bém um grande mal (um grande absurdo). Logo, a nuance de hebel (absurdo) aqui é “fútil, ruim, incompreensível”. O segmento esperando de alguém que não se esforçou é “correr atrás do vento” (2.17), então, a mudança nesse versí¬ culo chega como uma surpresa para o leitor. As primeiras palavras de ambas as frases são semelhantes e atraem o leitor a pensar que a sentença terminará com a mesma expressão (o corriqueiro ré'ut rúah, em vez de rã â rabbâ ). A palavra habilidade é peculiar a Eclesiastes nesse formato (kisrôn ), mas as variantes ocorrem em Ester 8.5 e no Salmo 68.6. Assim como muitas palavras raras de Eclesiastes, essa é comum em aramaico e no hebraico pós-bíblico.
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I 22-23 Os versículos 22 e 23 combinam o vocabulário do poema de aber¬ tura do início da autobiografia real. Trabalho era a atividade inútil de 1.3 e é a mesma palavra usada na expressão “enfadonha ocupação” em 1.13 (NVI: “far¬ do pesado”). Coélet não encontra descanso de seu trabalho nem à noite; talvez o pensamento que está sendo expresso aqui é que a dor do trabalho durante o dia continua até a noite e atormenta a sua mente, a ponto de ele não poder dormir. O tom do parágrafo final desta unidade é negativo, quando Coélet declara: Isso também é absurdo (hebel; fútil, sem proveito, incompreensível).
E. O que fazer? Desfrute! (2.24-26) ■ 24-26 Um equilíbrio entre o otimismo de 2.10 e o pessimismo de 2.23 entra na conclusão desta unidade. Eclesiastes 2.24-26 fornece um equilíbrio, embora o coro final seja, como sempre, “inútil”. A soberania de Deus é incom¬ preensível, porém evidente, e, portanto, o indivíduo deve desfrutar daquilo que Deus lhe tem dado (veja 3.12,22; 5.18; 8.15; 9.7-9). O verdadeiro gozo ad¬ vém apenas da porção (veja heleq) do indivíduo, e não do esforço humano para o lucro excessivo (veja yitrôn). As palavras “porção” e “proveito” não são usadas neste parágrafo, mas as ideias estão presentes. Tanto a soberania de Deus como a porção que Ele dá estão claras na expressão: Mão de Deus (v. 24). Todo o experimento real de Coélet mostrou que lutar por mais sabedoria, riqueza e prazer era uma tarefa fútil. O que é significativo é aceitar a alimenta¬ ção, a bebida e a satisfação que Deus tem concedido. Isso não pode ser melho¬ rado com esforço humano algum, então, as pessoas deveriam ficar contentes com sua porção.
I 24 A NTLH, a ARC e outras versões seguem a leitura que sugere a ideia de que não existem outras atividades melhores do que comer, beber e encontrar satisfação no trabalho (wêher’â'et-napsôtôb, lit.: olhe o bem-, veja também 3.13; 5.18; 6.6). Essa é a porção que o Deus soberano dá à humanidade. A partícula de comparação (mem/min, do que) está faltando no texto hebraico do versículo 24. As traduções suplementam-no e, logo, apresentam a primeira parte do versículo 24 assim: Para o homem não existe nada melhor do que comer, beber e encontrar prazer em seu trabalho. A Septuaginta o cita sem a comparação: “O homem não tem o bem, o qual ele comerá e beberá”. Rashi interpretou esse versículo como uma interrogação: “Não há algo melhor no homem para que ele (apenas) coma e beba?”, sugerindo que as pessoas tivessem outros objetivos na vida (Cohen, 1946, p. 122).
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H 25 O texto hebraico do versículo 25 pode ser traduzido como: Pois, quem come e quem encontra prazer fora de mim? ( Quem aproveitou melhor as comi¬ das e os prazeres do que eu?) Coélet, escrevendo como se fosse o rei Salomão, reitera a escolha de Salomão para o experimento real. Ninguém teria a expectativa de se sair melhor na sabedoria, na riqueza e no prazer do que Salomão. Portanto, o caso está encerrado. A busca trabalhosa pelo excedente nessas áreas não traz satisfação duradoura por causa da natureza da sabedoria, da riqueza e do prazer, e sim porque o excedente não é excessivo o bastante. As realizações de Salomão nessas áreas foram excessivas, e, no entanto, sua vida tinha falta de um significado supremo. Então, o contentamento é o único curso de ação (e estado dc espírito) que conduz à satisfação, porque, por definição, a pessoa contente está satisfeita. Alguns manuscritos hebraicos e algumas versões antigas possuem mínimas diferenças que geram a tradução: E Quem aproveitou melhor as comidas e os prazeres do que eu? Essa leitura enfatiza novamente a soberania de Deus na questão da satisfação duradoura, um tema que é continuado no versículo final desta unidade (v. 26). I 26 O homem que o agrada é contrastado com o pecador no versículo 26. O significado literal para pecador ( hôte ') é aquele que erra, e não há, na literatura da sabedoria, a conotação religiosa que há em outros lugares do AT. Todavia, é usado em um sentido religioso em 8.12,13 (veja também 7.26), e também 2.26 pode estar reconhecendo a retribuição tradicional que Eclesiastes desafia (Ginsburg, 1861, p. 302). Ou o sentido aqui pode ser de alguém que é desajeitado ou que tem falta de sorte, que não consegue fazer nada certo, e, logo, é um tolo (veja Herzfeld, citado por Ginsburg, 1861, p. 302). Pela sobe¬ rania incompreensível de Deus, esse tipo de pessoa se encarregará de ajuntar e armazenar riquezas para entregá-las a quem o agrada (veja Jó 27.13-17; Pv 13.22; 28.8). Isso poderia ser interpretado como uma analogia ao sistema de concessão real dos reis persas, onde o povo comum trabalhava arduamente, apenas para ver o resultado de seu trabalho ir para o imperador em forma de impostos e também para os beneficiários das concessões reais, que eram res¬ ponsáveis por coletar esses impostos (Seow, 1997, p. 25). O sucesso para aquele que agrada a Deus não é designado a ser uma ga¬ rantia, pois Coélet já rejeitou a simplificação excessiva de que as coisas boas acontecem para as pessoas boas, e as coisas ruins acontecem com pessoas más (1.15-18; 2.14-16). Em vez disso, é a soberania de Deus que determina quem terá e quem não terá. Lutar pelo excesso de lucro não é eficiente. Seria mais fácil
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capturar o vento. Isso pode ser incompreensível (“vaidade”, hebel), mas é assim
que a vida é. Tudo o que se pode fazer é desfrutar da porção que Deus deu e reconhecer que até esse desfrutar é um de Seus dons.
A PARTIR DO TEXTO O retrato da busca pela satisfação é colocado no contexto das grandes rea¬ lizações de Salomão, colocando, assim, em questionamento, a validade de toda a orientação de Salomão quanto à vida. Enquanto muitas pessoas guardam a impressão da grande riqueza e da grande sabedoria de Salomão, 1 Reis 11 criti¬ ca sua queda na idolatria. O rei em Eclesiastes 1 2 levou o prazer, a riqueza e a sabedoria ao extremo, para que o leitor não fosse enganado por querer obter satisfação nessas buscas terrenas. Ao contrário, o simples contentamento com a comida, a bebida e o trabalho é a chave para a satisfação na vida (2.24). Isso é uma dádiva de Deus, e não algo pelo qual seja necessário lutar.
—
Sabedoria Esta unidade invoca repetidamente a sabedoria, pedindo direção na busca do rei pela realização na vida; mas, ao declarar as várias investigações de Salo¬ mão como inúteis, chama ao questionamento o valor prático da sabedoria de Salomão. A busca pela sabedoria como um fim em si mesma é correr atrás do vento, e, como um meio de controlar a vida, não é nada melhor, porque o que é torto não pode ser endireitado (1.15). No final, até a pessoa mais sábia de todas deve viver sob a soberania de Deus. E, ao mesmo tempo, a sabedoria é de grande valor, assim como a luz é melhor do que as trevas (2.13).
Vaidade (hebel) A palavra hebel (inutilidade) é usada nove vezes nesta unidade. Ela é usada com a conotação de “incompreensível” em relação à falta de possibilidade de herança nas eras pós-exílicas. Esse fato torna o acúmulo de riquezas “fútil”, já que essa riqueza não pode nem mesmo ser mantida na família. Também fútil é a busca pelo prazer e pela sabedoria. Embora a vida deva ser desfrutada (2.24), a riqueza, o prazer e a sabedoria não devem ser a orientação da vida de alguém. A sabedoria é valiosa (2.13), mas, ao final, ela não pode ajudar a pessoa a evitar
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a morte (2.14) e, logo, deve ser um meio de incrementar o prazer da vida, mas não se pode esperar que ela conduza ao controle sobre os resultados da vida.
Desfrute
a vida
A busca pelo prazer como orientação da vida é rejeitada nesta unidade, mas isso não significa que a vida deva ser melancólica. É por causa da satisfação vazia do prazer como orientação da vida que o indivíduo deve, simplesmente, desfrutar do que possui como uma dádiva de Deus (2.24).
Riqueza Do modo como a sabedoria e o prazer fracassam em ser orientações ade¬ quadas para a vida, assim também é a riqueza. Se o excesso de riqueza levasse à realização da vida, então Salomão deveria ter sido grandemente realizado, mas Coélet conclui que ele estava correndo atrás do vento. Lutar pelo excesso de riqueza pode levar à falta de satisfação porque isso impede o desfrutar das dádivas que Deus tem dado. O grego Cynic Diogenes também desfiou a crença comum de que a sabe¬ doria leva à felicidade. Ao contrário, ele pensou que a felicidade pudesse ser encontrada na limitação das necessidades do indivíduo, o que significa que o infortúnio pudesse ser encarado com serenidade (Brunschwig, 2000, p. 850).
0 mistério da retribuição Eclesiastes foi escrito contra o pano de fundo da doutrina da retribuição padrão da literatura da sabedoria. Segundo essa doutrina, a sabedoria (e a jus¬ tiça) deve conduzir à bênção (material) e ávida longa. Existe uma verdade nes¬ sa doutrina, mas não se pode confiar nela para que dê resultados automáticos ou garantidos. Então, Coélet procura matizar a doutrina apontando exceções. Neste caso, a busca pela sabedoria não levou ao resultado esperado da satis¬ fação duradoura ou da vida ilimitada. A pessoa sábia morrerá, assim como o tolo também morrerá (2.15). Nem mesmo a fama perdurará na curta memória daqueles que ficarem para trás.
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IV. UM TEMPO PARA TUDO (3.1-22) POR TRÁS DO TEXTO A autobiografia real termina no capítulo 2. O capítulo 3 prossegue com um poema que expressa os acontecimentos da vida que estão sujeitos ao tempo de Deus. Contudo, a tonalidade autobiográfica ainda continua nesta unidade e no decorrer do livro, com o uso frequente da primeira pessoa (ex.: 3.10). Não se pode discernir contexto histórico algum do poema atemporal so¬ bre o tempo (v. 1-8), mas há menção específica sobre guerra, e muitas (se não todas) imagens apresentam um contraste entre os tempos de guerra e os tem¬ pos de paz. Parece que o autor apresenta a guerra ou a ameaça de guerra (uma realidade presente na maioria das eras pós-exílicas) como uma das contingên¬ cias que tornam a vida incerta. O poema que encerra o livro também parece voltar a esse tema (12.1-7). A morte é certamente um tema óbvio no decorrer do livro, e a guerra pode ser um tremendo contribuinte para a incerteza do momento da morte de alguém.
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O tema da soberania de Deus nas unidades anteriores é continuado e tam¬ bém o conselho de gozar a vida. Coélet também continua a explorar o mistério da retribuição e retorna ao tema da falta de proveito no trabalho. A unidade subsequente (4.1-16) tem um formato diferente (declarações, tipo “melhor que”), mas dá continuidade a alguns dos mesmos temas (tais como o contentamento e a sabedoria) enquanto introduz novos temas (tais como o companheirismo). A premissa do capítulo 3 é que somente Deus conhece o tempo dos acon¬ tecimentos que Ele ordenou. Entretanto, os mestres da sabedoria antiga ten¬ taram discernir os tempos apropriados para as diversas atividades por meio de sua sabedoria (Crenshaw, 1987, p. 92). Em 8.5, Coélet declara que o sábio verdadeiramente sabe quando e como agir. Contudo, ele retorna à ideia de que tudo tem o seu tempo, e que os humanos não conhecem o futuro (8.6,7). Isso novamente mostra as limitações da sabedoria. A sabedoria é útil para se saber como agir, mas, no final, somente Deus tem o conhecimento sobre quando e como as coisas acontecerão. O AT menciona diversos eventos que estão su¬ jeitos ao tempo de Deus (von Rad, 1965, p. 100). Há tempo para nascer (Mq 5.3), para ajuntar os animais (Gn 29.7), para os reis saírem para a peleja (2 Sm 11.1), para a construção de templos (Ag 1.4), para as árvores frutificarem (SI 1.3) e para o alimento (SI 104.27). O salmista declarou: “O meu futuro está nas tuas mãos” (Sl 31.15). O gênero do capítulo 3 é reflexivo, bastante comum em Eclesiastes. O po¬ ema em 3.2-8 começa com o par de palavras nascer e morrer e termina com luta e paz. Essas palavras fornecem uma estrutura quiástica para o poema intei¬ ro (Crenshaw, 1987, p. 96; J. A. Loader distingue um quiasmo mais complexo para esse poema; 1979, p. 11). Existe também um padrão quiástico no último versículo do poema (v. 8; amar, odiar, lutar, viver em paz). Cada linha do poema apresenta um contraste entre dois aspectos da vida, um positivo e outro negativo. Há alguma alternância entre os versículos (ações positivas antes de ações negativas nos versículos 2,6,8a; ações negativas antes de ações positivas nos versículos 3,4,7,8b). Jarrick observou um padrão nessa alternância (2000, p. 79-99). Ele considera o ato de espalhar pedras no versículo 5 uma ação po¬ sitiva, embora não esteja certo da ação - atirar as pedras ou ajuntar as pedras. Outros dispositivos literários incluem a repetição (especialmente da pala¬ vra tempo). O verbo ver é repetido nesta unidade, refletindo a metodologia de observação de Coélet (v. 10,13,16,18,22). Ver é uma palavra-chave, usada 47 vezes no livro.
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O capítulo 3 pode ser esboçado como segue: No tempo de Deus (3.1-8) O que fazer? Desfrute! (3.9-22) (Um tempo de julgamento [3.16,17])
NO TEXTO
A. No tempo de Deus (3.1-8)
I 1 O versículo 1 introduz o tema principal dos versículos 2-8. Existe uma ocasião e um tempo para cada propósito debaixo do céu.
A palavra ocasião (.zèmãn ) não se refere às quatro estações do ano. Israel duas estações: chuvosa e seca. Acrescentar “tempo de semear e tempo de ceifar” dá a impressão de quatro estações (Gn 8.22). Em hebraixo, ocasião é usada para estabelecer épocas, como o festival da Páscoa (como no Talmude, Zebahim 1.1). Essa palavra só é usada no hebraico bíblico posterior (Ne 2.6; Et 9.27,31) e no aramaico (seis vezes em Esdras e Daniel), o que é consistente com a data pós-exílica de Eclesiastes. Nos documentos aramaicos fora da Bí¬ blia, essa palavra foi primeiro encontrada no quinto século a.C. (Seow, 1997, p. 13). A palavra bíblica mais antiga com o mesmo significado foi mô êd, que também vem do radical que significa “marcar, determinar”. Coélet usa a palavra ocasião para um tempo predeterminado ou estabe¬ lecido. Isso implica que a execução dos eventos descritos no poema é determi¬ nada por Deus, e não pela escolha humana. O tempo pertence a Deus, como esclarece o versículo 11, mas, por enquanto, talvez o leitor esteja sendo atraído pela ilusão de que a escolha humana seja um fator decisivo. Essa ilusão logo será estraçalhada por outra afirmação da soberania de Deus (v. 10). A palavra hebraica ét (tempo) é a mais comum na Bíblia para tempo e é usada para momentos específicos, e não para o tempo no sentido abstrato (que não era um conceito hebraico). Ela vem do radical 'ãnah, que é uma palavra importante em Eclesiastes, com o significado de “estar ocupado”; não está claro que esse significado esteja ligado ao substantivo tempo no livro ( ‘ãnah tam¬ bém significa “responder”, “ser afligido” e “cantar”, BDB 772-77). Algumas das experiências do poema são aflições, outras são razões para cantar, e outras são só
tem
atividades neutras. A palavra propósito também pode ser traduzida como prazer, deleite ( hêpes, 5.4; 12.1,10). É uma atividade ou negócio no sentido de que representa 101
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as coisas que as pessoas fazem porque se deleitam nelas (3.1,17; 5.8; 8.6). Isso ressoará mais tarde nessa passagem, com a admoestação para desfrutar-se do que Deus tem dado (v. 22; veja 2.24). O tempo certo de cada atividade prazero-
sa vem de Deus; portanto, tudo o que se pode fazer é desfrutar tanto do tempo como da atividade enquanto duram. 120 poema em si ocupa os versículos 2-8 e é composto de 14 oposições. O artifício literário dos opostos (merisma) é comumente usado no hebraico para expressar totalidade (ex.: “os céus e a terra” formam “o universo” em Gn 1.1; veja também Ec 11.6; Gn 49.27; 2 Sm 3.25; SI 92.2; 139.2). Entretanto, esse dispositivo literário não parece estar sendo usado aqui. Crenshaw sugere que Coélet esteja fornecendo opostos que se cancelam; como a morte cancela o nascimento ( 1987, p. 96). Porém, os opostos provavelmente estão relacionados ao tempo de guerra e ao tempo de paz. O poema começa com o tema da vida e da morte. A maioria das linhas nesta unidade forma dois grupos de duas palavras cada, o que estabelece o pa¬ drão simples do poema. Tempo de nascer é, então, duas palavras em hebraico ( êt láledet)-, o verbo nascer, literalmente “tempo de dar à luz”, em hebraico, não está na passiva, mas na ativa (embora Jr 25.34 tenha um uso intransitivo do infinitivo; Ginsburg, 1861, p. 304). Isso significa que a primeira linha não tem o nascimento e a morte de uma única pessoa em vista, mas, ao contrário, indica as categorias de nascimento e morte. O momento específico de dar à luz está além do controle humano, então, esse primeiro par de palavras enfatiza o foco no tempo de Deus, e não no tempo humano. Tempo de morrer enfatiza o oposto do nascimento. No contexto de guerra e paz, a guerra é o tempo de morrer e um desastroso tempo de dar à luz, tanto por causa do caos da batalha como por causa do resultado incerto. Jesus refletiu nessa realidade em Sua ad¬ vertência sobre as dificuldades que as mulheres grávidas teriam no desastre que se aproximava (Mt 24.19). Na segunda linha do versículo 2, a atividade sob a hora de Deus é o plan¬ tio. Plantar não está sob o controle humano, porque a sua época é determinada pelo clima. A semeadura não poderia começar até que â chuva viesse, já que a terra estaria dura demais para ser arada no verão (usando um arado de madeira ou de metal). No mundo antigo, a chuva era o resultado da água sobre o firma¬
(rãqía '), sendo liberada por Deus (ou pelos deuses) pelas janelas (em¬ bora Coélet fale de chuva vindo das nuvens, 11.3; veja Pv 25.14). Concluía-se que a hora da chuva e, portanto, a hora do plantio eram completamente con¬ troladas por Deus. mento
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Calendário agrícola Na economia agrícola do antigo Israel, o calendário lunar era usado em vez do calendário solar. As épocas de colheitas estavam conectadas às fases da lua. Por exemplo, o festival da Páscoa caía no dia 14 de Nissan. O mês começava com a lua nova (i.e., lua negra), portanto, o décimo quarto dia do mês era de lua cheia. Isso proporcionava mais tempo para a ceifa e também uma noite mais clara para o festival da colheita. A época do mês da colheita, porém, era determinada por sua relação com o equinócio solar. Desse modo, a contagem dos meses para o ano dependia do sol.
O leitor pode imaginar que a atividade correspondente ao plantio seja a colheita. Essa é uma das interpretações da palavra arrancar (la ‘ãqôr ), mas não é o seu sentido habitual. Ginsburg sugeriu que o arrancar se relacionava aos vegetais que são raízes, que são colhidos dessa forma, mas isso só se aplicaria a uma pequena parte da lavoura (1861, p. 305). Para alguns dísticos do poema, a segunda linha espelha a primeira. Se isso é verdade para o versículo 2, então, plantar e arrancar o que se plantou pode também ser entendido como metáforas para dar à luz e morrer. Isso se relacio¬ naria à guerra e à paz. Contudo, as batalhas eram, geralmente, conduzidas na época da seca (2 Sm 11.1) , e não na época da semeadura. O arrancar das plantas poderia relacionar-se às atividades destrutivas de um exército invasor (Ec 3.5; 2 Rs 3.19,25). Os exércitos eram notáveis por lançar pedras nos campos para reduzir a produtividade das lavouras inimigas. Sansão destruiu as searas de seus inimigos com raposas e fogo (Jz 1 5.5). Em uma analogia mais recente, Kit Carson desmoralizou Navaho destruindo seus pomares de pcssegos em 1864 (Brown, 1970, p. 27; veja 2 Rs 3.25). A única outra ocorrência da rara palavra arrancar ( ãqar) nessa conjuga¬ ção (Qal) refere-se à destruição de uma cidade na guerra (Ecrom, em um jogo de palavras; Sf 2.4). A palavra pode estar relacionada a radicais semelhantes, significando “cavar” (qâr, nãqar, kúr, kãrâ, ãkar, BDB 881, 669, 468, 500, 38). Uma palavra diferente para “arrancar” (nãtas ) ocorre repetidamente em Jeremias no contexto de destruição de nações (i.e., guerra: Jr 1.10; 12.14,15; 18.7; 24.6; 31.28,40; 42.10; 45.4). Logo, a palavra arrancar tem fortes cone¬ xões com as atividades do tempo de guerra, em vez de ser uma palavra neutra para a colheita.
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■ 3 Tempo de matar e tempo de curar são opostos nos cenários de paz e guer¬ ra. Durante as batalhas, é tempo de matar, mas a cura pode acontecer quando a guerra termina. Ginsburg pensava que as parelhas deveriam ser verdadeira¬ mente antitéticas; já que curar não é realmente o oposto de matar, ele sugeriu “salvar” em vez de curar, baseado na versão siríaca (1861, p. 305). No contex¬ to da guerra, curar pode referir-se à cura das relações interrompidas causadas pela guerra. A palavra hebraica rãpã ' (“curar”) é geralmente usada para cura de enfermidades. Logo, o texto poderia também se referir a um tempo de cura para as doenças. No pensamento moderno, qualquer hora é hora de cura. Uma interpretação extrema da doutrina da retribuição do AT considerava a enfer¬ midade um castigo de Deus; isso, então, significaria que o ato da cura interferia na justiça de Deus. Siraque defendeu a profissão médica com seu argumento de que os médicos estão engajados em continuar o trabalho de Deus por meio de seu dom de curar, o qual eles receberam de Deus (Sir. 38.1-14). Tempo de derrubar é, literalmente, demolir ( uma muralha)(liprôs, mas veja Is 5.5 onde esse verbo é usado para demolir uma muralha). O tempo de guerra seria um contexto adequado tanto para derrubar a muralha do inimigo como para transpor as barreiras a fim de atacar uma cidade sitiada (ou escapar dela). Tempo de construir pode referir-se a uma atividade dos tempos de paz, de construção dos muros e das casas que sofreram destruição durante a época de guerra.
Formação dos taludes Conquistas, guerras e terremotos geralmente significavam que estru¬ turas existentes tinham de ser removidas, para que as novas construções
pudessem começar. A dificuldade de remover os entulhos significava que os materiais existentes, que não poderiam ser reutilizados, seriam aplai¬ nados, elevando, assim, o nível da área em construção. Com o passar dos séculos, as cidades iam tornando-se cada vez mais altas, formando talu¬ des (colinas artificiais sobre as quais ficava o mais novo nível de ocupa¬ ção). Esse fenômeno tem permitido aos arqueólogos escavarem, descen¬ do pelas camadas, reconstruindo, assim, as histórias das cidades antigas.
BI 4 O choro e o riso do versículo 4 são reações adequadas à matança e à cura do versículo 3. O versículo 3 termina com a expressão et libnôt (“tempo de
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construir”), e o versículo 4 começa com um expressão sonora parecida: 'êt libkôt (tempo de chorar). No versículo 4, o oposto de prantear é dançar. Chorar e prantear têm conexões óbvias com o tempo de guerra, enquanto sorrir e dançar são atividades apropriadas em tempos de paz ou depois de uma vitória.
150 versículo 5 começa com estas atividades: espalhar e ajuntar pedras. Es¬ palhar pedras (sãlak , significa, literalmente, jogar ou lançar) pode referir-se a lançar pedras com atiradeiras em momento de guerra (ou de cima do muro da cidade ou no campo de batalha; qãla ' é a palavra comum usada no AT para atirar pedras). Sãlak é, geralmente, usada para lançar corpos fora (ex.: Is 34.3). Espalhar pedras poderia também se referir à ação do inimigo de espalhar pe¬ dras nos campos para interromper as atividades agrícolas durante a guerra (2 Rs 3.19,25). Da mesma forma, ajuntar (kênôs) as pedras pode estar relacionado a remover ou a ajuntar as pedras do campo para facilitar a aração e o plantio durante o tempo de paz (Is 5.2). O Targum e Ibn Ezra enxergavam as pedras como materiais de constru¬ ção que seriam descartados quando fossem inúteis e ajuntados quando fossem necessários (Ginsburg, 1861, p. 306; Wesley tinha essa mesma visão). Se for assim, então, ajuntar (e construir, v. 3) está relacionado ao tempo de paz, en¬ quanto espalhar está ligado ao tempo de guerra. A palavra abraçar geralmente é usada de forma literal para o abraço de saudação (ex.: Gn 29.13). Isso seria apropriado durante os tempos de paz, mas, durante a guerra, as atividades de defesa significariam tempo de se conter (lit., ficar longe de) em relação a abraçar, e não se abraçaria um inimigo. É improvᬠvel que as relações sexuais sejam levadas em conta aqui (Cohen, 1946, p. 124, citando o Targum e Pv 5.20), mas, se esse fosse o caso, essa atividade seria inapropriada no tempo de guerra (2 Sm 11.11; Jl 2.16). I6 No versículo 6, a atividade em questão é procurar e desistir. O verbo he¬ braico bãqas ( “procurar”, “desejar”) está na forma intensiva, que indica uma busca ativa ou uma procura de algo que se perdeu. O desejo seria manter seguro o objeto quando este fosse encontrado. O oposto é a facilidade de dispensar ou de perder o objeto que se procura (lançar fora) ou algo que já está na posse de alguém. Um item que ficaria permanentemente perdido uma vez que a busca cessasse. A segunda frase (tempo de guardar e tempo de lançar fora) parece ex¬ pressar uma ideia paralela. Ambas as linhas do versículo 6 parecem sugerir a ideia de atividades de tempos de guerra e de paz. Procurar e manter são ativi¬ dades para tempos de paz. Na guerra, as possessões são descartadas, a fim de
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escapar-se com vida, ou elas são confiscadas pelo exército invasor. O Midrash dá um exemplo de um tempo de lançar fora. Quando os viajantes em um navio temiam por suas vidas, porque os marinheiros planejavam matá-los por causa de seus tesouros, eles lançavam o tesouro ao mar (Cohen, 1983, p. 80). ■ 7 Tempo de rasgar, no versículo 7, deve referir-se às vestimentas, porque a contraparte de rasgar é costurar. O verbo costurar (litpôr) é raro, usado apenas quatro vezes no AT (Gn 3.7; Ec 3.7; Ez 13.18; Jó 16.15). As vestimentas eram rasgadas nos momentos de angústia (e depois costuradas, já que a maioria das pessoas não podia comprar roupas novas; ex.: Gn 37.29). Se a frase seguinte (tempo de calar e tempo de falar) estiver relacionada com a primeira, então, isso deve ser o silêncio da angústia, assim como foi com os amigos de Jó, que se sentaram em silêncio por sete dias (Jó 2.12,13). Ambas as frases do versículo 7 parecem relacionar-se à angústia, que era comum durante a guerra quando a costura e a conversa casual eram inapropriadas. B 8 O versículo 8 torna explícito o tema do tempo de guerra e de paz dos ver¬ sículos 2-8. Duas mudanças estilísticas ocorrem nesse último verso do poema. Um infinitivo (uma característica do poema inteiro) é abandonado na frase final, em favor do substantivo (lutar e paz). A outra mudança é a reversão da correspondência. Para os outros pares, os primeiros elementos de cada linha es¬ tão relacionados, e os segundos elementos também estão relacionados (exceto, talvez, o versículo 5). No versículo 8, o primeiro elemento da primeira linha (amar) corresponde ao segundo elemento da segunda linha (paz), e o segun¬ do elemento da primeira linha (odiar) corresponde ao primeiro elemento da segunda (lutar). Isso reflete um quiasmo nesse versículo, e, juntamente com o versículo 3, um quiasmo enquadra o poema todo. A mudança na gramática (substantivo, em vez de infinitivo) aparentemen¬ te confirma lutar e paz como o tema do poema. Lutar e paz não são apenas atividades em um tempo de vida mediano (ou o infinitivo “tempo de parar de lutar” teria sido usado). São condições externas sob as quais a vida é vivida (su¬ premamente controlada por Deus, e não pelos homens) que a tornam incerta e imprevisível. As ações (particípios) do poema são adequadas, independente de o verbo lutar ou o substantivo paz estarem presentes. Um tema principal do li¬ vro é que acumular riqueza e estudar a sabedoria têm resultados não confiáveis. Isso se torna mais verdadeiro com a ameaça de guerra. Tempo de odiar parece contradizer o ideal bíblico do amor. Porém, o contexto desse poema é uma ênfase sobre a soberania de Deus, especialmente o tempo de Deus. Os aspectos individuais do poema não devem ser vistos como uma permissão para o comportamento egoísta. O tempo de odiar e guerrear não
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é quando os homens decidem fazer vingança, mas quando o tempo de Deus lança a necessidade de tal ação sobre o povo. As definições hebraicas para amor e ódio concentram-se mais na ação e menos na emoção do que as concepções modernas. Deuteronômio 6.5,6 or¬ dena o amor, o que indica que uma ação é necessária (já que as emoções não podem receber ordens). O conteúdo do amor ordenado é guardar os manda¬ mentos, incluindo a lealdade exclusiva ao Senhor, que é a essência da aliança. Nas cartas de Armana, relatava-se que os reis que estavam juntos em aliança amavam uns aos outros (NIDOTTE 1:278). Isso incluía um relacionamento de ajuda mútua em caso de ataques. A palavra odiar caracteriza um relaciona¬ mento sem aliança e poderia significar guerra. O Faraó do Egito designou os inimigos militares como os odiosos (NVI, inimigos) em Êxodo 1.10. Quando Jesus usa as palavras “amor” e “ódio”, o foco parece estar na lealdade; por exem¬ plo, Ele diz aos Seus discípulos que eles deveriam “aborrecer” os seus pais (Lc 14.26).
B. O que fazer? Desfrute! (3.9-22) 190 poema termina no versículo 8, e o texto hebraico tem uma quebra de parágrafo aqui (sètâmâ). Pode-se esperar, na próxima seção, uma celebração da soberania de Deus por causa de Seu controle sobre o tempo das diversas atividades humanas. Contudo, Coélet retorna à reclamação corriqueira sobre a falta de proveito do trabalho. Isso seria particularmente relevante em tempo de guerra. Uma reflexão sobre o poema começa com a pergunta: O que ganha o trabalhador com todo o seu esforço? (v. 9), o qual ressoa Eclesiastes 1.3. O “homem” de 1,3 é substituído pelo trabalhador em 3.9. Estes são usados como sinónimos, mas “trabalhador” ou “aquele que faz” ( 'ôseti) é escolhido no contexto, porque é tentador para os homens pensarem que estão no controle, mas é realmente Deus, o supremo trabalhador/operador/criador, que controla o tempo (veja o v. 11). B 10 Coélet continua a enfatizar o verbo “ver” nesse capítulo (seis vezes), de¬ signando a soberania de Deus como um fardo ( 'inyãn) no versículo 10. O ver¬ bo ver (rã'â) ocorre 14 vezes em Eclesiastes e é uma das palavras mais comuns do livro. A observação é a maior fonte de revelação na literatura da sabedoria, em vez da revelação direta de Deus comum na literatura profética. O fardo (ou “negócio”) que Deus deu à humanidade é outro eco do capítulo 1 (veja 1.13). O verbo do qual essa palavra deriva também pode significar “afligir”, o que mostra um aspecto negativo do negócio que Deus concedeu; daí, a tradução
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de fardo. O tempo de Deus pode ser uma bênção, mas, para Coélet, isso é um fardo que Deus impôs aos homens ou, literalmente, deu aos homens (nãtan). O verbo dar é também uma palavra importante nesse capítulo. Isso enfatiza a soberania de Deus no tempo dos afazeres humanos. I 11 O assunto se estende ao versículo 11, que afirma que Deus fez tudo apropriado a seu tempo. Enquanto os homens possam parecer trabalhadores/ feitores/criadores (v. 9), na verdade, é Deus quem opera/faz/cria tudo. A pala¬ vra apropriado (yãpeh) fica mais do que aparente nesse contexto (“formoso” ARC). Deus fez tudo correto e bom, ou apropriado (um dos significados no hebraico pós-bíblico; Fox, 1999, p. 209). Tudo o que Deus fez tem um tem¬ po apropriado para revelar o seu propósito. Aliás, o próprio tempo pertence a Ele, se o pronome relacionado ao tempo é visto em referência a Deus, e não a tudo (“Seu tempo” em vez de seu tempo). De qualquer forma, Deus é o sujeito do verbo “operar/ fazer/criar”, e Ele é o responsável por designar o tempo para
cada coisa. Essa análise positiva da soberania e da ordem de Deus é o que se poderia esperar na conclusão do poema nos versículos 2-8. É possível que Coélet vol¬ tasse ao tema do trabalho humano e sua futilidade nos versículos 9 e 10, para contrastar o trabalho humano com o propósito e o desígnio do trabalho e do tempo de Deus no versículo 11.0 esforço humano não pode levar ao ganho excessivo por causa da soberania de Deus. Os esforços humanos para controlar o resultado (mesmo por meio da sabedoria) são fúteis e tornam-se um “fardo” (v. 9) por causa de sua futilidade. É Deus (e não os homens) quem tem o poder de tornar as coisas formosas, assim como a Sua criação em Génesis 1 foi decla¬ rada “boa” (Sir. 39.16 expressou uma ideia semelhante, usando “bom” em vez de apropriado). Deus não só é responsável pelo tempo, mas também pôs no coração do ho¬ mem o anseio pela eternidade (v. 11). O significado de eternidade ( õlãrn) é argumentado pelos comentaristas. As traduções sugeridas (inclusive emendas) são “duração” (Murphy, 1992, p. 34), “estafa” (Fox, 1999, p. 211), “ignorância” (Whitley, 1979, p. 31-33), “trevas/ignorância” (Gault, 2008, p. 57) e “mundo” (Septuaginta, latim). A tradução eternidade é pressuposta como um contraste com tempo. Embora a humanidade esteja limitada pela regência temporal que Deus, em Sua soberania, concede, as pessoas estão, não obstante, conscientes de uma realidade que não está confinada ao momento. Os homens estão cons¬ cientes do passado e sabem sobre o futuro, mas não podem controlar o tempo dos acontecimentos futuros, nem mudar as ocorrências dos eventos passados.
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Essa consciência é um dom de Deus, e o desafio da humanidade é aceitar esse dom e trabalhar dentro dos parâmetros da cronometragem de Deus. Uma frase estranha e desconhecida em outras literaturas hebraicas é a base da tradução mesmo assim este não consegue (mibbèli 'ãser lõ’), no versículo 11. Belt tem o significado básico de “defeito, fracasso” e é usado como um ad¬ vérbio de negação (“não, não há, fora”). Também pode ser associado a diversas preposições, neste caso, min (“a partir de”). A negativa dupla {lõ ’) fornece in¬ tensidade (uma negativa não cancela a outra; GKC §152y). Mibbèli pode ter sido escolhido em 3.11 por causa da semelhança sonora com a palavra prece¬ dente ( bêlibbãm, coração do homem; Crenshaw, 1987, p. 98). O restante do versículo 11 é literalmentc: O homem não consegue encontrar a obra que Deus tem feito desde o início até o fim (este não consegue compreen¬ der inteiramente o que Deus fez). Isso combina o uso de hebel (vaidade), por Coélet, com o sentido de “incompreensível”. A soberania e a cronometragem de Deus estão além da compreensão humana. Uma busca por tais respostas seria como correr atrás do vento; a lógica para as obras de Deus não pode ser encontrada.
John Ruskin sobre a formosura, 1885 —
1889
Os bosques, os quais eu apenas via como selva, preenchiam-se em sua beleza, como, depois, vi as mesmas leis que guiavam as nuvens divi¬ dindo a luz e balançando as ondas. A frase "Ele fez tudo apropriado a seu tempo" tornou-se, para mim, daí em diante, a interpretação da ligação entre a mente humana e todas as coisas visíveis ( Praeterita . In: Christian¬ son, 2007, p. 177,178).
H 12 O versículo 12 é introduzido com descobri, um verbo que é mais rela¬ cional do que “tenho visto” (3.10,14,16), mas que também pode ser aplicado ao conhecimento que é meramente cognitivo. A experiência de Coélet aqui é consistente com a conclusão em 2.24 (veja também 8.15). Precisamente, assim como a soberania de Deus e o Seu controle do tempo, a humanidade deve ficar contente em viver o momento e em fazer o bem. Não há nada melhor é uma forma negativa da expressão “melhor do que”, que é característica da literatura da sabedoria (ex.: melhor é a sabedoria do que os rubins, Pv 8.11 ARC; Ec 4.3,6,9,13).
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A tradução para o homem representa uma emenda (ou pelo menos uma explicação) de bãm (para ele) para ba ’ãdãm (“para o homem”, veja 2.24). Há alguns manuscritos que têm essa leitura, sugerindo que bãm possa ser um erro do escriba, embora o plural indique simplesmente uma compreensão coletiva do pronome singular de na sua vida ao final do versículo (bêhayyãyw enquan¬ to vive). A concordância gramatical nem sempre é muito precisa em hebraico, e Eclesiastes possui um grande número de anomalias linguísticas. Alguns presumem que a frase praticar o bem (wêla ‘ãsôt tôb) seja influen¬ ciada pela expressão grega eu prattein (“fazer bem”, i.e.: estar bem; Zirkel, cita¬ do por Delitzsch, 1875, p. 262). Se for assim, isso seria um paralelo adequado para ser feliz, já que esse capítulo não está dando conselhos éticos (embora esteja aconselhando certa filosofia de vida).
B 13 Embora Deus tenha dado à humanidade uma atividade (v. 10) e o co¬ nhecimento da eternidade (v. 11), Ele também deu o dom do prazer (lit., ver o bem). Esse versículo contém dois consecutivos waw, uma construção grama¬ tical comum na narrativa, mas não em Eclesiastes ( wèsãtâ wèrã 'â\ veja 1.17).
O conselho do taverneiro para Gilgamesh Que o seu estômago esteja cheio, Seja feliz durante o dia e à noite, Transforme cada dia em um banquete de celebração, Dance e divirta-se dia e noite. Vista roupas novas, Lave seus cabelos e seu corpo na água. Brinque com seus filhos, Tenha prazer com sua esposa. (Epopeia de Gilgamesh, antiga versão babilónica; Matthews e Benjamin, 2006, p. 26)
B 14 O versículo 14 é introduzido com sei (veja v. 12). A ênfase também é naquilo que Deus faz, que não é temporário (vaidade), como as obras dos ho¬ mens, mas duradouro. As obras de Deus duram para sempre, não no sentido de
que não haja mudança ou decadência, mas no sentido de que Suas ações têm uma significance duradoura. As ações dele são projetadas para levar os homens a temê-lo. Esse é um tema importante na literatura da sabedoria, e Coélet torna
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isso explícito em 8.12 e 12.13. O temor de Deus não é um terror que é contra¬ producente para um relacionamento saudável, mas um reconhecimento de que existe uma significativa distinção entre Deus e a humanidade. A soberania de Deus sobre a natureza, a atividade humana, e sobre o tempo deve ser reconhe¬ cida pela humanidade. O temor de Deus é a expressão da literatura da sabedoria do correto relacionamento com Deus (veja von Rad, 1972, p. 66). Crenshaw argumenta que o conceito de Coélet sobre o temor de Deus é diferente do ensino normal da sabedoria, aproximando-se até do “terror diante de um déspota imprevisível” em alguns casos (Crenshaw, 1987, p. 100, citando E. Pfeiffer). Todavia, não há uma indicação clara deste ponto de vista neste contexto. O fato de que as ações de Deus têm uma significância duradoura não invoca o terror, mas, segundo o argumento de Coélet até então, deve tra¬ zer o desfrute dos dons que Deus tem dado (Eaton, 1983, p. 82). Baseado na paráfrase de Sirácida 18.6, Fox escreve: “Temer a Deus significa aceitar nossas
próprias limitações” (1999, p. 213).
H15 Eclesiastes 1.10 ressoa no versículo 15: Aquilo que é, já foi, e o que será já foi anteriormente. A segunda metade do versículo tem sido interpretada de diversas maneiras (Deus investigará o passado). A tradução literal é: E Deus buscará o que é buscado (wêhã 'élõhim yêbaqqêfet-nirdãp). Os homens buscam um legado na vida, mas não há lembrança daquilo que eles fizeram (l.ll), e eles não podem controlar o momento dos acontecimentos (3.1-11). A busca de Deus é, entretanto, bem-sucedida. Ele tem aquilo que os humanos não con¬ seguem encontrar (3.11)A Septuaginta e o Targum interpretam o objeto da busca de Deus como “o perseguido”, que é o significado de nirdãp (o que é buscado) no Talmude. Os intérpretes modernos que seguem essa leitura têm a tendência de deslocar esse versículo, já que a ideia parece não se encaixar no contexto. Crenhsaw favorece a ideia de que Deus esteja buscando eventos do passado para trazê-los de volta ao presente, que é um ciclo que ele vê representado em 1.9 (1987, p. 100). Um significado mais provável é que Deus não está confuso com a noção infinita da natureza, mas que Ele é capaz de alcançar a significância que os atores humanos acham elusiva e incompreensível.
(Um tempo de julgamento [3.16,17])
1 16 No versículo 16, Coélet muda um pouco o assunto para o tópico da jus¬ tiça, uma questão que ele retomará em 4.1. Usando o verbo “ver”, ele observa a
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impiedade no lugar da justiça e da retidão ( mispãt e sedeq). Será que a impieda¬ de também está debaixo da soberania de Deus ? Os cristãos, embora precisem ser cuidadosos com as respostas simplistas ao problema do mal, encontram a solução no juízo final. Coélet não tem tal luxo, já que ele aparentemente não tem o conceito da ressurreição nem do juízo final. No entanto, ele não desiste da ideia de que Deus trará justiça nesta vida, embora essa justiça nem sempre seja óbvia, já que os caminhos de Deus são inescrutáveis e incompreensíveis. O conceito de ordem era muito importante em Israel e no antigo Oriente Próximo. A observação do versículo 16 fornece a evidência de uma falta de ordem. Uma observação similar é feita no documento A Sufferer and a Friend in Babylon, onde o sofredor diz: “Eu procurei a paz pelo mundo,/ Tudo está dc cabeça para baixo./ A estrutura divina é incapaz de restaurar a ordem” (ca. 700 a.C.; Matthews e Benjamin, 2006, p. 242). 17 O versículo 17 afirma que a injustiça é uma situação temporária, já que o justo e o ímpio, Deus julgará a ambos. Assim como Deus determina um tempo para cada atividade humana, Ele também traz cada atividade humana a julgamento em Seu tempo. A doutrina da retribuição padrão da literatura da sabedoria (“você colhe o que plantou”) está operando na visão de Coélet, embora os resultados da ação humana possam atrasar. Na visão padrão, a dou¬ trina da retribuição é vista operando quase que automaticamente, por mais que Eclesiastes não seja o único livro do AT a desafiar isso (vejajó; Pv 11.16; 13.23; 14.13:21.31). Coélet provavelmente não tem um dia escatológico de julgamento em mente (veja Ec 3.18-21). O julgamento pode vir na forma de consequências para os justos e os ímpios nesta vida. Essas consequências serão atrasadas até ao tempo da escolha de Deus, e a justiça será a palavra final, embora a impiedade pareça prevalecer. O Targum e outros têm interpretado isso como uma referência ao “grande dia do juízo” (Ginsburg, 1861, p. 315). Esses intérpretes tomam a declaração de Coélet ao pé da letra de que não há justiça (mispãt) no mundo (3.16) e que Deus trará justiça {yispõt, 3.17). Crenshaw enxerga isso como uma aparente contradição, que pode ser um acréscimo posterior feito por um professor mais conservador (1987, p. 102). Parece, entretanto, que Coélet está dizendo que Deus trará justiça em Seu próprio tempo e modo, apesar das atuais evidências
■
quanto ao contrário.
■ 18 Em 2.16, Coélet não vê distinção entre o sábio e o tolo, já que ambos morrem (sem nenhuma esperança de uma significativa vida após a morte).
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F.CI.F.SIASTES
Agora, em 3.18-21, o mesmo ponto é defendido concernente aos homens e aos animais. Ambos morrem, e Coélet não tem certeza da hipótese (aparente¬ mente comum) de que o fôlego de vida dos homens seja distinto do fôlego de vida dos animais (todos têm o mesmo fôlego, v. 19). Uma frase hebraica incomum é a base da tradução: prova os homens para que (' al-dibrat bèné hã 'ãdãm, v. 18). Al-dibrat significa “concernente, de for¬ ma que” e é comum em aramaico (Dn 2.30), mas ocorre apenas quatro vezes no hebraico bíblico (SI 110.4; Ec 3.18; 7.14; 8.2). Diversas palavras no versí¬ culo 18 são difíceis de traduzir (lêb-ãrãm, prova; wélir ôt, para que vejam; e sèhem-bêhêmâ hêmmâ lãhem, são como os animais). A ideia geral é que Deus prova ou purifica os homens, para que eles vejam que também compartilham a mortalidade com os animais. I 19 A palavra fôlego é a mesma em hebraico que é traduzida como “sopro de vida” no versículo 21 [NTLH], O sentido literal dessa palavra em hebraico é vento ou fôlego, e ela não tem as mesmas conotações para o público hebraico que “sopro de vida” tem em inglês. Ela é literalmente o fôlego, que caracteriza todos os seres viventes. Se ele vai para cima ou para baixo após a morte, isso não é uma existência continuada de uma entidade pessoal. É meramente uma afir¬ mação de que Deus é responsável por todas as vidas. Uma vez que a pessoa per¬ de o fôlego de vida, nenhum esforço humano pode trazer um corpo de volta à vida novamente (até as técnicas médicas modernas só têm um curto período de oportunidade para isso). Essa interpretação é apoiada pela frase “o fôlego em nossas narinas é fumaça” no livro apócrifo de Sabedoria de Salomão, que é um certo tipo de comentário sobre Eclesiastes (SS 2.2, veja Ginsburg, 1861, p. 28). O hebraico para vantagem (môtar) é usado apenas aqui em Eclesiastes (também em Pv 14.23; 21.5). O vocabulário comum de Coélet é yitrôn ou yótêr (ex.: 1.3; 7.16). Todas as três palavras têm a mesma raiz. A Septuaginta interpretou a frase como uma pergunta retórica: “Qual é a vantagem?” A falta de distinção entre humanos e animais é hebel (inutilidade) no mesmo sentido de ser sem proveito e incompreensível. H 20 Essa falta de distinção pode ser observada no fato de que vieram todos do pó, e ao pó todos retornarão. A maior parte da compreensão antiga sobre o mundo estava baseada na simples observação, um tipo de método científico, porém com menos dados com os quais trabalhar. Já que um corpo logo se decom¬ põe em pó, presume-se que o pó é a matéria-prima da humanidade (Gn 2.7). Isso é mais explícito em Génesis 3.19, no qual os pecadores são condenados a retornar ao pó (vejajó 10.9; 34.15; SI 104.29; Sir. 40.11). O ponto defendido por Coélet
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é que tanto os seres humanos como os animais parecem ser feitos do pó, e não há evidência de que haja qualquer distinção entre o fôlego de vida dos dois. O fato de que os corpos se decompõem não diminui a crença no Sheol, um além-vida insignificante, já que acreditava-se que esse reino era preenchido pela “escuridão” (pelos “fracos”, rêpã 'im), não espíritos ou almas. O destino do corpo podia ser facilmente observado, o mesmo retornava ao pó (Pv 9-18; Is
14.9). H 21 Quanto ao fôlego de vida, ninguém pode observar, portanto, ninguém pode dizer se o fôlego do homem sobe às alturas e se o fôlego do animal desce para a terra. Essa tradução segue as versões antigas que levantam dúvida sobre a distinção geralmente defendida entre as pessoas e os animais. O texto hebraico não tem se, o que pode significar que não há dúvida sobre quem sabe da distinção (quem sabe [que] o espírito do homem...') ou quem conhece o espírito (margem da NVI, “quem pode dizer se o espírito do homem...”). Essa leitura não parece correta, porque equivale a uma afirmação da percepção comum de que algo acontece depois da morte das pessoas, diferente do que acontece com os animais, uma percepção que Coélet está desafiando em 3.1820. Ginsburgpensou que a negação da imortalidade da almaparecia heterodoxa aos escribas massoréticos (que preservaram o texto hebraico), levando-os a mudar a interrogativa he para o artigo definido (que também é a letra ré), fornecendo vogais diferentes {hã 'õlâ e hayyõredet para ha õla e hãyõredet-, Ginsburg, 1861, p. 319; veja GKC §100m, 150). Se isso estiver correto, então as traduções antigas estarão corretas (juntamente com a leitura da NVI). De qualquer forma, a interrogativa he não é necessária para a formação da pergunta em hebraico. H 22 O versículo 22 conclui esse pensamento e todo o capítulo com; Não há nada melhor para o homem do que desfrutar do seu trabalho, porque esta é a sua recompensa. Pois, quem poderá fazê-lo ver o que acontecerá depois de morto? Isso é consistente com as conclusões que Coélet tem feito até então (2.24; 3.12). Os homens não podem controlar a hora dos acontecimentos. Em vez disso, devem aceitar a soberania de Deus. Eles não conseguem saber o que acontece após a morte, nem pessoalmente, nem quanto ao legado que deixa¬ ram, portanto, devem desfrutar do que têm agora como uma dádiva de Deus. Em outro lugar, Coélet descreve a atividade humana com a palavra negativa “fadiga” ( 'ãmãl). Aqui, ele usa a palavra trabalho {ma 'ãsãyw), uma palavra mais neutra (Crenshaw diz que hão há distinção; 1987, p. 105).
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ECLESIASTES
A PARTIR DO TEXTO
Soberania divina É talvez comum ler Eclesiastes 3 como uma injunção para determinar a ação adequada para um tempo em particular. Entretanto, o significado da pa¬ lavra ocasião (3.1) e a teologia do livro sugerem que é o tempo de Deus que determina esses acontecimentos contrastantes. A questão não é a escolha hu¬ mana, mas a soberania divina. Os homens só podem reagir com a atitude apro¬ priada ao tempo que foi imposto sobre eles (von Rad, 1972, p. 138).
Goze a vida Outra preocupação do livro é a luta pela riqueza ou pelo controle por meio da sabedoria (e da justiça). O capítulo 3 expõe a futilidade dessa filosofia e aconselha, ao contrário, o contentamento, aceitando qualquer que seja o ali¬ mento, a bebida e o trabalho que Deus tem dado (3.13,22). Se for para acon¬ tecer uma mudança de posição, isso terá de esperar pelo tempo de Deus e não pode ser forçado pelo esforço humano (incluindo a sabedoria e a justiça).
Mistério da retribuição Uma das principais preocupações do livro é a injustiça, e esse capítulo usa o poema sobre o tempo para levar à afirmação de que Deus trará a justiça - em Seu tempo (3.17). O aparente abatimento da doutrina da retribuição é apenas temporário, mas isso mostra que os homens não podem controlar os resultados. Comparado à cultura ocidental moderna, o antigo Israel era mais orienta¬ do pelos acontecimentos do que pelo tempo. A invenção moderna dos relógios tem permitido uma maior precisão na orientação temporal e, juntamente com outros avanços tecnológicos, tem dado à cultura ocidental a ilusão de controle. Coélet discordaria dessa percepção. Apesar dos esforços humanos para concrolar os acontecimentos por meio da tecnologia ou da sabedoria, é Deus quem está no controle e Ele determina a ocasião de tudo.
Além da morte
física
Não é difícil reconhecer a visão de Coélet de que tanto os animais como os homens morrem, e ambos se tornam pó. Contudo, será que isso significa que,
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para os seres humanos, não há esperança além do túmulo? Coélet nega a possibi¬ lidade de vida humana além da morte. A doutrina cristã da ressurreição fornece uma clara alternativa para a visão pessimista de Coélet. Para os cristãos, a res¬ surreição de Jesus de Nazaré traz esperança a todos os que antecipam a obra de Deus de levantar os mortos do corpo “corruptível” para o “incorruptível” do “corpo natural” para o “corpo espiritual” (1 Co 15.42-44).
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V. 0 QUE É MELHOR? (4.1-16) POR TRAS DO TEXTO
Eclesiastes 4.13-16 é um dos poucos parágrafos em Eclesiastes que pode¬ riam trair um contexto histórico específico. A cena envolve um velho rei tolo suplantado por um jovem pobre; esse é provavelmente um cenário hipotético. O Targum sugere que os personagens desse texto são Abraão e Ninrode, ou Jeroboão e Roboão; o Midrash e o Rashi sugerem José, Davi e Zedequias; outros sugerem Amazias e Joás, ou o sumo sacerdote Onias (245 221 a.C.) e seu sobrinho José (Ginsburg, 1861, p. 330). O gênero do capítulo 4 é a reflexão, porém, ele introduz um artifício literário chamado expressões “melhor do que” [tôb min) (veja também 7.112). Essa é uma característica conhecida da literatura da sabedoria e permite comparações, geralmente mostrando a superioridade da sabedoria, da justiça e dos relacionamentos sobre a riqueza (Pv 3.13,14; 8.11,19; 15.16,17; 16.8,16;
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17.1; 19.1,22; 21.9,19; 25.24; 27.10; 28.6). Por exemplo, Provérbios 16.16 diz: “É melhor obter sabedoria do que ouro!”. Pode haver certa ironia do uso desse artifício por Coélet, já que ele sempre diz não é bom (NVI, não existe nada melhor; 2.24; 3.12,22). As expressões “melhor do que” em 9.16 e 9.18 estão qualificadas no mesmo versículo (Seow, 1997, p. 67). Entretanto, muitas
expressões “melhor do que” apresentam uma comparação séria, como: É melhor ter companhia do que estar sozinho (4.9), enquanto outros parecem mais cínicos ou irónicos, como: melhor do que ambos é aquele que ainda não nasceu (4.3). No capítulo 4, Coélet dá continuidade a alguns temas da unidade anterior. O autor explora outros assuntos sobre o contentamento e a sabedoria, revisita a vaidade das unidades anteriores e introduz o tema dos relacionamentos pela primeira vez. O uso frequente de “dois” é outra característica importante desse capítulo (v. 3,8,9,10,11,12,15). As expressões “melhor do que” fornecem a estrutura para Eclesiastes 4.112. Os dois primeiros parágrafos terminam com expressões “melhor do que”, enquanto os dois últimos começam com expressões “melhor do que”. Isso deixa o culminante parágrafo central sem uma expressão “melhor do que”. A unidade pode ser esboçada como segue: É melhor não nascer (4.1-3) É melhor o pouco com alegria (4.4-6) Não há contentamento (4.7,8) Melhor é serem dois do que um (4.9-12) Melhor é ser pobre, porém sábio (4.13-16)
NO TEXTO
A. É melhor não nascer (4.1-3)
■1O capítulo 4 começa com a frase de novo voltei (wésabtí), que ainda não tinha sido usada nesse sentido até este ponto; contudo, essa frase dá continui¬ dade à ideia representada por duas outras palavras de textos prévios (veja sãbab e pãnah, em 2.11,12,20). Coélet voltou sua atenção e viu (wã 'er'eh) as opres¬ sões e os oprimidos. No capítulo 3, não houve menção de opressão no tempo de Deus. O voltar-se de Coélet é para considerar um novo tópico, a saber, a
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opressão, a riqueza e o poder. O assunto da opressão é, talvez, parte da impie¬ dade que Coélet viu no lugar da justiça e da retidão (3.16). Para a expressão debaixo do sol, veja o comentário em 1.3. Coélet também observa as lágrimas do oprimido (a NVI diz vi). Não há quem os console, ninguém para mostrar misericórdia. Isso é uma falta séria, do ponto de vista da cultura bíblica (Ginsburg, 1861, p. 321; Lm 1.2). Coélet também viu que o poder estava do lado dos seus opressores (lit., na mão de seus opressores estava o poder). Na Bíblia hebraica, a palavra “mão” é frequentemente usada no sentido de poder, pois é a mão que obriga a obedecer. Por exemplo, na canção de Moisés e Miriã, era a mão direita do Senhor que despedaçava o inimigo (Êx 15.6). A palavra poder (kõah ) transmite a ideia de força ou violência (Ginsburg, 1861, p. 321; 2 Cr 26.13). A mão dos opressores fica em contraste com a menção usual de Coélet sobre a mão de Deus como uma expressão de Sua soberania (2.24; 9.1). Não há quem os console é repetido no final do versículo 1 e pode ser um caso de ditografia (erro de copiar algo duas vezes). Contudo, a segunda ocor¬ rência acrescenta um efeito dramático à falta de misericórdia que os oprimidos recebiam e, então, provavelmente, é original. Coélet não utiliza a sua observa¬ ção de opressão como uma oportunidade de dar algum conselho ético, mas, ao contrário, ele alerta seus leitores quanto ao problema da opressão e à falta de consoladores. Alguns comentaristas veem na observação de Coélet uma falta de simpatia pelos oprimidos que estão sem consoladores ou advogados para darem um fim à opressão. Isso tem levado alguns a pensarem que o autor “per¬ tencia à classe alta por nascimento e posição” (Murphy, 1992, p. xxi). 2-3 Na autobiografia real dos capítulos 1 e 2, Coélet, em sua personagem como rei, declarou que odiava a vida por causa de uma falta de satisfação du¬ radoura (2.17). Os versículos 2 e 3 também transmitem a ideia de insatisfação com a vida. Nesses versículos, o autor categoriza as pessoas em três grupos em ordem ascendente de felicidade - os vivos, os mortos e os que ainda não nas¬ ceram. No versículo 2, Coélet considera os mortos mais afortunados do que os vivos. Isso não significa que ele esteja defendendo o suicídio. Em seu pensa¬ mento, a severidade das opressões faz com que a vida não valha a pena (veja Jó 3.11-19). Ele é menos complacente no versículo 3, no qual é o mero incómodo de observar o sofrimento dos outros que torna a vida insuportável.
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O sofredor e a alma no Egito, ca. 2000 a.C. Minha alma, você realmente quer que eu continue vivendo? Quando a minha vida exala um odor pior do que... ... excrementos de pássaro em um dia quente, ... peixe podre em pleno sol,
o chão de um poleiro de patos, o suor de um pescador, ... um lago de peixes estagnado, ... o bafo de um crocodilo? (Matthews e Benjamin, 2006, p. 227) ...
...
Melhor do que ambos, no versículo 3, é um exemplo de expressão “me¬ lhor do que”. Enquanto o que morre, no versículo 2, é mais feliz do que os vivos, aquele que ainda não nasceu é ainda mais feliz, no versículo 3. Que não viu o mal que se faz debaixo do sol pode referir-se àqueles que não experi¬ mentaram o mal da opressão no mundo. Calvino viu nisso um empecilho para a doutrina da ressurreição no NT ( Institutes 3.9.4; 3.25.5; Brown, 2007, p. 76).
Theognis acerca dos não nascidos Não nascer, nunca ver o sol, Nenhuma bênção terrena é maior do que esta! E a segunda melhor é morrer rapidamente, E, envolto debaixo de um monte de terra, repousar! (Citado em Ginsburg, 1861, p. 323)
B. É melhor o pouco com alegria (4.4-6) H 4 A expressão “melhor do que”, no versículo 3, assinala o fim do primeiro pa¬ rágrafo, e um novo parágrafo começa no versículo 4. O verbo “ver” introduz o próximo item que Coélet deseja ressaltar nesse capítulo, a saber, os frutos do tra¬ balho excessivo amontoados para o próprio indivíduo. Nos impérios pós-exílicos, os direitos de herança eram controlados pelo rei ou pelos seus representantes. 120
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Coélet já deixou claro que o trabalho excessivo é inútil, já que não se sabe quem herdará os frutos desse trabalho (2.18,19). Para a palavra exclusiva kisrôn, rea¬
lização, veja comentário em 2.21. O problema do trabalho excessivo é que ele não é motivado pelas neces¬ sidades da vida, mas pela competição que existe entre as pessoas. Isso é ver¬ dadeiramente absurdo (hebet) e fútil. Os Teachings of Ptah-Hotep do Egito também condenavam a cobiça: “Se você herdar terra, tome apenas a sua porção da propriedade. Não cobice a terra dos outros” (ca. 2500 a.C.; Matthews e Benjamin, 2006, p. 286; veja também Pv 15.27).
150 versículo 5 tem um contraste com o vizinho invejoso - o tolo que não se preocupa em trabalhar de forma alguma, mas, ao contrário, acaba destruin¬
do a sua própria vida. Mãos desocupadas são mãos vazias, e Coélet parece pre¬ ver aqui indivíduos tão preguiçosos, que comeriam sua própria carne, mas não levantariam a mão para ajudar a si mesmos, uma imagem ridícula que enfatiza o ponto de vista por meio do exagero. A tradução literal, come a sua carne, transmite a ideia de destruir a si mesmo. O livro de Provérbios mostra a conse¬ quência da preguiça: “Tirando uma soneca, cochilando um pouco, cruzando um pouco os braços para descansar, a sua pobreza o surpreenderá como um assaltante, e a sua necessidade lhe virá como um homem armado” (Pv 6.10,11; 24.33,34; veja tambéml9.24). Lohfink oferece uma leitura alternativa, a saber, que, apesar de preguiçosa, tal pessoa tem muita carne para comer, outro exem¬ plo do colapso da retribuição (2003, p. 69,70). H 6 É necessário haver um equilíbrio entre trabalhar desenfreadamente para “subir na vida” e não fazer absolutamente nada. Coélet fornece esse equilíbrio no versículo 6 com outra expressão “melhor do que”: Melhor é ter um punha¬ do com tranquilidade do que dois punhados à custa de muito esforço. O primeiro punhado (kap) usa a palavra hebraica para uma mão aberta, enquan¬ to punhados ( hãpênayim ) são mãos fechadas (Delitzsch, 1875, p. 275,276). O trabalho deve fornecer uma vida confortável, sem tornar-se um esforço can¬ sativo para acumular mais do que é necessário. Isso é semelhante à preferência em Provérbios de uma refeição simples em paz a um banquete com intrigas (Pv 15.16; 16.8; 17.1). Krúgcr traduz esse provérbio como “um punhado de descanso” (mais lite¬ ral do que um punhado com tranquilidade na NVI) (2004, p. 97). Crenshaw pensa que isso chega quase a sufocar a iniciativa individual (1987, p. 107,108). Entretanto, como todo provérbio, esse está aberto à distorção e deve ser aplica¬ do à situação adequada. A situação a que Eclesiastes consistentemente se dirige
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é o trabalho e o esforço, e não a preguiça e a inatividade. A teologia do conten¬ tamento de Coélet não é de complacência nem de preguiça (10.18).
C. Não há contentamento (4.7,8) ■ 7 Outra vez me voltei (descobri ainda) assinala um novo parágrafo nesse capítulo. Esse parágrafo é central no capítulo e não contém a expressão “melhor do que”. Esse versículo contém o pensamento central do capítulo, a saber, o valor do companheirismo, da cooperação e do contentamento em oposição ao excessivo acúmulo solitário que caracteriza a opressão (4.1-3), a competição (4.4-6) e a falta de felicidade (4.16). Não obstante, Coélet inicia o parágrafo com sua declaração característica de que ele tem observado a vaidade. Talvez o significado de hebel (absurdo) aqui seja “incompreensível” ou “difícil de obter-se”. Por que precisamos uns dos outros ? Por que é tão difícil encontrar um amigo fiel e a felicidade? Essas parecem ser as perguntas que Coélet tenta responder aqui. I 8 Havia um homem totalmente solitário (v. 8) é literalmente: Há um só, e não hã o segundo. A frase em hebraico reflete o artifício da literatura da sa¬ bedoria chamado de “provérbio numérico”. Os números usados nessas expres¬ sões são um e dois (Dt 32.30; Jó 33.14; SI 62.11; Jr 3.14), três e quatro (Pv 30.15,18,21,29; Am 1; 2), seis e sete (Jó 5.19; Pv 6.16), e sete e oito (Ec 11.2; Mq 5.5). A lista de observações pode conter qualquer número de elementos. O número anunciado não é para ser entendido literalmente, assim como a expres¬ são “duas ou três coisas” (Êx 20.5; 34.7; Jó 33.29; Is 17.6). O indivíduo no exemplo de Coélet não tem um companheiro, nem filho nem irmão. No entanto, ele insiste em trabalhar árdua e infindavelmente, em¬ bora não tenha alguém com quem compartilhar os resultados de seu trabalho. Ele tampouco está satisfeito com o acúmulo de riqueza que vê diante de seus olhos, que também é insaciável (como o “mar”, o “olho” e o “ouvido” em 1.7,8). Então, ele pergunta-se (ou talvez Coélet pergunta a ele): Para quem estou trabalhando? O trabalho extra o está privando da satisfação (lit., do bem). Esse trabalho infindável impede que o acumulador avarento tenha satisfação, desfrute do bem e ande em um caminho melhor. Tal privação desnecessária é vaidade (he¬ bel) no sentido de fútil, sem proveito ou sem sentido. É incompreensível que al¬ guém aja dessa maneira. Um negócio conduzido solitariamente e para o próprio indivíduo é um negócio mau (um trabalho muito ingrato). Mais cedo, Coélet havia reclamado sobre trabalhar arduamente quando ninguém digno herdaria a
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riqueza adquirida (2.18). O versículo 8 leva o argumento para mais longe, já que a riqueza também deveria ser compartilhada durante a vida da pessoa, e não apenas após a morte. Esse versículo é importante para o livro todo, que provavelmente é dire¬ cionado aos jovens empresários dos novos sistemas comerciais das eras persas ou helenísticas. A tentação em tais sistemas é trabalhar de forma incessante para adquirir riquezas excessivas. Isso é uma busca inútil, e Coélet ajuda o seu público a fazer a si mesmo esta pergunta: Por quê? Como o restante do capítu¬ lo argumentará, os relacionamentos significativos são muito mais satisfatórios em longo prazo.
D. Melhor é serem dois do que um (4.9-12) 190 assunto do próximo parágrafo é um caminho melhor. É o companhei¬ rismo que conduz ao trabalho bem-sucedido. Os trabalhadores recebem seu salário ou retorno ( 'sãkãr). Esse é um termo comercial, que fica em contraste com yitrôn, o excesso de lucro que Coélet não consegue encontrar na vida ou como resultado do trabalho (1.3). Coélet não é contra o trabalho árduo nem contra o recebimento de salário. Ele é contra a orientação da vida em torno de si mesmo e do excesso de lucro. Agora, o trabalho será declarado frutífero se for conduzido no contexto do companheirismo c da cooperação, e não do isolamento e da competição. A importância da amizade é vista nos provérbios “ou a amizade ou a morte”, e “um homem sem amigos é como a mão esquerda sem a direita” (Talmude, citado por Ginsburg, 1861, p. 327).
110-12 Um cenário de viagem parece estar subjacente nos versículos 10-12. Viajar sozinho era perigoso em muitas regiões do mundo antigo. Um compa¬ nheiro seria necessário no caso de uma queda no solo acidentado (v. 10). En¬ quanto viajavam, talvez não fosse possível acender um fogo para se aquecerem; então, um companheiro poderia fornecer o calor do corpo (v. 11). E os ladrões consideravam um viajante solitário uma presa fácil (v. 12). Mesmo quando não estavam viajando, o calor do corpo era importante, pois as janelas não tinham vidro, e os casacos serviam como cobertores (Êx 22.26; Ginsburg, 1861, p. 328). Coélet termina esse parágrafo com um provérbio: Um cordão de três dobras não se rompe com facilidade. Um pensamento semelhante é encon¬ trado na epopeia de Gilgamesh (Kovacs, 1989, p. 37). A palavra para cordão (hât) é o material leve que foi usado para contrastar-se com as cordas novas
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que amarraram Sansão (Jz 16.12). Sozinho, um cordão poderia ser facilmente quebrado, mas três cordões trançados juntos são significativamente mais fortes. A expressão numérica pode ser o pano de fundo aqui, já que houve menção de um, depois dois e agora três (veja Por Trás do Texto e o comentário em 4.8). Vencido (tãqap) é outra palavra rara no AT (Jó 14.20; 15.24; Ec 4.12; 6.10). Ela é encontrada no aramaico e no hebraico pós-bíblico (Dn 4.11,20; 5.20; Talmude, Abot 3.8).
Henry Howard sobre a amizade (1546) Assim como o amigo sensível ameniza cada angústia; Então, se aquele que vive só cair, quem será o seu alívio? Os companheiros amáveis estão bem aconchegados em braços cálidos; Quem dorme sozinho em cada esquina realmente sente os embates do inverno: O que pode fazer, senão resignar, aquele que tem de resistir só? Se fossem dois, um poderia defender o que está sendo vencido: As cordas de um só fio podem não aguentar tanta pressão, Como as cordas trançadas de três fios podem, com certeza. (In: Johnson, 1810, p. 356)
E. Melhor é ser pobre, porém sábio (4.13-16) B 13 O último parágrafo desse capítulo é novamente introduzido com uma expressão “melhor do que” (v. 13). A comparação dessa vez é entre um velho rei e seu sucessor. Isso é reminiscente do monólogo de Coélet como rei em 1.12-2.26, no qual a posição do rei Salomão foi examinada, e suas atividades foram consideradas vaidades. Nesse contexto, Salomão não foi descrito como um tolo, mas suas ações, suas prioridades e seu estilo de vida foram certamente questionados. Aqui, em 4.13, o rei idoso é descrito como tolo, já que ele não aceita conselhos. A tradição da sabedoria considerava a idade avançada uma grande honra (Jó 12.12; 15.10), mas, aqui, o retrato de um rei idoso é negativo. Um rei velho e tolo seria substituído por um rei que era novo (inexperiente), porém sábio. Roboão, o sucessor de Salomão, embora fosse jovem, era tolo e não ouviu os conselhos sábios dos anciãos que foram conselheiros de Salomão (1 Rs 12.1-15).
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Essa é uma das poucas unidades em Eclesiastes que sugerem eventos histó¬ ricos específicos, e isso tem levado a diversas sugestões sobre qual cenário his¬ tórico se pode ter em mente. Os eruditos têm sugerido uma gama de períodos de tempo, incluindo acontecimentos na história de Israel e acontecimentos da era persa (veja Por Trás do Texto). O jovem que substituirá o rei é pobre (miskên), o que é mais uma desig¬ nação de posição social do que uma medida de riqueza. Ele é um plebeu, e não alguém da linhagem real. A palavra jovem (yeleã) é geralmente reservada para criancinhas. Às vezes, ela tem um significado mais amplo, todavia, assim como os jovens conselheiros de Roboão foram descritos com essa palavra, e ele tinha 40 anos de idade (1 Rs 12.8; 14.21). A palavra pode ter sido escolhida aqui para enfatizar a juventude e a inexperiência, embora, na história de Israel, alguns reis fossem realmente muito novos (Josias, com oito anos, 2 Rs 22.1; Joás, com sete anos, 2 Rs 11.21). Valorizar um jovem pobre acima de um rei idoso era contrário aos valores antigos, já que a idade era considerada necessária para obter-se sabedoria, e a sabedoria dos anciãos deveria ser respeitada (diferente das sociedades tec¬ nológicas modernas, nas quais os anciãos frequentemente têm dificuldades de adaptar-se a uma mudança rápida). Além disso, a sabedoria e a riqueza anda¬ vam juntas na doutrina da retribuição, de modo que esse cenário acrescentava ao desafio de Coélet essa doutrina extremamente simplificada. I 14 No versículo 14, o jovem sucessor do trono pode ter vindo da prisão. Esse foi o caso de José, que representa uma das conjunturas históricas sugeridas para esse cenário. A prisão não era uma penitenciária para reformar criminosos (que eram tratados com multas e castigos corporais), mas, ao contrário, uma cadeia para prisioneiros políticos ou devedores. Essa é a função das prisões na história de José e em Jeremias (Gn 39.20; Jr 37.15). O novo rei não é um crimi¬ noso, mas uma pessoa de baixa posição social. Algumas traduções sugerem que o jovem sucessor seja o sujeito de ambas as partes do versículo 14 (a NVI também). Ele pode ter vindo da prisão ou ter nascido na pobreza. É possível que o rei idoso seja o foco do versículo 14b. Ele perdeu o seu reino e caiu na pobreza. Kriiger sugere que ki gam (ou pode ter) deve ser entendido como uma introdução a um novo assunto, sugerindo que a pobreza continuasse sob a nova liderança; “os pobres continuarão nascendo sob o reinado dele” (2004, p. 104). ■ 15 O versículo 15 refere-se às multidões que seguiam o jovem, possivel¬ mente o sucessor do rei. O hebraico literalmente diz: O menino, o segundo
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que está abaixo dele. Este pode ser outro jovem (o segundo), que já substituiu o jovem sábio, que substituiu o rei tolo. As multidões agora o seguem, mas isso também não durará. Essa menção de um segundo, embora um tanto confusa, liga 4.13-16 a 4.9-12, nos quais as palavras “segundo” ou “dois” são subenten¬ didas cinco vezes. 116 No versículo 16, a multidão está logo satisfeita novamente e pronta para apoiar o novo rei. É melhor ter um rei inexperiente que seja sábio do que um rei idoso que seja tolo. Contudo, isso é vaidade (hebel, fútil, sem proveito, incom¬ preensível), e poderia ser melhor ainda ter um rei sábio que fosse também expe¬ riente e tivesse o contínuo apoio da multidão. Entretanto, Coélet não diz isso, porque o mundo não funciona assim. Em vez disso, a vida é incompreensível. A falta de clareza nos versículos 13-16 torna difícil ver a ligação com correr atrás do vendo, que, geralmente, significa a natureza fútil ou inatingível de algo. A PARTIR DO TEXTO
Vaidade (hebel) Esta unidade ressalta a futilidade da cobiça como a motivação do trabalho (v. 4) e também o acúmulo de riquezas sem compartilhá-lo (v. 7,8). Uma falta de satisfação é a raiz de ambos os problemas. Além disso, há algo incompreen¬ sível sobre a falta de satisfação das pessoas com o sucessor do rei nos versículos
13-16. Desfrute
a vida
Toda a discussão do capítulo 4 sobre o que é melhor é temperada pela observação em 3.22 (veja também 5.18) de que “não há nada melhor”. Isso é típico do estilo de Coélet, que frequentemente o vê acusado de contradições. Algumas das expressões “melhor do que” realmente parecem sarcásticas, algu¬ mas parecem sérias, mas isso reflete contradições e enigmas da vida. A injustiça e a opressão no mundo podem conduzir ao desespero, mas elas devem levar ao contentamento da porção de cada um, não à complacência quanto ao sofri¬ mento dos outros. Embora não haja nada melhor do que desfrutar daquilo que Deus tem dado (3.22; 5.18), existem também algumas coisas na vida que são melhores do que outras, tais como o companheirismo, que deve ser mantido quando estiver disponível (4.9-12).
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No romance Moby-Dick, de 1851, Herman Melville retrata o personagem principal, Ahab, como quem está perdendo o prazer pelas coisas simples da vida. Em um ato simbólico, ele lança seu cachimbo ao mar, o que não rende protesto algum, além de algumas bolhas, como os rios em Eclesiastes 1.7, que não fazem a menor diferença para o oceano. A breve passagem (cap. 30) usa um vocabulário alusivo a Eclesiastes, como “vapor”, “sopro”, “fumegante”, “tra¬ balho sem prazer”, “fumaça ao vento”, “seguindo o vento”, “baforada”, “morrer”, “negócios”, “vapores”, “fumaça” e “bolha”, e, nesse momento, Ahab começa pas¬ sear pela prancha (sem chegar a lugar algum). A razão para a falta de prazer dele é a sua obsessão em capturar a baleia branca Moby Dick, um objetivo elusivo que resulta em correr atrás do vento. No início do livro, Melville enumera a etimologia de diversas palavras, incluindo “baleia”, que se diz ter originado da palavra dinamarquesa hval, uma palavra que tem uma incrível semelhança com a palavra hebraica “vaidade” (hebel).
0 relacionamento e a sabedoria O movimento do capítulo 4 é opressão, cobiça, companheirismo e sabe¬ doria. Muita opressão vem do desejo do opressor de acumular mais, o que pode estar motivado na cobiça de outros. É o companheirismo que consegue ali¬ viar a dor da opressão, já que o amigo de alguém pode ajudá-lo a levantar-se (4.10). A sabedoria ajudará a reconhecer isso e poderá até guiar alguém que está empobrecido, no cárcere dos devedores, e elevá-lo à posição de rei.
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VI. QUE AS SUAS PALAVRAS SEJAM POUCAS (5.1-9) POR TRÁS DO TEXTO
Eclesiastes 5.1-9 concentra-se no temor a Deus e no mistério da retribui¬ ção; dois tópicos que não são compartilhados pelas unidades precedente e an¬ tecedente. O clima imperativo também separa esta unidade de seu contexto. A maioria daquilo que precede tem sido reflexões filosóficas sobre a vida, e não instruções. Houve alguns indícios de sugestão, especialmente com as expres¬ sões “melhor do que”. Contudo, aqui e em 9.7-10 e 11.9 12.8, o conselho é mais direto e assemelha-se às instruções do livro de Provérbios. Os versículos 8 e 9 continuam o clima imperativo ( al mais imperfeito), mas introduz o novo tópico da opressão (que também foi tratado em 4.1). Os versículos 4 e 5 dão conselho sobre votos que são regulados, mas não obrigatórios na lei do AT. Os votos de nazireu eram um tipo especial de voto que requeria a abstenção do vinho. Estes podiam ser temporários ou vitalícios (como no caso de Samuel e Sansão, cujos pais os consagraram desse modo; Nm 6.1-21). Outros votos eram entendidos como um tipo de barganha com Deus
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quando as circunstâncias requeriam a Sua intervenção. Mediante o livramento, a ação pela qual o voto foi feito seria realizada, geralmente um tipo de paga¬ mento, mas, às vezes, outro tipo de dádiva (ex.: Ana prometeu dar o seu filho, 1 Sm 1.11; Elwell e Comfort, 2001, p. 1287). O gênero desta unidade é a instrução e inclui uma pergunta retórica e uma citação hipotética (v. 6). Esta unidade dá o primeiro conselho do livro. Os ver¬ sículos 1-9 podem ser esboçados como segue: A conduta diante de Deus (5.1-7) A opressão e a justiça (5.8,9) NO TEXTO
A. A conduta diante de Deus (5.1-7) IlO versículo 1 começa com um conselho sobre a conduta no templo. Seja reverente poderia ser traduzido como cuidado com os seus passos ou, mais li¬ teralmente, cuidado com os seus pés (raglêkã). Os passos devem ser observados quando o adorador vai à casa de Deus, ao templo. Na literatura da sabedoria, a vida reta é frequentemente caracterizada como um modo de caminhar, logo, tem-se em mente a obediência aqui (ex.: Sl 1.6; Pv 1.15). O leitor é encorajado desta forma: Quem se aproxima (de Deus) para ouvir é melhor do que os tolos que oferecem sacrifício. Aproximar (infini¬ tivo) pode ser traduzido como imperativo (“inclina-te” [ARC]), com base na segunda expressão do versículo (seja reverente), e o verbo no singular pode ser subentendido como um coletivo, tendo tolos como o sujeito (“sacrifícios [que] os tolos oferecem”). O que parece estar faltando é o “melhor do que”, que é for¬ necido na antiga tradução siríaca e apresenta uma melhor leitura: “Aproximar-se para ouvir é melhor do que oferecer sacrifícios que os tolos fazem” (veja GKC §\2>2>e). Mesmo assim, é incomum sacrificar uma oferta. De maneira fre¬ quente, a oferta (ex.: grãos) é entregue, e um sacrifício (geralmente um animal) é sacrificado (lit., abatido como sacrifício). O comportamento tolo contrasta com o ouvir e é explicado na parte se¬ guinte do versículo. Os tolos são tão vagarosos para ouvir que eles não sabem o que fazem de errado. Quando Saul desobedeceu a Deus depois da batalha contra os amalequitas, Samuel enfatizou a prioridade da obediência e do ouvir acima do sacrificar (1 Sm 15.22). Saul alegou que ele tomou despojos, a fim de sacrificar, embora Samuel houvesse entregado uma ordem para destruírem
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todos os despojos. Amós e Miqueias também pregaram a prioridade da obe¬ diência sobre o sacrifício (Am 5.21,22; Mq 6.7,8; veja também Pv 15.8; 21.3; 21.27; Jr 6.20). O hebraico da frase final no versículo 1 é difícil; ele literalmente diz: Pois eles não sabem fazer o mal {ki- ênãmyôd im la 'ãsôt rã '). Isso parece dizer que os tolos não fazem o mal porque não sabem como, o que não faz sentido, dada a conexão normal entre a tolice e a impiedade. BHS sugere acrescentar “se¬ não”, o que fornece esta leitura: “Os tolos não sabem fazer nada, senão o mal” {mila 'ãsôt\ a mesma tradução resulta do acréscimo de ki 'im, como se encon¬ tra em 3.12; 8.15). Isso parece um pouco extremo, e as traduções modernas concordam em acrescentar “que” (que estão agindo mal). Ginsburg traduziu assim: “Pois, aqueles que obedecem não sabem fazer o mal” (1861, p. 336). 120 versículo 2 continua com instruções para se ter cuidado com a fala, su¬ gerindo que os tolos não fazem assim. A sabedoria de para-choques diria assim: “Use o cérebro antes de acelerar a boca”. A palavra bãhal (seja precipitado) pode significar “fique incomodado” ou “apresse-se”. Essa é uma das muitas pala¬ vras raras em Eclesiastes, e o seu uso aqui é encontrado nos textos mais recentes (Et 2.9). O professor da sabedoria egípcia, Ani, tinha um conselho semelhante: “Não levante a sua voz na casa de deus, ele detesta gritaria” (Lichtheim, 2006, p. 137). A lógica dessa instrução é a distância entre Deus, que está no céu, e o povo, que está na terra. Essa ideia é parte do conceito do “temor de Deus”, que está incluso na instrução de encerramento desta unidade (v. 7). A distância entre Deus e a humanidade é uma expressão da soberania divina, que é um tema im¬ portante no livro. Por exemplo, o capítulo 3 argumentou sobre o controle de Deus acerca da hora dos acontecimentos da vida. Uma reflexão adequada sobre a soberania de Deus resultará em se falar menos com Deus (veja Mt 6.7). Jó era bem aberto com Deus acerca de suas frustrações, mas, quando Deus respondeu com uma declaração de Sua soberania, Ele facilmente colocou Jó em seu devi¬ do lugar, o que fez Jó refletir: “Certo é que falei de coisas que eu não entendia, coisas tão maravilhosas que eu não poderia saber” (Jó 42.3). O Salmo 115.3 também enfatiza a soberania de Deus (em vez de somente a distância), onde a morada de Deus no céu está ligada à Sua capacidade de fazer “tudo o que lhe apraz”. Hl 3 O muito falar do tolo é a alternativa para se dizer poucas palavras (v. 3). A frase das muitas ocupações brotam sonhos parece ser uma maneira diferente de dizer que negócios demais não resultam em nada. Um sonho não resulta
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em nada e, então, é similar à palavra-chave “vaidade” ( hebel). Os sonhos e as vaidades estão conectados no versículo 7. Muitas ocupaçãos são, literalmente, muitos negócios (bérõb 'inyãn), mencionando uma palavra-chave que é usada em 1.13 e oito vezes em Eclesiastes. Da mesma forma, a multidão de palavras resulta na prosa vã do tolo. Esse versículo é um provérbio, que poderia ser uma citação de uma tradição mais antiga. 140 versículo 4 continua o foco do discurso, desta vez, em relação aos votos feitos a Deus. O leitor é encorajado a cumprir o voto rapidamente. Somente os tolos se atrasariam. Os tolos desagradam a Deus é, literalmente, não há pra¬ zer nos tolos; essa frase sugere, de forma indireta, Deus como o sujeito da ação (circunlocução). Isso é típico na literatura da sabedoria, que evita o discurso direto sobre a ação de Deus no mundo. Ginsburg pensava que os tolos fossem o sujeito; isto é, os tolos não tinham prazer (logo, ele traduziu: “os tolos não têm uma vontade fixa”) (1861, p. 338,339). Deuteronômio 23.21-23 também adverte contra a demora no cumprimento do voto, com algumas diferenças de linguagem (veja também Pv 20.25; Sir. 18.22). A versão de Deuteronômio é mais específica sobre a ação de Deus, enquanto Eclesiastes é mais generalizado. Deuteronômio 23.21 adverte contra o pecado do atraso em cumprir um voto. Entretanto, o versículo 22 deixa claro que se abster de fazer votos não é um ato pecaminoso, enquanto o versículo 23 enfatiza a importância de cumprir as promessas a Deus, uma vez que essas foram feitas. 15 0 versículo 5 desencoraja o ato de fazer votos se os mesmos não forem cumpridos. A insinuação é que aqueles que fazem votos têm a obrigação de cumpri-los. Uma vez que um voto é feito, ele não pode ser anulado. A precau¬ ção aqui é, mais uma vez, sobre as palavras excessivas ou inúteis. Jefté aparente¬ mente cumpriu o seu voto de matar a sua filha (Jz 11.39), mas a comunidade não deixou que Saul cumprisse o seu voto de matar Jônatas (1 Sm 14.45). Nú¬ meros 30 começa com uma proibição contra a quebra do voto feito por um homem, mas depois se concentra na lei concernente à ratificação do voto feito pelas mulheres. A lei facultava ao pai ou ao marido o direito de anular tal voto
em certas circunstâncias. ■ 6 Fazer um voto e falhar em cumpri-lo é pecado segundo Coélet (não per¬ mita que a sua boca o faça pecar). Se a palavra mensageiro (maVãk ), usada no texto hebraico, estivesse correta, ela implicaria que alguém do “templo” (uma palavra fornecida pela NVI) viria e examinaria (demandaria?) o cum¬ primento do voto, que deveria ter sido registrado no templo. Não existe outra evidência para essa prática, e as versões antigas (gregas e aramaicas) têm as
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desculpas feitas a Deus. Ginsburg traduziu mensageiro como “anjo”, citando a preposição “diante” (lipnê), que ele entendia como apropriada na presença de Deus ou dos anjos, enquanto alguém falava “com” ( et) um companheiro humano (veja Dt 26.3,5) (1861, p. 340, 343). Coélet também adverte contra reivindicar que o voto feito tenha sido um engano (ségãgâ); essa palavra é usa¬ da em outro lugar para designar um pecado não intencional (veja Nm 15.22). De qualquer forma, um erro requeria o sacrifício de um novilho em Números 15.22-31 eLevítico 4.2-35. 17 A frase em meio a tantos sonhos, absurdos e conversas inúteis, no ver¬ sículo 7, é uma construção difícil no hebraico (lit.,pois, em muitos sonhos e vai¬ dades e aumento de palavras). Delitzsch sugeriu que o texto tenha sido copiado incorretamente e deva ser reorganizado para que se leia: “Pois, em muitos so¬ nhos e em muitas palavras, há também vaidades” (1875, p. 291). Esse versículo pode conter um artifício literário chamado hendíadis, no qual dois substanti¬ vos são ligados pela conjunção “e” para transmitir uma ideia complexa. Logo, a frase muitos sonhos e vaidades transmite a ideia de “sonhos vazios” (Seow, 1997, p. 200) ou de “palavras inúteis” (Longman, 1997, p. 156). O significado de hebel aqui é provavelmente “fútil, sem proveito”. O próximo conselho desta unidade é o fundamento padrão da literatura da sabedoria: temer a Deus (tenha temor de Deus, mencionado 17 vezes em Provérbios; veja A Partir do Texto e 3.14; 7.18).
B. A opressão e a justiça (5.8,9) 18 Os versículos 8 e 9 são ligeiramente uma divergência do tópico do presen¬ te parágrafo (conselho sobre a aproximação do santuário e sobre fazer votos) e também do parágrafo seguinte (um quiasmo focado no contentamento). O tópico agora é a opressão numa província, o que realmente tem alguma rela¬ ção com o presente parágrafo por causa da hierarquia envolvida em se encon¬ trar tanto com Deus como com o rei. Pode também haver uma relação com o parágrafo seguinte no sentido de que a opressão é resultado da avareza, e, daí, a falta de contentamento. Coélet começa com a advertência de que não se deve ficar surpreso em ver a opressão e a negação da justiça e dos direitos numa província (v. 8). A segunda parte do versículo 8 indica que o sistema hierárquico está corrompi¬ do em todos os níveis, tornando infrutífera qualquer tentativa de melhorar a
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pobres (o que pode explicar por que Coélet não encorajou uma ação em favor dos oprimidos no capítulo 4). Em todos os níveis da administração, existem aqueles que atentam para os que estão abaixo deles. O verbo atentar (NVI, ver, sõmêr) pode ter uma variedade de conotações, incluindo os guardas que patrulham a cidade à noite (Ct 3.3; 5.7), o Deus que atenta para Israel, e aqueles que atentam para a vítima com intenções hostis (SI 56.6). A Palestina, no período pós-exílico, era estritamente controlada por potências estrangei¬ ras, diferente das monarquias tranquilas que, até certo ponto, toleravam a voz profética e até permitiam que alguns profetas se dirigissem ao próprio rei (veja Jr 26.16-19). Ginsburg entendeu diferentemente o total sentido desse versícu¬ lo (1861, p. 345). Ele traduziu não fique surpreso (titmah) como não fique “alarmado” (vejaSl 48.5;Jr 4.9; Jó 26.11) e pensava que Coélet expressasse uma visão de que a opressão não era causa para alarme ou temor, porque a injustiça era limitada pela supervisão suprema de Deus. É difícil escolher entre as duas interpretações por causa da ambiguidade do vocabulário e porque Coélet, em outro lugar, apresenta ambos os pontos de vista: a ideia total da retribuição é completamente simplificada, contudo, Deus finalmente levará os malfeitores à justiça. 190 sentido do versículo 9 é difícil de entender. Pode ter havido um erro do escriba na transmissão do texto. A primeira parte do versículo continua o tema do lucro (vantagem, yitrôn), que é importante no livro (5.1 1,16; 6.1 1). O que não está claro é sobre o que o lucro da terra se refere (interesse pela agricul¬ tura). Existe um pronome feminino inesperado que os escribas massoréticos marcaram como masculino. O versículo é literalmente: E lucre [da] terra em tudo o que ela/ele [dá], um rei por um campo cultivado. A palavra ne èbãd (interesse) poderia modificar rei ou agricultura, já que o verbo é usado para significar “cultivou” em vários contextos (Dt 21.4; Ez 36.9,34). Logo, o rei pertence ao (ou está compromissado com o; le) campo cultivado. Ne 'èbãd também pode significar “serviu” o que daria o sentido de o rei ser servido pela agricultura (se interesse pela agricultura). Ou o rei está envolvido na hierarquia da corrupção e está ganhando o lucro dos campos pro¬ dutivos, ou a terra como um todo depende dos campos produtivos e prospera¬ rá, portanto, se o rei reconhecer isso e encorajar a produção (veja Buhlmann, 2000, p. 108). A primeira opinião parece encaixar-se melhor na opressão ob¬ servada em 5.8, mas requer uma interpretação incomum da preposição le (“ad¬ vindo de” ou “pelo”, onde geralmente seria “para, pertencente a”). sorte dos
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A PARTIR DO TEXTO
O temor de Deus O principal tema da soberania de Deus é desenvolvido um pouco mais em 5.1-9, com a aplicação de demonstrar respeito a Deus no santuário. A declara¬ ção conclusiva “teme a Deus” (5.7 ARC) é a expressão padrão da literatura da sabedoria sobre o correto relacionamento com Deus.
Palavras vazias A advertência de Coélet contra as palavras excessivas e a prática da reli¬ gião inútil conclama-nos a refletir sobre os nossos modos contemporâneos de adoração, onde falar com Deus em vez de ouvi-lo tem assumido uma função
dominante. Que as minhas palavras sejam poucas Tu és Deus no céu E aqui estou eu na terra, Então, deixarei que minhas palavras sejam poucas Jesus, estou te amando tanto!
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(Matt Redman e Beth Redman, 2000)
0 mistério da retribuição Se a doutrina da retribuição estivesse funcionando como o esperado, não haveria opressão, porque os opressores seriam punidos por Deus. A observação da opressão mostra que a doutrina precisa ser matizada e que os seres humanos comuns têm pouco controle sobre os resultados. Em outro lugar, esse controle era atribuído a Deus (ex.: Ec 3), mas, aqui, parece que está ligado à hierarquia humana, culminando com o rei.
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VII. AS LIMITAÇÕES DA RIQUEZA (5.10-6.9) POR TRÁS DO TEXTO
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Eclesiastes 5.10 6.9 segue o conselho das unidades anteriores de guardar-se os pés diante de Deus. Temas de unidades prévias são revisitados (contenta¬ mento, riqueza, alegria, vaidade). A próxima unidade (6.10 7.14) se concen¬ tra na sabedoria em vez da riqueza; estas duas unidades, então, complementam os temas da autobiografia real (cspecialmente 2.1-16). A introdução das moedas na economia das eras persa c helenística trans¬ formou o dinheiro numa comodidade que podia ser acumulada e investida. Eclesiastes não menciona as moedas especificamente, mas os extensos inte¬ resses económicos do livro sugerem o período da cunhagem. A melhoria dos navios e do comércio ao mesmo tempo significava que a riqueza poderia ser aumentada rapidamente e também perdida com facilidade. Coélet adverte contra os perigos de orientar-se a vida em torno desses novos valores. O gênero de 5.10 6.9 é a reflexão. Esta unidade forma um quiasmo que tem o clímax em 5- 18-20. 0 pensamento principal é o prazer e o contentamento
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com o trabalho e a riqueza que alguém possui, já que estes são dádivas de Deus. Eles são, aliás, o método de Deus para trazer a alegria ao coração do indivíduo. Esta unidade conclui a primeira metade do livro, ou 111 versículos de um total de 222 versículos. A. G. Wright observou que a palavra-chave hebel (não faz sentido, 6.9) tem o valor numérico de 37 (1980, p. 44). Essa palavra ocorre 37 vezes no livro, igual ao seu valor numérico (presumindo que a segunda ocorrência de bebei em 9.9 seja um erro). Eclesiastes 5.10 6.9 pode ser esboçado como segue: A. Não há satisfação (5.10-12) B. Um grave mal (5.13-17) C. Contentamento (5.18-20)
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B’. Mal (6.1-6) A’. Não há satisfação (6.7-9) Essa análise difere da de Seow, que vê as fronteiras do quiasmo como 5.8 6.9 e o clímax como 5.20 (1997, p. 217). Seow também faz do contentamen¬ to o foco desta unidade (“Desfrute o Momento”), mas exclui do clímax dois versículos importantes sobre esse tópico (18,19). A satisfação com a porção que Deus deu é o foco de 5.18-20, e também o foco dessa passagem, e do livro como um todo. Logo, 5.18-20 deve ser visto como o clímax desse quiasmo.
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NO TEXTO
A. Não há satisfação (5.10-12) B 10 O versículo 10 trata da falta de satisfação que o dinheiro e a riqueza tra¬ zem. O uso peculiar da preposição bé ('õhêb behãmôn, de modo literal, qual¬ quer que ame a riqueza ) é provavelmente um erro do escriba, onde a última letra da palavra anterior é repetida por engano (ditografia, também na BHS). Outra dificuldade é a falta de verbo na frase lõ'têbú ’â (literalmentc, nenhum ganho ou nenhuma produção ou nenhum aumento). Uma opção é presumir que o verbo “ter”, no início do versículo (o que amar o dinheiro nunca se fartará de dinheiro; NVI: quem ama o dinheiro jamais terá o suficiente), aplica-se a essa sentença também (quem ama as riquezas jamais ficará satisfeito). Crenshaw sugere uma elipse irónica e acrescenta “consegue” à sua tradução: “Quem ama a riqueza não consegue ganho algum” (1987, p. 119-121). Isso traz o mesmo sentido que o Targum, que acrescentou as vogais para “a riqueza não virá [a
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ele] Essas interpretações sugerem uma falta de riqueza, em vez de uma falta de satisfação na riqueza. A última é, verdadeiramente, o foco desse versículo. O versículo 10 afirma o tema da passagem na negativa: o dinheiro e a ri¬ queza não trazem satisfação duradoura (o positivo é declarado no clímax do quiasmo nos versículos 18-20). Isso é bebei (não faz sentido) na medida em que é incompreensível. Isso é um mistério, um dos paradoxos da vida; acredita-se que o dinheiro seja a solução dos problemas da vida, mas não é. Mais di¬ nheiro ou até mesmo um grande número (redimentos, hãmôn) de dinheiro não traz satisfação, mas, ao contrário, traz o desejo de adquirir mais. Esse tema já foi discutido em 1.8 (os olhos não se satisfazem apenas em ver) e 4.8 (os olhos não ficam satisfeitos em ver as riquezas, 'õser). O vocabulário do versí¬ culo cobre a riqueza na forma de dinheiro (kesep), posses {hãmôn) e produtos da terra {tébu ’a). Todos os três serão resumidos pela palavra bens (tôbâ) no próximo versículo.
Juvenal sobre a satisfação Aliás, enquanto
correm assim as águas da abundância,
Elas nutrem a hidropsia da alma, Pois a sede de riqueza ainda cresce com a riqueza aumentada, E aqueles que menos têm, menos a desejam. [Satires 14.138-140, in: Ginsburg, 1861, p. 348)
■11 Assim como o fluxo contínuo das águas do rio em 1.7, o excesso de pro¬ dução nunca realmente acarreta em excesso das receitas sobre as despesas, por¬ que quando aumentam os bens, também aumentam os que os consomem. Coélet pode estar falando do crescimento da população que tende a acompa¬ nhar a prosperidade, ou o aumento da demanda de bens pelos consumidores, ou o aumento do número de empregados para manter a riqueza de alguém. Quando um homem rico não consegue consumir pessoalmente toda a sua ri¬ queza ou as suas posses, seu único benefício é contemplá-los com os seus olhos, antes que aquilo seja consumido por outros. No entanto, isso também não le¬ vará ao contentamento, já que os olhos nunca ficarão satisfeitos (1.8; 4.8).
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Ensinos de Ptah-Hotep, ca. 2500 a.C. o seu coração enquanto viver, Não faça nada mais do que o requerido, Não diminua o tempo de "seguir o coração", Encurtar os seus momentos é ofender ao ka. Não perca tempo com os cuidados diários Além de prover para a sua casa; Quando a riqueza chegar, siga o seu coração, A riqueza não faz bem algum se você está mal-humorado!
Siga
(In: Lichtheim, 1975, p. 66)
■ 12 No versículo 12, Coélet retorna ao tema já declarado em 2.23, a saber, inquietações à noite experimentadas por quem está envolvido em trabalho di¬ fícil. O foco aqui é a falta de sono daqueles que nunca estão satisfeitos com a sua riqueza. O sono do trabalhador é ameno, quer coma pouco quer coma muito, mas a fartura de um homem rico não lhe dá tranquilidade para dor¬ mir. Os trabalhadores dormem bem porque não têm riquezas com as quais preocupar-se em ajuntar e proteger dos outros. Em seu estado de cansaço, eles dormem bem, quer seu estômago esteja cheio, quer esteja vazio. Por outro lado, os ricos se preocupam se o ladrão arrombará algo ou se algum infortúnio os fará perder sua riqueza acumulada; essa ansiedade os leva a ter noites mal dor¬ midas (veja Pv 25.16; Sir. 31.1-4). Comer demais e indigestão também contri¬ buem para a falta de sono do rico. Henry Howard sobre o sono (1546) Calmo e docemente dorme o corpo cansado e afligido,
Ilude a noite com escassa dieta, não com excessivos banquetes:
Mas permanece acordado o rico, cuja vida ferve com o repouso Seu corpo cheio de iguarias diversas que não consegue tão
cedo digerir. (In: Johnson, 1810,
140
p. 356)
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B. Um grave mal (5.13-17) 113 Coélet explora a questão da riqueza um pouco mais nos versículos 13-17 (esses versículos ecoam 2.18-23). Acumular riquezas não só é um mistério (hebei, v. 10), mas também um mal terrível, no sentido de que a riqueza não tem efeitos duradouros. A riqueza não oferece proteção ao seu dono, mas somente danos. Ahiqar escreveu: “Ajuntar riquezas corrompe o coração” (Matthews e Benjamin, 2006, p. 308). M 14 Para piorar as coisas, a riqueza pode perder-se num mal negócio (v. 14). O hebraico para mal negócio é literalmente infortúnio ( inyãn rã'). O termo “negócio” é uma palavra-chave em Eclesiastes (veja comentário em 1.13). A perda da riqueza pelo mal negócio levará a outros males, porque nada ficará para o dono da riqueza repassar para seu filho (v. 14). Em outra ocasião, Coélet é pessimista sobre o valor ou sobre a possibilidade de deixar-se um lega¬ do de riqueza para a próxima geração (2.18,21). Na antiga economia agrícola, um filho seria uma bênção, porque haveria alguém para trabalhar nos campos e expandir a riqueza da família. Entretanto, no período persa, onde a terra era consignada pelo rei, não havia a garantia de estabelecer-se uma propriedade hereditária. 1 15-16 Os versículos 15 e 16 lamentam a incapacidade de manter-se qual¬ quer coisa após a morte. A inabilidade de reter possessões materiais após a mor¬ te já não é mais especificamente quanto à herança, mas quanto ao fato dc que a riqueza não é permanente. Assim como Jó observou, todos estavam literalmen¬ te nus quando nasceram e metaforicamente nus ao morrerem (Jó 1.21; veja também SI 139.15; Sir. 40.1). A obra do “trabalhador” ( õbéd), no versículo 12, foi positiva, porque levou a um sono satisfatório. Contudo, Coélet retorna no versículo 1 5 à natureza negativa do trabalho como “fadiga” (trabalho, ãmãl), porque ele não resulta em acúmulo duradouro. Coélet novamente lamenta a falta de permanência da riqueza como um mal terrível (v. 16). O “mal terrível”, no versículo 13, era a desvantagem ines¬ perada da riqueza; no versículo 16, é a situação de que as possessões não podem ser retidas após a morte. Nada obtém com nesse trabalho, como na expressão: “Isto você não pode levar consigo”. Trabalho e lucro são conceitos-chaves em Eclesiastes e devem estar relacionados; entretanto, Coélet não os conecta, por¬ que o lucro que os seres humanos esperam é a satisfação material, e o trabalho está orientado em torno desse objetivo inatingível. O pronunciamento normal de Coélet sobre tais buscas é “correr atrás do vento” (ex.: 2.11), mas, aqui, ele
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varia a frase para: Todo o seu esforço em busca do vento 26.18; Jó 16.3).
(veja Pv 1 1.29; Is
H 17 O dono da riqueza passa toda a sua vida nas trevas. A leitura literal da segunda linha é: E ele fica tremendamente frustrado, com sua enfermidade e ira {com grandefrustração, doença e amargura, wêkã 'as harbêh wéhãlêyô wãqãsep). A leitura da NVI é baseada na mudança da vogal de frustrado {kã 'as) em he¬ braico para formar um substantivo. Uma orientação em torno do trabalho para a acumulação de material é trabalhar para o vento, que não leva à satisfação e ao contentamento, mas a uma grande frustração, doença e amargura. Essa pessoa passa toda a sua vida nas trevas, porque esgotou todas as horas do dia esforçando-se em busca da satisfação do acúmulo de riqueza, que não traz satisfação duradoura. Isso é uma amostra do destino de todos: a terra das trevas (Sheol), onde o trabalhador não está mais “debaixo do sol”. É o “tolo” que anda em “trevas” (2.14; veja também 6.4).
C. Contentamento (5.18-20) I 18 O versículo 18 afirma
um tema importante do livro: o melhor e o
que vale a pena é encontrar satisfação naquilo que temos. A palavra melhor ( yãpeh ) é a mesma palavra que “apropriado” no versículo 3.11, onde é dito que Deus “fez tudo apropriado a seu tempo”. Em 5.18, é Coélet que observa o que é melhor na vida, porém, depois, no versículo, é Deus quem deu a vida e, no ver¬ sículo seguinte, Ele também deu a sua recompensa e a capacidade para desfrutá-la. A soberania de Deus, na sincronia do versículo 3, é também evidenciada em Sua dádiva no capítulo 5. O clímax do quiasmo nos versículos 18-20, então, argumenta que a satis¬ fação duradoura não se encontra na busca por mais, mas no contentamento com o que temos. Coélet usa o pronome enfático para contrastar sua visão com os que estão à sua volta (embora ele geralmente acrescente o pronome sem nenhuma razão aparente). Outros podem se esforçar para obter lucro, mas ele descobriu que o melhor e o que vale a pena é estar contente com a recompen¬ sa que Deus deu. O lote ou a recomepnsa que alguém tem é a dádiva de Deus, em contraste com o lucro ou o proveito com que se esforça para alcançar na economia comercial (veja o comentário em 2.10). Quer seja pouco ou muito (v. 12), aquilo que alguém tem é um dom de Deus, e até a própria vida, embora curta, é um dom de Deus.
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versículo 19 enfatiza as riquezas como uma dádiva de Deus. A pa¬ lavra riquezas (nékãsim) é aramaica, conhecida a partir do quinto século a.C. nos textos aramaicos egípcios, e reflete o interesse comercial de Eclesiastes, bem como sugere uma data pós-exílica (essa palavra não era conhecida antes do quinto século; Seow, 1997, p. 13; também usada em 6.2; Js 22.8; 2 Cr 1.11,12). É verdadeiramente um presente de Deus poder gozar a vida e ser feliz no trabalho (v. 19). O segredo dessa felicidade é o contentamento com aquilo que Deus tem dado (porção), aceitando isso como um presente de Deus e não tentando acumular excessos (lucro). Isso correlata com a visão de Coélet sobre a soberania divina. Os homens tentam controlar seu destino pelo trabalho e pelo investimento, mas a alegria está sob o controle divino, e não humano. Crenshaw pensa que algumas pessoas são avarentas por natureza e, logo, não desfrutam da riqueza (1987, p. 125). Coélet parece recomendar a genero¬ sidade em 11.1,2. No entanto, no contexto da busca, a qual Coélet condena, a principal razão para a falha em desfrutar a riqueza é a avareza. São aqueles que estão sempre se esforçando para obter um lucro maior que não conseguem desfrutar da porção que Deus deu. H 20 A falta de lembrança era negativa e também outra evidência da futili¬ dade do trabalho humano em 1.11. Em 5.20, é aquele que trabalha que não se lembrará muito do fato de que sua vida é curta. A razão dada para isso é a ocupação que Deus dá com a alegria do coração. Logo, a falta de memória ou de reflexão é positiva nesse contexto. Para o jovem cínico que está desiludido com o vazio do sistema comercial e seus valores, Coélet tem dado uma mensa¬ gem de esperança. O trabalho foi descrito anteriormente como um mau negócio com o qual o homem se ocupa (4.8). Agora, o mesmo radical é usado para a ocupação que Deus dá (ma 'ãneh). O negócio é mal quando é motivado pela avareza, mas mantém a alegria do coração quando é aceito como uma dádiva de Deus. Isso parece uma analogia à concessão real dos reis persas (veja 2.10), e, aliás, muito do vocabulário de 5.18-20 ecoa a linguagem da concessão real (Seow, 1997, p. 24).
■ 19 O
B'. Mal (6.1-6)
■1Em 6.1-6, a estrutura do quiasmo se distancia do ponto central para reite¬ rar o mal que Coélet tem visto debaixo do sol. A frase há um mal ( yês rã a) liga 6.1 com 5.13. Em 5.13-17, o grave mal era o prejuízo e a perda da riqueza. Em
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6.1-6, o mal é a posse da riqueza sem o poder de desfrutar dela. Coélet enxerga isso como um pesado fardo sobre os seres humanos. H 2 Coélet começa com a afirmação de que Deus é aquele que dá riqueza, bens e honra; porém, ele considera ruim que Deus não o permita desfrutar de tais coisas (v. 2; veja também 2 Cr 1.11, onde Salomão é descrito como possuidor dessas dádivas de Deus). O poder para desfrutar dessas coisas é um dom de Deus. Logo, a soberania de Deus é enfatizada mais uma vez. A palavra desfrutar é literalmente comer ( ’ãkalí), que também foi usada antes nesta uni¬ dade, no contexto de um trabalhador satisfeito que dorme bem, quer tenha comido muito, quer pouco (5.12). Novamente, esse mal só se torna pior, é um mal terrível, e sem sentido na última linha, porque outro acaba desfrutando das dádivas de Deus. De que adianta as dádivas de riqueza, posses e honra que Deus dá se o beneficiário dessas dádivas não usufrui delas ou morre sem o co¬ nhecimento de que outro desfrutará delas cm vez de seus próprios filhos ? A identidade do outro não é especificada, mas a palavra é literalmente estrangeiro, forasteiro ( nãkêrí ), embora a nacionalidade não esteja em foco aqui. Debaixo da lei estrangeira, tanto persa como grega, aquele que herdasse uma propriedade poderia muito bem ser um estrangeiro. Isso pode ser uma alusão à concessão real dos reis persas, que não passava automaticamente para o herdeiro do beneficiário, mas podia ser dada a alguém fora da família (Seow, 1997, p. 25). 13 Os versículos 3-6 contrastam o homem que vive por muito tempo com uma criança que nasce morta. Coélet começa com o vazio do homem que tem uma família grande, prosperidade e uma longa vida. O elemento da paterni¬ dade está presente em 6.3 (um homem pode ter cem filhos) e na contraparte dessa seção do quiasmo (5.14). No capítulo 5, o mal é a perda da herança que seria passada para o filho. No capítulo 6, o mal é a falta de capacidade de des¬ frutar-se da prosperidade, apesar da bênção de muitos filhos e longa vida (veja Gn 25.8; Jó 42.17). Em um momento de exagero, Coélet declara que uma criança que nasce morta é melhor do que essa pessoa que não consegue usu¬ fruir de sua prosperidade e não recebe um enterro digno. Contudo, ele nunca recomenda o suicídio, nem mesmo em 4.2, quando ele declara que os mortos são “mais felizes do que os vivos” (compare o documento egípcio A Sufferer and a Soul in Egypt com o documento mesopotâmio A Pessimistic Dialogue Between a Master and Servant, Pritchard, 1969, p; 405-407,437,438). A situação do homem hipotético em questão piora ainda mais após a sua morte, porque ele não recebe um sepultamento adequado, que é o reverso da honra que ele recebia em vida (2 Rs 9.34; Ec 8.10; Is 14.19; Jr 22.19). Murphy pensa que essa falta de sepultamento se aplica à criança que nasceu morta, que
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não receberia um enterro (1992, p. 48,54). Isso se encaixa melhor no contexto, na sintaxe e no vocabulário, a saber, qéburâ (enterro) deveria ser a tradução de seu significado normal, “túmulo”. O texto, então, poderia ser traduzido como mesmo que o túmulo não esperasse por ele, o que estende o pensamento dessa pessoa que vive muitos anos (do início do versículo) ( Ginsburg, 1861, p. 361). Mesmo que nós nunca morrêssemos, não haveria sentido na riqueza sem a sa¬ tisfação e o contentamento (veja 6.6). 140 elemento de ir e vir no versículo 4 (e nas trevas o seu nome fica es¬
condido) também é comum à contraparte dessa seção do quiasmo (5.15). Em ambos os versículos, “ir e vir” é uma metáfora para vida e morte. O significado de hebel (em vão) aqui é aparentemente fugaz (Ginsburg sugeriu “trivialidade”; 1861, p. 361). Trevas é também um elemento comum à contraparte do quias¬ mo. Em 5.17, o dono avarento come no escuro, porque não admite desperdiçar nem um pouco da luz do dia. Em 6.4, é o feto abortado que vive e morre na escuridão (vejajó 3.16). Os bebés que sobreviviam recebiam o nome no oitavo dia (e os machos eram circuncidados, Gn 17.12; Lc 1.59), diferentemente do que nasce morto, cujo nome parte em trevas e também fica escondido pela es¬ curidão. Nome também significa renome ou memorial (Dt 9.14; 1 Sm 24.21; 2 Sm 14.7; SI 72.17; BDB 1028). A criança não poderá levar o nome do pai, como Jacó desejou para Efraim e Manassés (Gn 48.16). I 5 O versículo 5 trata da experiência da criança nascida morta. O aborto encontra repouso, enquanto a pessoa próspera, que vive muitos anos, não en¬ contra. A locução verbal conhecer, nesse versículo, não parece ter um sujeito; logo, a interpretação de que uma criança natimorta jamais tenha visto o sol ou conhecido qualquer coisa. Pode ser que o verbo ainda esteja modificando o objeto de visto; a frase pode, então, ser traduzida como nunca viu ou conheceu o sol. A tradução antiga de Symmachus considerava descanso como o objeto (“nunca conheceu o descanso”; Crenshaw, 1987, p. 127). O sol era uma bênção no mundo antigo, no qual a sua luz era essencial para a vida cotidiana (veja 7.11; 11.7). Ver o sol ou a sua luz é usado no lugar de vida em outros lugares (7.11; Jó 3.16; SI 49.19; 58.8). A criança que nasce morta nunca experimenta essa bênção, e, no entanto, tem mais descanso do que o homem que vive a vida com descontentamento. H 6 No versículo 6, Coélet declara uma longa vida como inútil se a pessoa não tem a oportunidade de desfrutar da prosperidade. Esse versículo tem diversas características linguísticas raras (Eclesiastes é conhecido por sua linguagem peculiar). Illâ (e não) é uma forma incomum influenciada pelo aramaico c também encontrada em Ester 7.4. É uma combinação de 'im e lú, que é a forma
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encontrada no fragmento desse versículo nos Pergaminhos do mar Morto. A expressão dois mil anos também é rara ( sãnímpa 'ãmayim). O versículo 6 é uma expansão do versículo 3. A insatisfação com a vida não só arruina o desfrute para aquele que vive muitos anos, mas também para alguém que pudesse viver dois mil anos, nos quais não houvesse satisfação se ele ou ela não pudesse ver o bem na vida (desfrutar a sua prosperidade). Esse ponto de vista é defendido positivamente no clímax desse quiasmo em 5.18, no qual Coélet afirma que é a porção do ser humano comer, bebe e ver o bem, ou encontrar a satisfação. Se não há satisfação nesta vida, então não há sentido, já que todos vão para o mesmo lugar, isto é, o Sheol, o lugar dos mortos. Já que o Antigo Testamento não tem o conceito de uma vida significativa após a morte, a vida deve ser desfrutada agora, “debaixo do sol”, pois não há uma segunda chance para a felicidade. O NT caminhará além desse ponto de vista (1 Co 15.32).
A\ Não há satisfação (6.7-9) 17 0 versículo 7 inicia o parágrafo final desse quiasmo (6.7-9) e corresponde a 5.10-12. Em contraste com o clímax do quiasmo que se concentrava no lado positivo do contentamento (5.18-20), esse parágrafo, assim como o restante do quiasmo, concentra-se no lado negativo, a saber, na insatisfação. Em 5.10, o amante do dinheiro não está satisfeito; em 6.7, o apetite da pessoa jamais se satisfaz. Isso é algo positivo em Provérbios 16.26, no qual o apetite do ho¬ mem o impulsiona a trabalhar arduamente. Aqui, isso é negativo, porque não há finalidade no trabalho, c a satisfação nunca é alcançada, assim como o mar e o ouvido em 1.7,8, os quais nunca ficam cheios. A palavra apetite mostra o significado literal da palavra nepes, que é geralmente traduzida como “alma”; nepes tem vários significados, incluindo garganta, desfiladeiro, vida, ego, alma no sentido de um ser vivente, e assim por diante. Aqui, ela é usada em paralelo com boca. O pensamento hebraico não tinha conceito algum de uma alma que pudesse existir independentemente de seu corpo. I8A porção ou a herança dada por Deus é a base do contentamento no clí¬ max do quiasmo (5.18-20) e sofre constrastes no versículo 8 e outros lugares de Eclesiastes, com o ganho que a pessoa se esforça para obter, mas sem satisfação duradoura. O ganho, neste caso, é a vantagem (yôtêr) que o homem sábio deve ter sobre o tolo, porém não tem. Esse tema (a limitação da sabedoria) também é explorado em outro lugar em Eclesiastes (2.14) e será o clímax do quiasmo na
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unidade seguinte (7.7). Na concraparte dessa seção do quiasmo, o ganho era a vantagem (kiirôn) que um proprietário rico deveria ter com a riqueza acumu¬ lada, mas não tem (5.11 ). Esse pensamento é contrário ao ensino tradicional da sabedoria quanto à superioridade absoluta da sabedoria sobre a loucura (uma visão que Coélet ainda conserva em certo sentido [ex.: 4.13]). A segunda metade do versículo 8 é obscura. Ela é literalmente: Que [ga¬ nho] há para o pobre, sabendo [como] andar diante dos vivos (mah-lle 'ãniyôdêã ' lahãlõk neged hahayyim). “Andar diante dos vivos” é uma expressão idiomática para conduta bem-sucedida (Crenshaw, 1987, p. 129). Contudo, a conduta apropriada nem sempre conduz ao sucesso, o que coloca em questão a vanta¬ gem do sábio sobre o tolo. Logo, a palavra vantagem precisa avançar na pri¬ meira parte do versículo. O sábio não tem vantagem sobre o tolo, assim como o pobre não tem vantagem em sabe como se portar diante dos outros. 190 elemento dos olhos no versículo 9 tem uma contraparte na primeira se¬ ção do quiasmo. Em 5.11, o proprietário rico não tem utilidade alguma para a riqueza acumulada senão olhar para ela, já que ninguém conseguiria consumir tanto. Em 6.9, o que os olhos veem é contrastado positivamente com vaguear o apetite. Um apetite insaciável não trará a satisfação, que só pode ser alcan¬ çada por meio do contentamento (como um presente de Deus). Ver a Deus é uma expressão idiomática usada para satisfação e gozo em 5.18 e 6.6. A alegria da vida vem quando a pessoa vê o bem nas dádivas que Deus tem dado, em vez de permitir a mente vaguear atrás de outras coisas (ficar olhando “para o outro lado da cerca”, para “a grama mais verde”). O versículo 9 qualifica hebel (não faz sentido) como correr atrás do ven¬ to, o que sugere algo fútil ou elusivo. A satisfação duradoura é elusiva em parte, porque os apetites tendem a vaguear. É difícil ficar contente com os presentes que Deus dá, e é fútil desejar mais. Os escribas massoréticos marcaram o ponto central do livro entre os versículos 9 e 10.
A PARTIR DO TEXTO
Riqueza A falta de satisfação duradoura que a riqueza traz correlata-se com o mar, com os ouvidos e com os olhos no capítulo 1, que nunca estão satisfeitos com as águas dos rios, com o ouvir ou com o ver (1.7,8). A riqueza acumulada pode até causar dano, ela pode facilmente se perder e não pode ser levada desta vida (5.13-
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15). Cantares enfatiza o valor da riqueza com relação ao amor na declaração: “Se alguém oferecesse todas as riquezas da sua casa para adquirir o amor, seria totalmente desprezado” (8.7). A parábola de Jesus sobre os celeiros do homem rico mostra tanto a falta de satisfação duradoura da riqueza como a impossi¬ bilidade de manter-se a riqueza após a morte (Lc 12.15-21). Esse homem é condenado pelo seu plano de “comer, beber e folgar”, o que é incrivelmente similar ao conselho de Coélet sobre desfrutar da comida e da bebida (5.18). A importante diferença é que Coélet está aconselhando o contentamento com a comida e a bebida que Deus deu a ele, enquanto o homem rico da parábola de Jesus havia acumulado em excesso, para que pudesse fazer do prazer a orienta¬ ção de sua vida. O acúmulo de riquezas nunca levará à satisfação duradoura, porque ele não tem fim. As propriedades atuais de alguém, entretanto, são fini¬ tas e, se desfrutadas com contentamento, oferecerão uma satisfação imediata.
Goze a Vida O contentamento é o principal impulso dessa passagem e é um tema que foi já apresentado com força em Eclesiastes. Quanto ao rei nos capítulos 1 e 2, a riqueza que é ajuntada e acumulada não traz satisfação, mas leva ao desejo de mais (5.10), a consumidores adicionais (5.11), à falta de sono (5.12), ao preju¬ ízo (5.13), àperda (5.14), à frustração, à aflição e àira (5.17), à falta de capaci¬ dade de usufruir (6.2) e à falta de satisfação (6.7). No NT, Paulo dá aos cristãos a chave do contentamento: “Alegrem-se sempre no Senhor. Novamente direi: alegrem-se” (Fp 4.4; veja também Fp 4.11,12; Lc 3.14; 1 Tm 6.6-8; Hb 13.5; Tg 4.1,2; 5.1-5). A alegria que é encontrada no Senhor, e não na riqueza, leva à satisfação duradoura, e a esperança da ressurreição no NT significa que esse contentamento continua na vida eterna ( 1 Co 15-32).
Vaidade (hebel) O uso de hebel (não faz sentido) nesta unidade é muito negativo e está li¬ gado à designação do mal. O acúmulo de riqueza não traz o proveito esperado (5.10; 6.1,2,9). A falta de contentamento com a riqueza, e até aperda da rique¬ za, é maligna (5.13,16; 6.1,2). Felizmente, esse desfecho negativo é balancea¬ do pela chamada para gozarmos a vida e ficarmos satisfeitos com o que temos (5.18-20).
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VIII. AS LIMITAÇÕES DA SABEDORIA (6.10-7.14) POR TRÁS DO TEXTO
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Eclesiastes 6.10 7.14 é o início da segunda metade do livro, de acordo com os escribas massoréticos, e segue o quiasmo de 5.10 6.9 com o seu pró¬ prio quiasmo. O quiasmo anterior concentrava-se nas limitações da riqueza, e esse se concentra nas limitações da sabedoria. Esses são os temas principais do livro, e esta unidade também revisita os temas da soberania divina e da fama. O quiasmo é rompido pelos apelos por um valor de sabedoria em 7.5,6 e 7.11,12. Isso arma o cenário para o clímax do quiasmo, o que sugere as limita¬ ções da sabedoria; até mesmo uma pessoa sábia pode tornar-se tola por causa de uma propina (7.7). A unidade inteira é acompanhada de afirmações sobre a soberania de Deus, que é exatamente a coisa que limita a sabedoria humana (6.10-12; 7.13,14). Esta unidade é uma reflexão que inclui expressões “melhor do que”. Ou¬ tros artifícios literários são a aliteração em 7.1 e o jogo de palavras em 7.5,6. Uma palavra-chave em Eclesiastes é bom (52 vezes), que é muito frequente
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no capítulo 7(15 vezes) por causa das expressões “melhor do que”. Eclesiastes
6.10 — 7.14 pode ser esboçado como segue: A. A soberania de Deus: os homens não têm a presciência (6.10-12) B. Não despreze o passado/presente por causa do futuro (7.1-4) (A sabedoria ainda é valiosa [7.5,6]) C. A sabedoria é limitada (7.7) B’. Não despreze o futuro/presente por causa do passado (7.8-10) (A sabedoria ainda é valiosa [7.11,12]) A’. A soberania de Deus: goze a vida (7.13,14)
NO TEXTO
A. A soberania de Deus: os homens não têm a presciência (6.10-12)
H 10 Eclesiastes 6.10-12 forma a estrutura teológica para esta unidade, junta¬ mente com 7.13,14. Os escribas massoréticos designaram o centro do livro en¬ tre os versículos 9 e 10, e aqui Coélet parece começar seu argumento novamen¬ te. A imprevisibilidade da vida como é expressa aqui parece ser uma admissão da soberania de Deus. Nem mesmo a sabedoria pode dar à pessoa o controle de sua vida. O indivíduo deve ficar contente e aceitar o que Deus tem dado e re¬ conhecer as limitações humanas, pois, tudo o que existe já recebeu um nome (lit.: o seu nome é chamado). Essa é uma expressão idiomática de designação e é usada em textos bíblicos e babilónicos (Is 40.26; Enuma Elish; veja Matthews e Benjamin, 2006, p. 12). O modo passivo expressa o envolvimento de Deus por trás dos bastidores. É Deus quem já designou o que acontece. A Sua presciência é expressa na frase seguinte: E já se sabe o que o homem é. Essa tradução se encaixa no contexto (e segue a Septuaginta), mas repre¬ senta uma interpretação incomum do pronome relativo ( 'ãser). Fox sugere transpor as palavras homem e e, concebendo a tradução: “E o que é, é conheci¬ do” (1999, p. 247). A emenda de Seow é preferível, já que requer menos ajustes das consoantes. Ele presume que uma letra extra (álef) tenha sido acrescentada por erro do escriba (ditografia, 'ãser-hu 'ãdãm, em vez de ãsurêhâ 'ãdãm)\ a emenda dele resulta na tradução dessa sentença da seguinte forma: “O curso [passo, ida] do ser humano é conhecido” (1997, p. 230-232). A soberania de Deus é enfatizada um pouco mais com a declaração de que nenhum homem pode lutar contra alguém mais forte. O mais forte é presumivelmente Deus (vejajó 9.19).
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Ahiqar sobre os reis Faça com que a ordem do rei seja o desejo do seu coração. Podem os gravetos dominar a chama? Pode a carne resistir à faca? Podem os camponeses dominar seus governantes? (Matthews e Benjamin, 2006, p. 305)
111 Contender com Deus exigiria muitas palavras, e Coélet denomina isso de hebel (isto é, inconsequente) no versículo 11. Argumentar com Deus não seria vantagem para ninguém ( Jó 42.3). O uso de mais palavras simplesmente significa um maior discurso inútil. Para reforçar esse ponto de vista, Coélet usa aliteração, dando o efeito de balbucios ( dèbãrím harbêh marbim hãbel). Hebel (sem nenhum proveito) é usado no sentido de inútil nesse contexto. A última linha, mais tolices, e sem nenhum proveito, transmite a mesma ideia. 112 0 versículo 12 expõe a falta de conhecimento nesta vida curta. As pes¬ soas passam pelos poucos (hebel) dias de sua vida como uma sombra. A som¬ bra pode fornecer uma receptiva proteção, mas, assim como o sopro ou o vapor (outros significados de hebel), ela não é duradoura e não pode comparar-se com a soberania eterna de Deus (veja 1 Cr 29.15; SI 144.4; Jó 8.9; 14.2; Ec 8.13). Em que ele passa é literalmente “e ele os faz [os dias]” {wéya 'âsêm), o que levou à teoria da influência grega, já que o verbo grego “fazer” também é usado para expressar “passar o tempo” (veja Rt 2.19 e o hebraico pós-bíblico; Fox, 1999, p. 248). As teorias sobre a influência grega no pensamento de Eclesiastes foram populares no passado, mas não há palavras gregas emprestadas no texto hebraico, e muitas dessas ideias podem ser encontradas em fontes tanto semíticas como gregas. Além disso, um contexto de vida semelhante pode ter provocado o surgimento de ideias que não são necessariamente dependentes umas das outras.
A presciência divina é contrastada com as limitações do conhecimento humano no versículo 12. Quem sabe é uma pergunta retórica com a presu¬ mível resposta: “Ninguém”. Nem mesmo os professores da sabedoria sabem o que é bom, embora eles tenham inúmeros provérbios sobre o que é bom. O capítulo 7 enumerará alguns deles e mostrará suas fraquezas; eles não são ver¬ dades absolutas, embora Coélet ainda admita alguma vantagem da sabedoria. Ele mesmo é um professor da sabedoria, afinal.
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B. Não despreze o passado/presente por causa do futuro (7.1-4) I 1 Eclesiastes 7.1-4
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é o segundo parágrafo do quiasmo em 6.10 7.14. Coélet parece citar um provérbio em 7.1: Um bom nome é melhor do que um perfume finíssimo, o qual tem uma incrível aliteração quiástica {tôb sêm missemen tôb) (veja o provérbio: “A boa reputação vale mais que grandes ri¬ quezas” [Pv 22.1]). Até certo ponto, 7.1-14 é uma lista de provérbios, alguns citados, outros talvez compostos pelo próprio Coélet. Eles estão cuidadosa¬ mente dispostos para defender o seu ponto de vista de que a sabedoria, embora valiosa, é limitada. Um grande nome era uma das bênçãos de Abraão em Génesis 12.1-3, mas, para os construtores da torre de Babel, o desejo pela fama resultou em juízo divi¬ no (Gn 11.4; veja também Jó 30.8). Até Deus está preocupado com a Sua repu¬ tação. Essa foi parte de Sua motivação para o êxodo (Dt 28.58,59; veja Am 2.7). Um bom nome está ligado ao perfume em Cantares 1.3, e o mau cheiro, ao mau caráter em Génesis 34.30; Êxodo 5.21. Lutero traduziu essa frase como: “Um bom odor (i.e., reputação) é melhor do que um bom unguento” (Delitzsch, 1875,
p. 313). Um bom nome é melhor do que um perfume finíssimo, mas os esforços serão contraproducentes se a fama (bom nome) se tornar a orientação de vida da pessoa. Coélet ainda discorre sobre as limitações da fama apontando o ab¬ surdo que seria levar esse provérbio à sua conclusão lógica (v. 1-4). Se tudo o que realmente importa é o legado que alguém deixa para trás, então morrer é mais valioso do que nascer, e melhor é o dia da morte do que o dia do nascimento. Isso é um absurdo, já que a vida é para ser desfrutada a cada momento, como Coélet enfatiza repetidamente em outros lugares (ex.: 2.24; veja a Introdução). 120 versículo 2 dá continuidade a esse argumento. Se o dia da morte é mais valioso do que a vida, então é melhor ir a uma casa onde há luto do que a uma casa em festa. Isso significa que um funeral é melhor do que uma ceri¬ mónia de casamento ou de aniversário (veja Et 7.8; Jr 16.8). Os Pergaminhos do mar Morto e um manuscrito hebraico mostram “alegria, prazer” (simhâ), em vez de banquete ( misteh), que realmente não muda o significado (Kriiger, 2004, p. 37,134). A casa onde havia luto também servia comida e bebida (Jr 16.5-9). Whybray considera o versículo 2 seriamente e entende o seu significa¬ do como a necessidade de enfrentar a morte e a mortalidade sem retirar-se para o “riso vazio e estridente dos loucos” (veja 7.6) (1989, p. 11). Da mesma maneira, Towner enxerga esse versículo como um lembrete de que devemos tratar todas
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as experiências humanas com um “forte senso de mortalidade” (1997, p. 326). Entretanto, Coélet provavelmente está usando o sarcasmo para mostrar que um desejo doentio pela fama é desejar a própria morte de alguém, para que a
fama possa aumentar (veja Spangenberg, 1996, p. 65). 30 sarcasmo continua no versículo 3 com outro provérbio, a tristeza é melhor do que o riso, embora possa haver também alguma verdade nesse pro¬ vérbio. Tristeza ou vexação ( ka 'as) não é vista em uma luz positiva em outras partes do livro. Juntamente com o sofrimento está a experiência do trabalhador compulsivo em 2.23 e o resultado da sabedoria em 1.18. Contudo, é natural os provérbios serem situacionais e conterem alguma verdade ou aplicabilidade universal. O sofrimento pode trazer a profundidade de caráter que está faltan¬ do naqueles que apenas conhecem a frivolidade (veja 2.2; Pv 14.13). Lutero declara; “O coração é feito melhor pelas tristezas” (Delitzsch, 1875, p. 315). O versículo 3 continua esse pensamento, declarando que o rosto triste melhora o coração. O rosto triste está, literalmente, no mal do rosto ( bérõa ' pãnim, Gn 40.7; Ne 2.2). Melhora o coração é, literalmente, o coração fica bom/feliz ( yitab lêb, Rt 3.7; Jz 19.6,9). Isso é semelhante à expressão idiomática tôblêb, que significa “feliz de coração” (2 Cr 7.10; Jz 16.25; Et 1.10; 5.9).
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Ao longo da estrada Caminhei uma milha com a Satisfação, Ela ia conversando pelo caminho; Mas não me deixou nada mais sábio Com tudo que tinha para dizer. Caminhei uma milha com a Tristeza, Nem uma palavra ela disse; Mas, ó, quanta coisa aprendi com ela Quando a Tristeza caminhou comigo! (Robert Browning Hamilton, in: Felleman, 1936, p. 537)
■ 4 O versículo 4 encerra essa análise da conclusão lógica do provérbio do ver¬ sículo 1 com outro provérbio: O coração do sábio está na casa onde há luto, mas o dos tolos, na casa da alegria. A casa do luto já havia sido mencionada em 7.2, em contraste com a “casa em festa”. Aqui, o contraste é com a casa da alegria (ou “alegria”, simho). A conexão entre “festa” e alegria também foi feita em Ester 9.17.
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Será que Coélet ainda está mostrando o absurdo de se fazer da fama o ob¬ jetivo da vida, ou será que ele está falando sério sobre a conexão da sabedoria e da tolice com o luto e o prazer? Mais cedo, ele argumentou que mais sabedoria leva a mais tristeza, por causa de todas as opressões que a pessoa sábia precisa testemunhar. No entanto, ele também argumentou que se deve desfrutar da vida a cada momento. Existe alguma ambiguidade aqui, e talvez haja a intenção de um duplo sentido. O sábio reconhece as limitações da vida, mas os tolos não. Isso não significa que Coélet rejeite seus próprios conselhos anteriores. Esta unidade também concluirá não apenas com um conselho para desfrutar-se dos bons tempos, mas também para aceitar os maus tempos, já que estes
também surgem segundo a soberania de Deus (7.14).
(A sabedoria ainda é valiosa [7.5,6])
H 5 Ao citar um provérbio no versículo 1, só para rejeitar toda aplicação uni¬ versal do princípio, Coélet parece passar para os conselhos sérios no versículo 5: É melhor ouvir a repreensão de um sábio do que a canção dos tolos (veja Pv 12.1; 13.1,18; 15.5,12,31,32). As palavras do sábio podem representar vai¬ dade quando forçadas além dos limites lógicos (como 7.1-4), mas, ainda assim, são superiores à canção dos tolos. Em vez de festa e riso (v. 2,3), o foco agora é uma canção, que está, de certa forma, relacionada às duas primeiras palavras (veja Am 6.5). Canção {sir) é, às vezes, usada no sentido de “louvor” (Is 42.10; SI 149.1; Jr 20.13), o que pode ser relevante aqui também. O louvor do tolo é contrastado com a repreensão do sábio. Essa é uma das duas declarações sobre o valor da sabedoria (também 7.11,12). Isso vem antes e depois do clímax do quiasmo, o que expõe mais uma vez as limitações da sabedoria (7.7). H 6 Em um marcante jogo de palavras, a “canção” {sir) do tolo no versículo 5 agora se volta para o estalo {sir) dos espinhos no fogo debaixo da panela {sir). Essa é uma imagem da brevidade em meio a tanta comoção, já que espinhos secos não demoram para queimar-se, mas fazem muito barulho quando se queimam. Os gravetos secos de um espinheiro forneceriam um fogo quente, porém rápido, com pouca energia calorífica (veja SI 118.12; J1 2.5). Barton mantém o jogo de palavras em sua tradução “como o crepitar dos urtigões debaixo dos caldeirões” (embora os urtigões não queimem com o mesmo estalar dos espinhos) (1908, p. 138). A nuance de hebel (não faz sentido) aqui é fugaz e sem proveito.
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John Hookham Frere sobre o júbilo dos tolos (1801) O júbilo dos tolos, em algum lugar, diz o pregador, É como o estalar dos espinhos quando se queimam;
Tão insubstanciais são suas mais vivas alegrias, Compostas de leviandade e barulho irrefletidos: Embora, a princípio, a chama envolvente pareça brilhar, É apenas uma faísca momentânea de luz, Com nada sólido para sustentar o fogo, Ele rapidamente desmancha, toda sua alegria expira. (In: Christianson, 2007, p. 191)
C. A sabedoria é limitada (7.7) 1 7 Os versículos 5 e 6 são agora balanceados com outra olhada nas limita¬ ções da sabedoria (veja 7.1-4). Embora a sabedoria possa ser corrompida pela opressão e pelo suborno, a opressão transforma o sábio em tolo, e o suborno corrompe o coração (7.7). Em hebraico, a sentença com ki (“pois”, “porque”) geralmente segue um antecedente, mas, aqui, não há nenhum. Além disso, os Pergaminhos do mar Morto dizem “perverte” (wi dwweh) em vez de corrompe ( wt abbcd), que re¬ almente não muda o significado (Kriiger, 2004, p. 37,134). O fragmento dos Pergaminhos do mar Morto também tem um espaço em branco grande o su¬ ficiente para caberem 13 letras entre os versículos 6 e 7 (Longman, 1997, p.
186). A palavra suborno literalmente é presente ( ma.ttãnâ, veja também Pv 15.27). Isso mostra a fina linha entre presente e suborno. A Bíblia é, em ge¬ ral, negativa quanto a subornos (Êx 23.8), mas o realismo de Provérbios 21.14 pode ser chocante para o público moderno: “O presente que se faz em segredo acalma a ira, e o suborno oferecido às ocultas apazigua a maior fúria”.
B'. Não despreze o futuro/presente por causa do passado (7.8-10) B 8-10 A importância do contentamento, na forma de paciência, é tratada nos versículos 8-10. É tolice apegar-se aos agradáveis dias do passado (v.
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ou tornar-se impaciente a ponto de ficar com ira (v. 9), pois o paciente é me¬ lhor que o orgulhoso, e dias melhores virão (v. 8). O vocabulário que fala do paciente e do orgulhoso fornece uma visualização útil. Ser paciente é, literal¬ mente, ser longo de espírito ( erek-rúah), enquanto ser orgulhoso é o mesmo que ser alto em espírito (gèbah-rúah; veja Pv 16.5).
Esses três versículos correspondem ao quiasmo de 7.1-4. Estes se concen¬ travam na depreciação do passado/presente em favor do futuro, enquanto 7.8-
10 se concentram na depreciação do futuro/presente em favor do passado. Essa aparente contradição fornece um equilíbrio e impede a distorção de ambas as perspectivas. A insatisfação com o domínio persa ou helenístico poderia facil¬ mente ter tornado esse anseio pelos velhos tempos um lugar comum (Delitzsch, 1875, p. 320).
Phoebe Hesketh sobre o fim da festa (1989) E o fim da festa é melhor do que o início. A quietude reúne as vozes e o riso Em uma só taça
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Nós bebemos a paz. Almofadas amarrotadas são suavizadas como a nossa alma E o silêncio entra na sala
Como um estranho trazendo presentes Que não havíamos imaginado, Que não tínhamos como saber Sem essas vindas E essas idas. (In: Christianson, 2007, p. 192)
190 versículo 9 adverte contra a ira. A palavra ira (ka 'as) aparece em Eclesiastes 1.18; 2.23; 5.17 e 7.3 com o sentido de tristeza, angústia ou frustração. A ira se aloja no íntimo dos tolos é o oposto do provérbio; “A sabedoria repousa no coração dos que têm discernimento” (Pv 14.33). A imagem da ira que se
aloja ( yãnúah, residindo) no seio dos tolos é uma imagem contrária, já que a ira não descansa (Crenshaw, 1987, p. 137). Fox sugere que a imagem retrata a ira sendo nutrida e alimentada, como um bebê descansando nos braços da mãe (1999, p. 254).
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I 10 Coélet adverte contra permanecer no passado no versículo 10. O clás¬ sico exemplo dos israelitas
apegados aos bons e velhos tempos é quando eles estavam peregrinando pelo deserto e desejavam retornar à escravidão do Egito (Êx 16.3; Nm 11.5,6; 14.1-4). Coélet considera a exaltação ao passado um si¬ nal de falta de sabedoria.
(A sabedoria ainda é valiosa [7.11,12]) ■ 11 No quiasmo, 7.11,12 corresponde a 7.5,6, que também balanceia o va¬ lor da sabedoria contra as limitações expressas em outras partes desta unida¬ de (6.10 7.14). O versículo 11 interrompe a rígida estrutura quiástica para reiterar o valor da sabedoria. A tradução a sabedoria, como uma herança, assume um significado incomum para a preposição 'im. O significado normal é “com”, que daria a tradução: “A sabedoria com uma herança é uma coisa boa”. A primeira linha sugere que, embora a sabedoria seja tão boa quanto a riqueza, a sabedoria com a riqueza é melhor. Aqueles que veem o sol refere-se aos que estão vivos e é equivalente à frase normal de Coélet: “Debaixo do sol” (veja
—
também Jó 3.16; SI 49.19; 58.8). Embora as limitações da sabedoria sejam tratadas nesta unidade, Coélet é positivo quanto à sabedoria. É coisa boa e beneficia aqueles que veem o sol. Assim como o dinheiro, ela fornece proteção. Alguém pode ter esperado que Coélet dissesse que a sabedoria fosse melhor do que o dinheiro, especialmen¬ te já que existem diversas expressões “melhor do que” nesta unidade (veja Pv 8.11). No entanto, a proteção da sabedoria, assim como o dinheiro, também tem limites. H 12 O versículo 12 também expressa o valor da sabedoria, mas, como no ver¬ sículo 11, não está claro se a sabedoria é superior à riqueza ou se ambas juntas fornecem proteção. Eaton aponta para uma possível jogada de palavras, já que proteção pode também significar “brilho” em ugarítico; ele, então, vê aqui uma referência ao brilho do dinheiro (1983, p. 113). A tradução literal da primeira frase é: Pois, à sombra da sabedoria, à sombra do dinheiro ou na sombra está a sabedoria, na sombra está o dinheiro [ki bésêl hahokmâ bésêl hakkãsep). À luz das outras declarações de Coélet sobre as limitações da riqueza, fica parecendo que a superioridade da sabedoria sobre a riqueza é presumida em 7.11,12. Entretan¬ to, esta unidade culmina com as limitações da sabedoria. Contudo, no geral, Coélet está preocupado em mostrar que a sabedoria é limitada, porque não pode garantir riqueza ou outros resultados positivos. Coélet também ensinou
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que não existe um contentamento duradouro no acúmulo de riquezas. Apesar das limitações, a sabedoria é superior à riqueza acumulada. A segunda metade de 7.12 está aberta a várias interpretações concernen¬ tes ao relacionamento do conhecimento e da sabedoria. A Septuaginta e o Targum entendem-nos como genitivos de vantagem (“a vantagem do conhe¬ cimento e da sabedoria”), enquanto a Vulgata os considerou como sujeitos (“o conhecimento e a sabedoria são uma vantagem”). O texto hebraico liga o conhecimento (mas não a sabedoria) à vantagem (“a vantagem do conheci¬ mento [é] ”). Contudo, a forma do substantivo conhecimento é a mesma no infinitivo, então, o texto hebraico pode ser traduzido como “a vantagem de co¬ nhecer a sabedoria [é]” (veja Crenshaw, 1987, p. 138). Todas essas alternativas confirmam o valor da sabedoria.
A\ A soberania de Deus: goze a vida (7.13,14) I 13 Os dois versículos finais desta unidade fornecem a estrutura teológica conclusiva do quiasmo (13,14), assim como 6.10-12 fornecem a introdução. Os limites da sabedoria estão dispostos no contexto da soberania de Deus. Eclesiastes 6.10-12 não mencionou o envolvimento de Deus, mas sugeriu a Sua presença com o uso da voz passiva e a menção do “que é mais forte do que ele” (6.10). Agora, Coélet é explícito em sua menção a Deus, que é soberano até mesmo para fazer algo torto (embora os sábios tivessem o objetivo de co¬ locar as pessoas no caminho reto). Deus fica implícito, não sendo mencionado na declaração: “O que é torto não pode ser endireitado” (1.15). A sabedoria é limitada no sentido de que ela não pode suplantar a soberania de Deus. A presciência e o controle dele são absolutos, apesar dos melhores esforços da sabedoria. Essa afirmação da soberania de Deus é muito geral e não dá informa¬ ção suficiente para apoiar a interpretação de Crenshaw de que algumas coisas foram criadas tortas (1987, p. 139). A questão em foco é a limitação da sabe¬ doria humana, e não a natureza da criação. 14 O versículo 14 coloca o tema do contentamento de Coélet no contexto da soberania de Deus. Um jogo de palavras está presente na primeira linha: Quando os dias forem bons, aproveite-os bem; mas, quando forem ruins (...) ( bêyôm tóbâ hêyêh bétôb úbêyôm rã â ré'êh). A palavra bons é usada duas vezes (bom, bem), e as palavras ruins e considere têm sons semelhantes (rã á, rê êh). A expressão para que traduz al-debrat se, que ocorre apenas nesse versículo no AT c é modelado a partir da frase aramaica 'al-debrat dí.
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Coélet aconselha a alegria nos bons tempos e uma atitude filosófica nos tempos ruins, já que a presciência divina é absoluta, e a presciência humana é limitada. Isso resulta em uma variação de seu conselho habitual de desfrutar a vida (veja, por exemplo, 3.12,13,22). A sabedoria é valiosa, mas tem limitações, e, ao final, a pessoa deve contentar-se com a porção que Deus, em Sua sobera¬ nia, deu-lhe (vejajó 1.21). Para validar essa afirmação, Coélet aparentemente citou provérbios comuns nesta unidade e mostrou suas limitações, levando-os às suas conclusões lógicas.
Horácio sobre viver no presente Mas Deus, sempre tão sábio em bondade, Escondeu, em nuvens de noites profundas, Tudo o que na expectativa futura jaz Atém do alcance da visão humana, E ri ao ver o homem vão oprimido Com vagos temores, e mais do que o homem angustiado.
Então, sabiamente forma o tempo presente, Para desfrutarmos da felicidade que este concede; Todo o resto está fora do nosso poder, E assim como flui o mutável Tibre, Que, agora, sob suas ribanceiras se afasta, E pacificamente para seu oceano nativo flutua. (Odes 3.29; 29-36; in; Ginsburg, 1861, p. 378)
A PARTIR DO TEXTO
Soberania divina Coélet expressa a soberania de Deus em termos de Seu conhecimento e de Sua força (6.10, comparado com a falta de conhecimento humano em 6.12). A soberania é também expressa em um provérbio que afirma que o que Deus fez torto não pode ser endireitado (nem mesmo por meio da sabedoria). A implicação da soberania de Deus é que os homens não podem controlar os re¬ sultados e devem, portanto, aceitar (com alegria) a porção que Deus tem dado
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(7.14). Há algumas coisas que talvez gostaríamos de mudar, “mas não podemos alterar aquilo que Deus fez” (Towner, 1997, p. 327).
Fama No pensamento da época do AT, não havia uma doutrina desenvolvida sobre a ressurreição ou a crença em uma significativa vida após a morte. Em vez disso, as pessoas encontravam a imortalidade no sucesso de seus filhos e em gerações futuras, bem como em sua reputação. Coélet zomba dessa ideia com a conclusão de que a casa onde há um funeral é melhor do que a casa onde há festa (7.2). Em vez de apegar-se ao passado, Coélet aconselha o desfrutar das boas dádivas de Deus e a aceitação de Sua soberania nos tempos ruins (7.14).
Sabedoria A unidade anterior (5.10
— 6.9) enfatizou as limitações da riqueza. Apa¬
rentemente, algumas pessoas estavam orientando a vida em torno da obtenção
de riqueza e tentando usar a sabedoria para consegui-la. Essa passagem (6.10 — 7.14) enfatiza as limitações da sabedoria. Ainda que a riqueza seja um objetivo digno, a sabedoria não é um caminho confiável para esse objetivo. Isso ocorre por causa da limitação do conhecimento (6.12; 7.14), e porque a sabedoria é limitada pela corrupção (7.7) e pela soberania de Deus (7.13). Contudo, há valor na sabedoria, apesar de suas limitações (7.5,11).
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IX. 0 JUÍZO, A RETIDÃO E A SABEDORIA SÃO ELUSIVOS (7.15-29) POR TRÁS DO TEXTO
Eclesiastes 7.15-29 segue dois quiasmos que se concentram nas limitações da riqueza e da sabedoria. Ele continua a desafiar a visão simplista da retribui¬ ção e a defende o temor a Deus (v. 18), apesar do caráter elusivo da justiça e da sabedoria na unidade seguinte, e prossegue com esses temas e também revisita a soberania de Deus. A reflexão é o principal gênero desta unidade; ela inclui instrução (v. 21) e perguntas retóricas (v. 16,17). A palavra “encontrar”, usada oito vezes nesta unidade, transmite um tema importante do livro. Coélet procura respostas na vida (1.13; 7.25,28,29), mas não encontra a satisfação esperada nas buscas. Ele deseja escapar (mãlat ) da insensatez da mulher (v. 26), mas descobre que a sa¬ tisfação e até a sabedoria escapam dele (v. 24). Ao final, a satisfação não vem da tentativa de encontrar alguma coisa elusiva, mas de aceitar as dádivas que Deus já deu (8.15). Os versículos 15-29 podem ser esboçados como segue:
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O juízo é elusivo (7.15-18) A justiça é elusiva (7.19-22) A sabedoria é elusiva (7.23,24) Existe o juízo; a justiça e a sabedoria são superiores (7.25-29)
A. O juízo é elusivo (7.15-18) fl 15 Esta unidade continua o tema comum de Eclesiastes: o valor e as limi¬ tações da sabedoria. O tom autobiográfico e conversacional é reminíscente das reflexões do rei nos capítulos 1 e 2. Coélet não se apresenta, porém, como Salomão ou como um rei nesta unidade. Ele é, às vezes, crítico dos reis (4.13; 5.8; 10.16) e até dá conselhos concernentes aos reis (8.2-4; 10.4,20). O exa¬ gero dos capítulos 1 e 2 (“tenho visto tudo”, 1.14) é continuado na frase eu já vi de tudo.
O contexto dessa observação é a vida sem sentido de Coélet. O significa¬ do de hebel, nesse contexto, pode ser “fugaz”, embora o contexto não permita uma definição muito precisa neste caso. O contexto imediato é o retalhamento do conceito de retribuição padrão da sabedoria. Logo, hebel pode ter o sentido de “incompreensível” aqui. O que Coélet tem observado é inesperado e enig¬ mático. Na doutrina da retribuição, que era a visão padrão dos professores da sabe¬ doria, acreditava-se que os justos eram recompensados por Deus com bênçãos materiais, tais como prosperidade e vida longa. Ao mesmo tempo, o ímpio so¬ freria castigo por meio de desastre material e até morte. As observações de Co¬ élet não sustentam essa doutrina como um princípio universal. Ao contrário, ele já viu um justo que morreu apesar da sua justiça, e um ímpio que teve vida longa apesar da sua impiedade. Coélet não acrescenta outro comentᬠrio, já que o seu público vê imediatamente que o mundo não está funcionan¬ do como deveria. Os mais cínicos entre o seu público seriam atraídos por seu argumento, porque já teriam feito essa observação e desafiado a doutrina da retribuição por si mesmos. Eles estariam entre os que desafiam a reivindicação do salmista: “Já fui jovem e agora sou velho, mas nunca vi o justo desamparado, nem seus filhos mendigando o pão” (SI 37.25; veja Pv 10.24-27). B 16 Coélet, então, dá alguns surpreendentes conselhos para lidar com essa berrante anomalia. Ele parece defender a moderação na justiça e na sabedoria. Isso é contrário a todo o ensinamento dos professores da sabedoria, à Lei e aos Profetas, os quais reconhecem uma falta generalizada nessas áreas, e não uma superabundância. Coélet também defendeu a sabedoria enquanto reconhecia
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as limitações desta (1.18; 2.13; 2.16; 6.8; 7.7). Logo, é altamente improvável que Coélet esteja defendendo uma justiça e uma sabedoria de segunda classe, embora essa seja a conclusão de Crenshaw (1987, p. 140). Alguns já sugeriram que Coélet estivesse escrevendo sobre apropria justiça ou hipocrisia (Whybray 1989, p. 120) ou acerca de gabar-se sobre a própria justiça e sabedoria (Seow,
p. 233,267). Provérbios fala de ser sábio aos seus próprios olhos (3.7; 26.12,16; 28.11). Ginsburg relacionou isso com o fato de ser demasiadamente rígido e escrupuloso na conduta religiosa e moral (1861, p. 379), e Delitzsch caracterizou o conselho como “não seja um rigorista fechado” (1875, p. 325). Coélet afirma que a autodestruição é o resultado do indivíduo que é exces¬ sivamente justo e sábio (v. 16). É possível que Coélet esteja falando de uma busca pela justiça e pela sabedoria que leva à autodestruição (veja Pv 16.18). A palavra harbeh (excessivamente) provavelmente modifica seja, e não justo (Seow, 1997, p. 252,253, citando Whybray), de forma que não é uma justiça extrema que está em vista, mas uma busca extrema. Uma busca extrema assim pela sabedoria e pela justiça pode ser resultante de alguém que esteja usando esse comportamento por causa da longa vida ou por benefícios materiais. A retribuição não é muito confiável, e essa busca será contraproducente, levando à frustração e à destruição. Isso pode ser apoiado pela sintaxe de não seja (...) nem (...), que literalmente é: Não faça para si mesmo proveito sábio {yôtêr). O substantivo final é, em geral, entendido em um sentido adverbial, modificando “sábio” (ex.: demasiadamente). Porém, pode ser um objeto indireto, de forma que a preposição tenha de ser fornecida (ex.: “por causa do lucro”). Isso é con¬ sistente com a visão geral de Coélet de que a justiça e a sabedoria não devem ser procuradas por causa do lucro, mas sob a motivação do temor a Deus. 1997,
Robert Burns sobre a justiça rígida e a sabedoria (1786) Meu filho, estas máximas constituem uma regra, Coloque-as todas juntas; O justo rígido é um tolo, O sábio rígido é outro: O trigo mais limpo antes de ser peneirado Pode conter algumas palhas; Então, nunca despreze um companheiro Por ataques aleatórios de tolices. (In: Christianson, 2007, p. 194)
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■ 17 O versículo 17 fica em contraste com o versículo 16, já que Coélet dá o conselho: Não seja demasiadamente ímpio e não seja tolo. Se os jovens cínicos estivessem prestes a cair na insensatez, com base no versículo 16, esse conselho traria o equilíbrio esperado. Coélet poderia ter dito: “Não seja ím¬ pio” (em vez de demasiadamente ímpio). Talvez ele quisesse ser mais realista, como tem sido sobre a capacidade humana de ser justa (7.20,29), mas isso não deve ser interpretado como uma autorização para ser um pouco ímpio. Não há qualificação de insensatez no versículo 17; Coélet aconselha contra toda a insensatez. Afinal, Coélet é um professor da sabedoria e, apesar de todas as incongruências da vida, ele nunca poderia defender a impiedade e a insensatez. O resultado de ser demasiadamente ímpio é morrer antes do tempo, o que faz um paralelo com o resultado da extrema busca pela justiça (v. 16). A sobera¬ nia de Deus sobre a hora dos acontecimentos está implícita na frase: Por que morrer antes do tempo? (veja 3.1-8). A ideia de hora da morte também é encontrada em Jó 22.16, Ahiqarl .102, e na inscrição do fenício Eshmunazar (Crenshaw, 1987, p. 142). O versículo 17 mostra que, embora Coélet esteja disposto a desafiar a uni¬ versalidade da doutrina da retribuição, ele não está disposto a abandoná-la. Ele, na realidade, espera que uma pessoa excessivamente ímpia se encontre com a morte de forma prematura. I 18 O versículo 18 dá o conselho para reter uma coisa e não abrir mão da outra; não está clara qual é a intenção do pronome este ( zeh ), que ocorre duas vezes e é traduzido como uma e outra. Provavelmente, não há duas coisas em mente, mas apenas uma, a saber, os conselhos dados nos versículos 16 e 17. O leitor deve ater-se ao conselho dado nessas advertências e não os abandonar. Quem teme a Deus evitará ambos os extremos é literalmente: “Aquele que teme a Deus remete todas as coisas para fora (yãsã ’). Outro uso de yãsã ’ é
“escapar” (Gn 39.12,15), o que pode indicar a ideia de escapar dos extremos de Eclesiastcs 7.16,17 (evitará ambos os extremos). Embora ele esteja dispos¬ to a desafiar o ensino preestabelecido da sabedoria, Coélet ainda acredita no temor dc Deus como a base para a vida. O temor de Deus não é um medo doentio, mas um respeito saudável por Deus, que significa um relacionamento de obediência e confiança (veja 3.14; 5.7; 8.12,13). Talvez o sentido dessa frase no versículo 18 seja “o temor a Deus fará com que tudo corra bem”. Embora a justiça e a sabedoria não possam garantir uma vida longa e feliz, elas ainda são os melhores princípios pelos quais se deve viver e conduzirão ao melhor resul¬ tado, sujeito à soberania de Deus.
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B. A justiça é elusiva (7.19-22) I 19 O valor positivo da sabedoria é enfatizado novamente no versículo 19, já que ela torna o homem mais poderoso que uma cidade guardada por dez valentes. Literalmente, é: “A sabedoria é mais forte para o sábio do que dez”. A leitura variante da Septuaginta é “ajuda” ( boêthêsei ) no lugar de poderoso, dando o sentido de “a sabedoria ajuda o sábio”. Essa leitura é apoiada pelo frag¬ mento dos Pergaminhos do mar Morto ( ‘zr, significando “ajudar”). Não existe uma razão aparente pela qual Coélet escolheu o número dez, exceto por ser um número inteiro. Davis sugere que isso seja uma citação de um provérbio popular (2000, p. 204). Seow sugere que erros dos escribas envolvendo a divisão da palavra e a confusão nas letras (Ex.: queixo como queijo) corromperam o significado original, “a riqueza dos proprietários” (mê õser hassallitim pelo Texto Massorético mê 'ãsãrâ sallitim, dez valentes) (1997, p. 5,14). Essa emenda apoia o argumento de Seow de que a palavra valente (sallitim) realmente significava “proprietário”, na era persa (à qual ele data Eclesiastes). Porém, o texto hebraico é ambíguo quanto aos dez valentes ou “proprietários”, porque não há informação suficiente no contexto. Kriiger sugere que o termo valentes provavelmente esteja correto (2004, p. 36). ■ 20 O argumento agora oscila de volta às limitações da justiça. De acordo com o versículo 20, não existe alguém que seja demasiadamente justo, então, o esforço descrito no versículo 16 leva à destruição em partes, porque o objetivo da perfeição absoluta é inatingível, embora a justiça e a sabedoria sejam valiosas (veja Rm 3.10,23; Sl 14.1-3; 53.1-3). A palavra pecado é, geralmente, usada no sentido não religioso na literatura da sabedoria. Em vez de impiedade e rebelião contra Deus, ela tem uma cono¬ tação mais literal de errar o alvo ou deixar de alcançar o objetivo. Nesse cenᬠrio, é provavelmente o significado não religioso (um erro) que está em mente, porque, em Eclesiastes, justo está ligado mais à sabedoria do que a instituições religiosas e porque a comparação imediata é com fazer o bem. Mesmo com o significado religioso de “pecado” (que é mais amplo do que a desobediência intencional), o AT não reconhece perfeição sem pecado (1 Rs 8.46; Sl 143.2; Pv 20.9; também Sir. 19.16). Não existe uma ligação óbvia entre a universalidade dos pecados (ou erros) em 7.20 e o valor da sabedoria em 7.19. O conectivo ki (“pois”, “porque”) ge¬ ralmente indica tal ligação, mas pode também ser enfático sem conexão causal com o precedente. De forma alternativa, é possível que 7.19 seja uma inter¬ rupção, e o versículo 20 refira-se, retrogradamente, a 7.16-18. Se isso estiver
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então o versículo 20 pode ser visto como uma instrução contra uma busca extrema pela justiça, porque não existe alguém que não peque. Ginsburg conseguiu enxergar uma ligação entre os versículos 19 e 20, argumentando que ki nunca inicia um novo sujeito (1861, p. 382,383). M 21-22 A realidade da universalidade do pecado leva a alguns conselhos nos versículos 21 e 22 contra ouvir fofocas maliciosas. O sentido literal de não dê atenção a todas as palavras que o povo diz é não entregue o seu coração, às vezes, traduzido como “não apliques o coração” (ARA). Embora todos saibam como é doloroso ouvir algo ruim que foi dito sobre si, quase todo mundo está disposto a espalhar tal criticismo acerca dos outros. O conselho de Coélet, então, é que é melhor não dar atenção a todas as palavras que o povo diz, e também dar um desconto para as palavras indiscretas dos outros, sabendo que todo mundo também já foi indiscreto, como assegura o versícu¬ lo 20. Coélet refere-se às indiscrições do passado como um argumento para to¬ lerar as indiscrições dos outros, mas, ao fazer isso, ele não compactua com as indiscrições futuras (ao mesmo tempo sendo realista, sabendo que ninguém é perfeito, 7.20). Falou mal (qillaltã) é a forma intensiva (Piei) do verbo, que significa “ser pouco apreciado” (BDB 886). Um exemplo de falar mal é encon¬ trado nos insultos de Simei quando Davi fugia de Absalão (2 Sm 16.7,8). correto,
C. A sabedoria é elusiva (7.23,24) I 23-24 Coélet
tópico das limitações da sabedoria tradicional ensinando com foco no caráter elusivo da sabedoria. Coélet, que testou a du¬ rabilidade da satisfação do prazer (veja 2.1), agora diz que testou a inatingibilidade da sabedoria. Ele não passa no teste e chega à mesma conclusão que Jó 28.12-22 e Provérbios 30.1-4. Assim como a mulher forte de Provérbios 31, a sabedoria absoluta não pode ser encontrada (Pv 31.10). Ao final, “quem a achará?” (quem pode descobri-la? Ec 7.24; veja também Sir. 24.28,29; Bar. 3.14-23). A expressão tudo isso parece referir-se às observações em 7.15-22, mas pode também se referir ao conteúdo dos versículos seguintes. A esquivança da sabedoria é reiterada no versículo 24 com a expressão muito profunda, que é, literalmente, “funda, funda” ( ãmõq 'ãmõq), usando a repetição para indicar o superlativo. Profunda e “profundo” representam dimensões horizontal e vertical, que concordam com o horizontal ( wêlãtur, “explorar”) e o vertical (lidrôs, “estudar”) do exame de todas as coisas em 1.13.
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retorna ao
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D. Existe o juízo; a justiça e a sabedoria são superiores (7.25-29) M 25 Coélet dedicou-sc a aprender (sãbab; veja também 2.20) para conside¬ rar outros tópicos mais profundamente e, agora, ele volta-se para compreen¬ der (veja 2.12) a sabedoria e até examinar a insensatez da impiedade, assim como havia investigado o prazer e a riqueza nos capítulos 1 e 2. Uma das coisas que ele está procurando é a razão de ser das coisas {hesbôn). Essa é uma palavra importante em Eclesiastes, mas é usada de diversas formas. Assim como uma boa parte do vocabulário de Coélet, essa é uma pala¬ vra comercial e significa “cálculo, conta” (Sir. 42.3 e o Talmude; Murphy, 1992, p. 74). Ela é usada no sentido de “uma avaliação considerável da vida, isto é, onde se chega após um deliberado processo de balanço” (veja Ec 7.27,29; 9.10; Machinist, 1995, p. 170). Essa é uma das palavras cuja ocorrência Seow identi¬ fica no quinto século a.C. em textos aramaicos egípcios (mas que não ocorrem antes do quinto século, sugerindo, assim, uma data pós-exílica para Eclesiastes) (1997, p. 13). Talvez a melhor compreensão de hesbôn, nesse contexto, seja “resposta”. Existem muitas perguntas legítimas na vida, e Coélet está tentando alcançar o público jovem, que começa a questionar as respostas padronizadas. Assim como eles, Coélet estava procurando a resposta. Para ser uma busca completa, ela deveria envolver o conhecimento da toli¬ ce e da loucura, assim, talvez, impediria que outros caíssem nessas armadilhas. Coélet já sugere o resultado fornecendo adjetivos negativos: a insensatez da impiedade e a loucura da insensatez. As palavras insensatez e loucura pos¬ suem o mesmo radical com combinações diferentes de letras {ksl; skt). I 26 Embora a sabedoria absoluta não possa ser encontrada (7.23,24), uma amargura pior do que a morte pode ser encontrada quando alguém experi¬ menta a impiedade e a loucura. O significado de mais amarga do que a morte pode ser “mais forte do que a morte”, já que mar tem esse significado em Ezequiel 3.14. É o amor que é tão forte quanto a morte em Cantares 8.6 (usando um vocabulário diferente). A amargura é resultado do laço, da armadilha e das correntes que surgem em associação com certa mulher. O laço (mãsôd) é um cerco em 9.14; em Provérbios (7.22,23; 22.14), a mulher adultera conduz os insensatos ao laço. As correntes ( 'ãsúr) estão associadas às armadilhas de Dalilapara Sansão com cordas novas (Jz 16.11,12), mas são positivas em Can¬ tares 7.5, em que o rei fica cativo no cabelo de uma mulher. Fox pensa que isso é uma declaração contra as mulheres em geral ( 1999, p. 269). Isso seria plausível vindo de uma sociedade patriarcal do mundo bíblico
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no qual Adão culpou Eva pelo seu pecado, e Zacarias 5.8 personificou o mal como uma mulher num cesto (veja também Sir. 25.24; 42.13,14; 1 Tm 2.14; o Testamento dos Doze Patriarcas). Entretanto, esse não é necessariamente o objetivo de Coélet aqui. Em outras partes, ele é positivo quanto às mulheres (“a mulher a quem você ama”, 9,9). Eclesiastes 7.26 usa o artigo definido (a mu¬ lher) e parece estar usando o termo como uma personificação da insensatez, assim como a sabedoria é frequentemente personificada como uma mulher (Pv 1.20-33; 8.1 9.6; 9.13-18; e provavelmente 31.10-31; veja também Sir. 6.2431; Kruger, 2004, p. 147; Bartholomew, 2009, p. 266). Aquele que escapa do laço da insensatez é o que agrada a Deus. Aquele teme a Deus (veja v. 18) talvez aqui seja visto aqui como alguém que agrada que a Deus. Krúger sugere que as expressões opostas homem que agrada a Deus e pecador não sejam categorias morais, mas refiram-se a indivíduos sortudos e sem sorte (2004, p. 146). Pecador ( hôtê ’), geralmente, não é religioso na litera¬ tura da sabedoria, mas tem o significado literal de errar o alvo. ■ 27 O versículo 27 parece prover a resposta para a busca expressa no versí¬ culo 25. A resposta para a limitação da retribuição, da justiça e da sabedoria é buscar essas coisas no temor de Deus (v. 18), porque a alternativa da impieda¬ de e da insensatez conduz a uma grande amargura. É necessário um pouco de investigação; deve-se comparar uma coisa com outra (lit., uma a uma) para achar a causa (razão de ser). Isso equivale à expressão “colocar a cabeça para funcionar”. A doutrina da retribuição pode não ser absoluta, mas a impiedade, não obstante, conduz à amargura (v. 26) ou à morte (v. 17). I 28 O tema de procurar sem conseguir encontrar prossegue no versículo 28, embora o sujeito da procura seja diferente. Neste caso, um homem digno foi encontrado entre mil, mas uma mulher justa não foi encontrada (a palavra digno não está no texto hebraico em nenhum dos dois casos). Isso parece sugerir que a justiça seja elusiva para todos, é mais elusiva para as mulheres do que para os homens. Isso também pode significar que, no julgamento de Coélet, os homens sejam um pouquinho melhores do que as mulheres. Não seria surpreendente que alguém da época e da cultura de Coélet fizesse uma declaração negativa sobre as mulheres (e até alguém dos tempos mais moder¬ nos, ex.: Delizsch, 1875, p. 335). Esse não é o tom do livro como um todo, apesar de, assim como outras literaturas da sabedoria, Eclesiastes pareça ser direcionado principalmente aos homens. Esse também não é o tom da Escritura como um todo, que, embora reflita a cultura patriarcal da qual surgiu, tende a elevar o lugar das mulheres acima das culturas às quais se dirigia.
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Algumas sugestões plausíveis têm sido feitas para explicar a presença des¬ possível que o ditado completo seja uma citação de um pro¬ vérbio popular (não bíblico). Esse tipo de argumento foi usado por Jerônimo (Ginsburg, 1861, p. 103). Eclesiastes realmente contém outros provérbios que parecem ser citações, e eles geralmente são inclusos para que Coélet possa rejeitá-los. Se 7.28 contiver um provérbio citado, então a rejeição deste será assinalada pela nota introdutória sobre não encontrar o que ele repetidamente tentava encontrar em sua vida. Logo, Coélet procurou a verdade do provérbio, mas descobriu que ele era falso (Lohfink, 2003, p. 103). Os homens retos não são mais fáceis de achar do que as mulheres. Entretanto, isso é um desvio do tópico do capítulo (Seow, 1997, p. 265). O uso da palavra ãdãm geralmente é genérico para todos os seres huma¬ nos (há outras palavras como “varão”; 'is, zãkãr). Coélet usa somente 'ãdãm no sentido genérico em outras partes (contra Whybray, 1989, p. 127), que apoia a teoria de que ele não é o autor de um provérbio que degrada a mulher. De qualquer forma, o provérbio não exalta o homem muito acima da mulher, já que somente um homem digno é encontrado entre mil, isto é, praticamente nenhum. Outra sugestão plausível é que um escriba tenha acrescentado um provér¬ bio aqui pensando que fosse apropriado ao contexto, quando não é (veja Why¬ bray, 1989, p. 126). A referência à mulher do versículo 26 pode ter sido mal interpretada como uma referência a todas as mulheres, em vez da personifica¬ ção da insensatez (ou uma referência à mulher adultera). Logo, um provérbio misógino foi inserido, possivelmente, primeiro, à margem, o que depois, nas cópias posteriores, levou à confusão do que pertencia ao texto. Não existem cópias de Eclesiastes que apoiem essa teoria, mas esse tipo de erro é bem co¬ nhecido de outros casos. Outra grande probabilidade é que a palavra mulheres seja uma metáfora no versículo 28, como aparentemente foi no versículo 26. Ali, ela personificava a loucura e, aqui, ela parece personificar a sabedoria (Pv 9.13-18; 1.20-33; 8.1 9.6; Bartholomew, 2009, p. 267). Essa Dona Sabedoria é difícil de ser encontrada (veja Pv 31.1) e só pode ser encontrada em uma pessoa ( 'ãdãm) entre mil, mas, entre as outras 999 (entre as mulheres, békol’êlleh), a sabedoria (uma mulher digna) não é encontrada. Essa interpretação seria fortalecida por uma emenda da primeira palavra no versículo 28, de 'ãser (“que, o qual”) para 'issâ (“mulher”) (Fox, 1999, p. 270). Isto resultaria na frase: Eu mesmo tenho procurado a Dona Sabedoria, mas não a encontrei. Uma pessoa entre mil encontrei (que tem sabedoria), mas não encontrei a Dona Sabedoria entre sa declaração. É
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todas as demais pessoas. Isso é consistente com a visão de Coélet quanto à esquivança da sabedoria nos versículos 23 e 24 e em outros.
Louise Erdrich sobre Coélet e as mulheres (1995) Existe um mistério no prazer que Coélet tem em tudo, mas uma in¬ capacidade de amar ou pelo menos de respeitar o sexo oposto é uma vergonha para qualquer inteligência complexa. Alguém disse não a esse sujeito, ou ele foi rejeitado, gentilmente descartado. Ele usou isso como uma desculpa para escrever seus três versículos hipócritas, arrogantes e maléficos da diatribe. Os homens foram feitos por Deus, conclui ele, mas não há uma boa mulher entre mil (In: Christianson, 2007, p. 201).
H 29 No versículo 29, o tema de inquirir e a busca que resultou em encontrar a amargura (v. 26)
resultaram também em uma descoberta mais positiva, a sa¬ ber, Deus fez os homens justos. Embora o vocabulário seja diferente, existe uma ligação íntima entre ser reto (sedeq) e ser justo (yãsãr) . A retidão, embora elusiva, deve ser buscada (mas não a ponto da autodestruição, 7.16), porque esse é o estilo de vida que Deus ordenou. Embora Deus tenha feito as pessoas para servir-lhe em retidão e sabedo¬ ria, todas continuam a procurar respostas alternativas (“artifícios”, hissébõnôt) que só levam à amargura, à insensatez e à loucura. A realização é uma dádiva de Deus, é um fim em si mesma quando tememos a Ele. A resposta (hesbôn, “a razão de ser”, 7.27) pode ser encontrada bem facilmente. A busca infindável pelas recompensas da retidão levará à autodestruição (v. 16).
A PARTIR DO TEXTO
0 mistério da retribuição No mundo simplificado de instruções para crianças, como se encontra no livro de Provérbios, a realidade e os méritos do juízo, da justiça e da sabedoria estão presentes de uma forma que não é acreditável pelos adolescentes que co¬ meçam a enxergar anomalias e podem desenvolver tendências de tornarem-se cínicos. Para esse público, Coélet é honesto sobre as limitações dos valores que
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são ensinados às crianças, mas ele não defende o cinismo, que vai muito longe na direção oposta. Em vez disso, ele continua a defender o valor da sabedoria e da retidão em um mundo complexo e a alertar o seu público para o laço que espera pelo ímpio e pelo tolo, embora essa armadilha possa, por um instante, estar escondida. O caminho de Deus ainda é melhor do que os artifícios que as pessoas estão continuamente inventando para burlar a soberania de Deus. O NT trata da esquivança do juízo prometendo um julgamento escatoIógico final para todos (Hb 9.27). O caráter elusivo da justiça é tratado como um convite à sinceridade do coração. Isso se resume numa justiça que excede a hipocrisia dos fariseus (Mt 5.20; veja Mt 5.6). A resposta para a esquivança da sabedoria é tão simples: “Peça-a a Deus (...) e lhe será concedida” (Tg 1.5).
0 temor de Deus Os benefícios da doutrina da retribuição são para os que são justos e sábios, mas Coélet desafia a possibilidade de justiça no sentido absoluto, e também a busca por essa justiça, que leva ao desespero ou à hipocrisia. Ao contrário, ele
defende a vida debaixo do temor de Deus e reconhece que os artifícios huma¬ nos têm distorcido a justiça dada por Deus (v. 29). Paulo citou Eclesiastes 7.20 (não há um só justo na terra) em Romanos 3.10 e, depois, prosseguiu, ligando a falta de retidão à falta de temor a Deus (Rm 3.18; veja Ec 7.18). A ênfase no temor a Deus faz parte do tradicional ensino da sabedoria. Isso é mencionado em Eclesiastes cinco vezes e, de acordo com Crensaw, tem vários significados (1987, p. 156, citando Pfeiffer). A “admiração na presença do terrível poder, o numinoso”, é encontrada em 3.14, 5.7 e 7.18, enquanto a devoção religiosa é mais importante em 8.13 e 12.13. Entretanto, a ligação com as dádivas de Deus e com o ato de guardar os mandamentos pareceria colocar 3.l4el2.13na categoria de devoção religiosa. Porém, desobedecer aos mandamentos de Deus pode ser perigoso, e também há julgamento no contex¬ to de 12.13. O temor do terrível poder de Deus também pareceria relevante para 5.7 (Deus pode ficar irado), 7.18 (fala sobre ser demasiadamente ímpio) e 8.13 (Deus reduzirá a vida do ímpio).
A sabedoria Em resposta à busca demasiadamente confiante na sabedoria, Coélet ad¬ verte que ela é muito profunda (v. 24). A sabedoria é um guia útil na vida (v.
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25), mas não é algo que pode ser facilmente obtido e no qual se pode confiar para controlar os resultados da vida. A sabedoria não é um meio para um fim material, mas uma expressão do relacionamento correto para com Deus.
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X. OS DIAS DOS ÍMPIOS NÃO SERÃO LONGOS (8.1-17) POR TRÁS DO TEXTO O capítulo 8 dá continuidade aos temas importantes do capítulo 7: o valor da sabedoria, embora elusivo; a natureza se esquiva da justiça, embora o capí¬ tulo 8 expresse a confiança de que a justiça esteja vindo. O capítulo 8 também introduz instruções para a conduta diante do rei (que é soberano) e exalta a alegria. Muitos desses temas também serão explorados no capítulo 9, o qual, mais uma vez, expressa menos confiança acerca da certeza da justiça. O período pós-exílico viu a elevação dos imperadores cujo poder era absoluto (veja a Introdução). Eclesiastes 8.2-4 aconselha a obediência a esses ditadores. O conselho de Coélet sobre como aproximar-se do rei sugere que o livro não seja especificamente direcionado aos reis ou aos nobres, mas também ao pobre. Seu público tem acesso ao rei e tem oportunidades; pode lançar pão (11.1); pode acumular riquezas (5.13). O gênero do capítulo 8 é uma coleção solta de provérbios (v. 1,6-8), introdução (v. 2-5) e reflexão (v. 9-17). O capítulo começa com uma pergunta
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retórica. A repetição da palavra encontrar no versículo 17 mostra que a busca frustrada enfatizada no capítulo 7 ainda está em foco. A falta de sucesso humano nessa busca é contrastada com o tempo (v. 6) e a soberania (v. 17) de Deus. Os versículos 1-17 podem ser esboçados como segue: A soberania do rei (8.1-9) O mistério da retribuição (8.10-15) A soberania de Deus e a limitação da sabedoria (8.16,17)
NO TEXTO
A. A soberania do rei (8.1-9) 11 O capítulo 8 começa com a pergunta retórica Quem é como o sábio?, a qual tem a resposta implícita: “Ninguém”. É um professor de sabedoria assim que sabe interpretar as coisas (pêser dãbãr). A palavra usada para interpretar ( pêser) é aramaica e, portanto, é consistente com a origem pós-exílica ou do norte do livro (Ginsburg, 1861, p. 390). Pêser é comum no texto aramaico de Daniel, mas só é encontrado aqui no texto hebraico. A presença incomum da letra he, em como o sábio (kéhehãkãm), sugere que um erro gráfico possa ter levado a uma divisão incorreta da palavra {kéhehãkãm, em vez de kõh hãkãm, significando “tão sábio”, Murphy, 1992, p. 80). A forma anterior seria positiva sobre a sabedoria, e a última exporia as limitações da sabedoria. Ambos esses pontos de vista podem ser encontrados em outros pontos de Eclesiastes, até mesmo nesse capítulo, então, escolher entre os dois é difícil. É possível que a pergunta retórica Quem sabe interpretar as coisas ? tam¬ bém tenha a resposta implícita: “Ninguém”. Embora os professores da sabedo¬ ria sejam peculiares, existem certas coisas que eles não podem interpretar ou, talvez, nem eles conheçam o significado da vida em geral. Isso se encaixaria no criticismo de Coélet quanto à sabedoria tradicional (ex.: 6.8). Também é possível que ele esteja referindo-se a algo específico que os professores da sa¬ bedoria não podem interpretar, a saber, o provérbio que segue: A sabedoria de um homem alcança o favor do rei e muda o seu semblante carregado (Hertzberg, citado por Whybray, 1989, p. 129). Há mais de uma maneira de se interpretar um provérbio, então, isso pode trazer alguma dificuldade para um professor de sabedoria. A sabedoria pode trazer a mudança no rosto de desespero ou preocupação (semblante carregado) para o brilho ou a alegria. O semblante carregado é
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literalmente a força do seu rosto ( 'õz pãnãyw), que BDB (739a) traduz como “ousadia, impudência”. Essa interpretação sugere que a sabedoria iluminou ( tã 'ir, mudou) aquele que era arrogante (veja Nm 6.25; Êx 34.29-35). Pode ser que alguma ambiguidade do versículo 1 seja resolvida no versícu¬ 2, lo que é sobre a conduta diante do monarca. Uma olhada de consternação ou impudência diante do rei seria perigosa, assim também (pela sabedoria) al¬ guém poderia mudar esse semblante (Fox, 1999, p. 275). B 2 Nos versículos 2-5, Coélet começa a dar alguns conselhos sobre como lidar com os reis. Ele parece falar da soberania dos reis parcialmente para fazer uma analogia com a soberania de Deus. A soberania do rei implica em certo comportamento, que é também relevante na presença de Deus (veja Barolín, 2001, p. 18). Coélet começa com o conselho: Obedeça às ordens do rei (v. 2). No tex¬ hebraico, esse é um mandamento estranho (o texto literalmente se lê assim: to Eu guardo a boca do rei). “A boca do rei” quer dizer a ordem do rei (que sai de sua boca), porém “eu” ( ’ãni) está fora de lugar no texto. Isso pode ser um erro do escriba (escrevendo 'ãni em vez do objeto direto 'et, que não tem tradução em inglês). Outras sugestões incluem o acréscimo de “eu disse” (como em 2.1; 3.17,18; também na ARC, “eu digo”), mudam “eu” ( 'ãni) para “meu filho” {béni), que é um tratamento pessoal comum na literatura da sabedoria (mas usado somente em Eclesiastes [12.12]), e também “eu” para “na presença de” ( npy), que é baseado na passagem de Ahiqar (Whitley, 1979, p. 71). Talvez a melhor solução seja usar ’ãni como um pronome enfático com a elipse do verbo “dizer”, como a NVI faz nesse versículo. A segunda parte do versículo 2 é difícil de traduzir e lê-se literalmente como: Até por causa do juramento de Deus ( wé'al dibrat sébú 'at 'êlõim). Isso já foi traduzido de diversas maneiras, incluindo porque você fez um juramento diante de Deus e “por causa do teu juramento feito a Deus” (ARA). Não está claro se Deus ou o leitor fez um juramento ao rei. Pode ser que a obediência à ordem do rei deva ser tomada tão seriamente como um juramento que alguém fez a Deus. Logo, Seow traduz: “Guarde o mandamento do rei, sim, segundo o modo do juramento secreto” (1997, p. 276). Delitzsch (1875) pensa que o versículo 2b não é original. B 3 O conselho de Coélet, não se apresse em deixar a presença do rei, é oposto ao conselho dado em 10.4 para deixar rapidamente a presença do rei, a fim de obedecer à sua ordem. É possível que não se apresse pertença ao ver¬ sículo anterior, como na Septuaginta (seguido pela RSV; Whybray, 1989, p. 130). O versículo 3 poderia, então, ser traduzido assim: Saia da presença dele,
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não fique por uma causa ruim (isso é mais consistente). Uma tradução alterna¬ tiva que segue o texto hebraico mais de perto é: Não fique desanimado diante dele (Gn 45.3; Jó 23.15; tibbãhêl, Niphal, significa geralmente “fique desani¬ mado”, enquanto BHS sugere uma emenda para o Piei, tèbahêl, que é, em geral, “apresse-se”). A causa errada pode ser uma conspiração (Odgen, 1987, p. 129). A soberania do rei é dada como a razão para não apoiar uma causa ruim diante do rei: Pois o rei faz o que bem entende. Essa expressão de soberania só é usada em outra parte do AT para Deus (ex.: Jn 1.14). Logo, Coélet parece estar comparando a soberania do rei com a de Deus, com a implicação de que Deus também deve ser obedecido. Assim como o rei, Sua “palavra é suprema”, e ninguém deve ter a ousadia de desafiar Suas ações (Ec 8.4). H 4 Os marinheiros desafiaram as ações de Jonas (Jn 1.10), mas é fútil desafiar as ações de Deus (Jó 9.12; Is 45.9; Dn 4.35). Ninguém pode dizer-lhe: “Que é que estás fazendo?”.
Henry Lok sobre a soberania de Deus (1597) Quem ousa pedir conta de sua soberana decisão, Quem não é inferior a qualquer potência da terra? Quem não cairá prostrado diante de seus pés? Quem tem o poder de corrigir os seus erros? Como auxiliares de Deus. sobre a terra eles reinam, E por sua espada de justiça mantêm o estado. (In: Christianson, 2007, p. 201,202)
15 0 benefício da obediência é expresso no versículo 5, no qual Coélet diz que mal algum (dãbãr rã ') sobrevirá àquele que obedece ao mandamento do rei. A ordem do rei parece estar em mente por causa do contexto dos versículos anteriores, que são sobre o comportamento diante do rei e também por causa
do vocabulário semelhante (obedecer; mal, dãbãr rã ‘). Porém, o uso da pala¬ vra ordens imediatamente traz à mente os mandamentos divinos e continua o duplo sentido desses versículos: a soberania pertence ao rei e a Deus. A garantia de que mal algum virá sobre aquele que obedecer é impressio¬ nantemente similar à doutrina da retribuição, que promete bênção para o justo e foi desafiada por Coélet (até mesmo nesse capítulo). Contudo, Coélet ainda retém certo grau de respeito pela doutrina, embora ele veja as complexidades da vida que a tornam inconstante.
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Os benefícios da obediência ao rei são conhecidos pelo coração sábio que também sabe a hora e a maneira certa de agir, literalmente, tempo e justiça. Isso vem seguindo do capítulo 3, no qual o momento de diversos acontecimen¬ tos é estabelecido por Deus. O capítulo 8 acrescenta que a pessoa sábia conse¬ gue discernir a hora certa do acontecimento. A palavra “e” (a hora e a maneira certa de agir) não se encontra na Septuaginta; logo, o entendimento adequa¬ do pode ser a hora da justiça (ou do julgamento), isto é, quando os resultados da obediência ao rei (e a Deus) serão revelados. Ginsburg identifica isso como hendíadis, dois substantivos ligados por uma conjunção para expressar uma ideia só (1861, p. 395). Será que o coração sábio realmente sabe quando Deus trará o juízo ? Isso pode ser um exemplo de Coélet introduzindo uma sabedoria tradicional com o propósito de refutá-la (veja 8.7). H 6 Coélet volta a desafiar o conhecimento da hora da justiça (v. 6) e até da certeza da justiça (v. 7) do rei e de Deus nos próximos versículos. Porque, para todo propósito, há tempo e modo; porquanto o mal do homem é grande sobre ele. O mal da humanidade, ou o sofrimento de um homem, é isto: ele não sabe a hora da justiça, nem mesmo se haverá justiça (v. 7). A doutrina da retri¬ buição, embora largamente aceita, não pode ser confiada para operar em cada caso ou no momento certo (v. 11). H 7 Enquanto 8.5 estava otimista sobre um coração sábio que conhecia a hora do julgamento, o versículo 7 nem tanto, e concorda mais com a noção de Deus controlando os tempos e as estações no capítulo 3. I 8 A operação primária da retribuição divina no pensamento do AT era a morte. Já que não havia uma visão significativa de uma vida após a morte no antigo Israel, a bênção era experimentada por meio de uma vida longa e pacífi¬ ca, enquanto o castigo vinha por meio de uma morte fora de hora (e presumi¬ velmente violenta). Contudo, Coélet observa que ninguém tem poder sobre o dia da sua morte (v. 8), nem mesmo o sábio ou o justo. Esse acontecimento inevitável e final depende apenas da soberania de Deus. Isso já foi citado em 3.2, juntamente com a soberania de Deus sobre a hora do nascimento. As pessoas não podem controlar a morte, assim como não podem conter o espírito. A palavra hebraica usada para espírito (rúah ) é a mesma usada para “fôlego” ou “vento”. Isso leva a um duplo sentido. As pessoas não podem con¬ trolar a hora da morte, porque não podem garantir que continuarão a respirar. No primeiro significado, espírito parece primário e relembra a discussão sobre os movimentos do vento (1.6) e o refrão concernente a correr atrás do vento (ex.: 1.14,17; 2.11,17,26). Contudo, na medida em que o leitor prossegue, o
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significado de “fôlego” torna-se primário enquanto o dia da morte aproxima-se (veja 3.19,21; 12.7). Ninguém era dispensado da batalha final da morte, assim como ninguém podia escapar dos efeitos da guerra. Na era persa, havia dispensa do serviço militar para aqueles que pudessem pagar por um substituto (Seow, 1997, p. 28,29). Deuteronômio também fornecia dispensa do serviço militar (20.58; 24.5). No entanto, não há como ser dispensado da morte. Rashbam lê isso como uma impossibilidade de enviar uma delegação para atrasar a chegada do anjo da morte (rabi medieval Shmuel, filho de Meir; Japhet e Salters, 1985, p. 170). Se isso for verdadeiro para os justos e sábios, certamente também será para os ímpios. Pois, nem mesmo a maldade livra aqueles que a praticam. A introdução da guerra é, em geral, tida como uma comparação hipotéti¬ ca, mas pode ser que signifique literalmente uma forte causa de morte e uma possibilidade real nas eras pós-exílicas. Não há dispensa da guerra, não só para os soldados, mas também para os civis que são pegos no campo de batalha. A hora da morte, e, logo, a operação da retribuição, é desconhecida no campo de batalha (veja Davis, 2000, p. 208). 19 Essas são as reflexões que Coélet tinha em sua observação de tudo o que se faz debaixo do sol. A desumanidade que ele testemunhou parecia ficar sem castigo. A palavra usada para a expressão domina sobre outros ( sãlat) é im¬ portante no argumento de Seow do período persa para a datação de Eclesiastes (1997, p. 14). Contudo, Kriiger contesta que a definição de Seow de “direito de dispensa” esteja provavelmente incorreta em 8.9 (2004, p. 36). O uso aqui é a definição normal de “governar sobre”, mas é possível que a tradução de Seow esteja correta (“pessoas exercitam a apropriação sobre outras”) (1997, p. 276). Não há evidência suficiente para determinar o significado exato aqui (como em 7.19). A última frase, para a sua própria infelicidade, também pode ser interpretada como trazer o mal sobre o oprimido, e não sobre o opressor.
B. O mistério da retribuição (8.10-15) H 10 A expressão inicial nessas ocasiões ( úbêkén) mostra a continuidade en¬ os versículos 9 e 10, embora alguns comentaristas considerem o versículo 10 como o início de uma nova unidade (Kriiger, 2004, p. 158). Coélet afirma que viu os ímpios serem sepultados como um exemplo do resultado da retri¬ buição (v. 10). Isso não é uma referência a uma morte merecida, fora de hora, mas a um sepultamento decente que eles não mereciam. O sepultamento era um sinal de honra, e essa cortesia não deveria ser prestada ao ímpio (veja 6.3). tre
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Isso é, de alguma forma, uma mudança do tópico 8.1-9, mas é um exemplo do resultado da retribuição e uma extensão da soberania real para a soberania divina. Aquelas pessoas que receberam o sepultamento não só eram ímpias, mas também hipócritas, já que elas “eram elogiadas, e isso na mesma cidade onde haviam feito o mal” [NTLH]. A tradução “eram elogiadas” (wéyistabbéhú) se¬ gue uma minoria de manuscritos, mas faz melhor sentido do que “foram es¬ quecidas” ( wéyistakkèhú), como no texto hebraico massorético (a não ser que haja uma rápida mudança de sujeito, de ímpio para justo). Aparentemente, houve uma confusão caligráfíca com as consoantes bet e kaf, que parecem simi¬ lares em hebraico. O versículo 10 encerra-se com esta declaração: Isso também não faz sen¬ tido {bebei), que quer dizer “misterioso, incompreensível”. Não faz sentido que o ímpio seja recompensado desse modo. I 11 O problema todo piora pelo fato de que, quando os crimes não são castigados logo, o coração do homem se enche de planos para fazer o mal, o que leva os ímpios a encherem o coração com artifícios para fazer o mal. Já que a ação da retribuição não é óbvia e imediata em muitos casos, os ímpios continuam com suas opressões, porque parecem estar saindo impunes. A pala¬ vra castigados {pitgãm) é um dos dois exemplos de palavras persas usadas em Eclesiastes (também usada em Et 1.20; Ed; Dn). O sentido literal é palavra (Ed 5.7; BDB 834, p. 1109), a qual, quando vem do rei, é por definição, decreto ou sentença. Esse tem sido um importante indicador de uma data pós-exílica para o livro. A falta de divina retribuição na hora certa pode ser uma alusão às injus¬ tiças do sistema jurídico contemporâneo. Em um texto aramaico de Elefantina (Egito), um plebeu reclamou de que o trabalho do campo não era remunerado, e que “os juízes da província” não faziam justiça (Seow, 1997, p. 34). 112 A vida longa do ímpio é uma anomalia. Enquanto o ímpio ou o “peca¬ dor” {hõte ’) é geralmente usado no sentido não religioso na literatura da sabe¬ doria, este parece ser usado aqui no sentido religioso (veja 2.26; 7.26; 9.2,18). Esse não é apenas um tolo confuso, mas um pecador que merece morrer (Fox, 1999, p. 286). A primeira parte do versículo 12 apresenta alguma ambiguidade. A frase o pecador faz o mal cem vezes (o ímpio pode cometer uma centena de crimes) pode ser “cem crimes” (NTLH) ou pode significar “um grandíssimo mal” (veja Gordis, 1968, p. 297). A sugestão de Ginsburg, “cem anos”, é atraente, porque combina com a falta de retribuição, isto é, uma vida longa para o ímpio (1861, p. 403). A palavra prolonguem {uma 'ãrík lô, vida longa) provavelmente significa
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que os ímpios, de modo presumível, prolongam sua vida, apesar de que, segun¬ do a doutrina da retribuição, eles devessem morrer cedo (ex.: Pv 10.21). Contudo, diante de toda essa evidência ao contrário, Coélet não consegue desistir da doutrina da retribuição (como ele já demonstrou). Embora não haja uma correlação simples entre a impiedade e a morte prematura, Coélet ainda está convencido de que as coisas serão melhores para os que temem a Deus, para os que mostram respeito diante dele. Apesar das limitações da justiça e da sabedoria e do mistério da retribuição, os benefícios de temer a Deus ainda ultrapassam os da impiedade e os da opressão. 113 O versículo 13 está em direta contradição com o versículo 12, embora use o vocabulário do versículo 12. A vida do pecador é prolongada (“ter vida longa”, ma 'ãrik, v. 12), e a vida do ímpio não será prolongada (seus dias (...) serão poucos, lõ '-ya 'ãrik, v. 13). É possível que um escritor se contradiga, até mesmo no próximo fôlego. Às vezes, isso ocorre para dar algum efeito, e, às vezes, é porque o escritor está em conflito sobre que posição tomar. Uma ex¬ plicação alternativa é que o editor acrescentou o versículo 13 com a intenção de balancear o versículo 12 com uma perspectiva mais ortodoxa. Eclesiastes 8.12b,13 encaixa-se na teologia do epílogo (12.14), que provavelmente foi acrescentada pelo editor. Isso levou Barton à conclusão de que 8.12b,13 tam¬ bém possa ser um acréscimo (1908, p. 154). Contudo, a teologia do epílogo encontra-se em outra parte do livro, exceto na chamada para obedecer aos mandamentos (12.13). Outra possível explicação para as contradições é que a sabedoria tradicio¬ nal foi citada com o propósito de ser refutada. Já que o hebraico não possui aspas, fica difícil saber quando há uma citação (se o escritor deseja esclarecer isto, então certo vocabulário é disponível, mas nem todas as citações são assina¬ ladas). Uma explicação semelhante é o raciocínio “sim..., mas”, no qual Coélet está dizendo: “Sim, aquilo é verdade, mas isto também é verdade”. Essa é a solu¬ ção de Hertzberg e Zimmerli (citado por Kriiger, 2004, p. 160). Todas essas possibilidades podem ser defendidas pelas evidências dispo¬ níveis. A última tem a vantagem de dar sentido ao texto como é apresentado a nós (o que é preferível, a não ser que haja indicações claras de um acréscimo [ex.: o uso da terceira pessoa em 1.1]). O livro como um todo faz sentido se Coélet for visto como um professor da sabedoria que deseja matizar o ensino tradicional da sabedoria, mas não o abandonar completamente. Embora ele veja grandes anomalias na doutrina da retribuição, não consegue abandoná-la totalmente. Ele não consegue dizer (pelo menos não diz) como o ímpio será co¬ brado, não obstante, ele se apega à sua crença e nunca se arriscaria a abandonar
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a justiça e a sabedoria (Crenshaw admite esse ponto de vista, mesmo que seja a visão da comunidade responsável pela edição final, e não do próprio Coélet; 1987, p. 156). H 14 Esse mistério é declarado sem sentido duas vezes no versículo 14 (no sentido de “incompreensível”). A retribuição não está funcionando, embora devesse (e certamente irá) funcionar. Existe uma variação no universo desse mistério. Em vez da frase comum “debaixo do sol” (29 vezes [ex.: 1.3]), usou-
-se: na terra ( 'al-hã 'ãres). 115 À luz dessa anomalia, aliás, uma contradição na vida, Coélet faz uma re¬ comendação: desfrute a vida. Os dias da vida de alguém não podem ser contro¬ lados pela justiça ou pela sabedoria. O tempo de vida de alguém é um presente de Deus. Portanto, a justiça e a sabedoria não devem ser buscadas por causa das recompensas, mas porque são a coisa certa de se fazer para temer a Deus e des¬ frutar de qualquer que seja a porção que Ele nos tem dado na vida. Vida longa ou riqueza não são melhores do que isso. Não há nada melhor debaixo do sol. A soberania de Deus não permite o controle humano do destino por meio da retribuição ou por quaisquer outros meios. Contudo, Ele frequentemente cas¬ tiga o pecado, sim, e a pessoa sábia obedecerá a Deus, assim como obedeceria ao rei (8.2).
Esse desfrute é diferente do prazer (íimhâ, o mesmo vocabulário) que foi buscado no capítulo 2, que era uma vida onde o vinho satisfazia a carne ( bayyayim 'et-bèsãrí), e de riquezas e posses. Aqui, em 8.15, a alegria (simhâ ) é comer e beber aquilo que Deus proveu (não com excesso) e desfrutar o traba¬ lho (e não as férias).
C. A soberania de Deus e a limitação da sabedoria (8.16,17) I 16-17 Os dois últimos versículos desse capítulo reiteram o ponto de que a sabedoria e o trabalho são limitados. Eles não podem conduzir ao controle ou à compreensão, porque estes pertencem a Deus somente. Por mais que se esforce para descobrir o sentido das coisas, o homem não o encontrará (v. 17). Todas as buscas são infrutíferas, e, ao final, deve-se aceitar a soberania de Deus e desfrutar a porção da vida que lhe foi entregue. A frase cujos olhos não veem sono (v. 16) é incomum. A expressão mais comum no AT é: “Não se entregue ao sono” (Pv 6.4; SI 132.4; Gn 31.40).
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Não ver o sono tem paralelos nos textos latinos de Terêncio e Cícero (Barton, 1908, p. 157). Os versículos 16 e 17 pertencem a si mesmos, já que o quando do versícu¬ lo 16 (prótase) é resolvido no então do versículo 17 (apódose). O versículo 17 reitera a limitação da sabedoria à luz da falta de compreensão humana. Outro aramaísmo ocorre nesse versículo (bésel 'ãser, por mais que; veja Jn 1.7,12; Whitley, 1979, p. 77). A palavra para sábio (hãkãm) parece ter um sentido téc¬ nico de um professor da sabedoria aqui, embora seja geralmente usada no AT em um sentido mais geral (ex.: Gn 41.33; Ec 2.14-16; Crenshaw, 1987, p. 34).
A PARTIR DO TEXTO
Sabedoria: valor e limitações O capítulo 8 começa com uma declaração muito positiva sobre a sabedoria: ela faz brilhar o rosto. Embora as declarações positivas sobre a sabedoria já tivessem sido feitas (ex.: 2.13,14), essa afirmação positiva ainda é surpreenden¬ te, considerando-se os árduos esforços de Coélet para matizar o valor da sabe¬ doria e, consequentemente, da doutrina da retribuição. Esse capítulo também traz advertências sobre as limitações da sabedoria (v. 17).
A soberania dos reis e de Deus A soberania de Deus é um tema importante em Eclesiastes e é, geralmente, ilustrada com referência a um rei terreno. A incapacidade do ser humano de controlar os resultados é evidente nas consequências da doutrina da retribui¬ ção e na incapacidade de fazer ao rei ou a Deus a seguinte pergunta: Que é que que estás fazendo? (v. 4). Isso é uma advertência àqueles que tentam usar a doutrina da retribuição para manipular Deus, para que Ele proveja bênçãos materiais. A justiça deve ser uma expressão do temor a Deus, e não um meio espiritual para um fim material. Duas áreas da vida em particular que não podem ser controladas são a hora
da morte (v. 8) e o conhecimento do futuro (v. 7).
O mistério da retribuição No mundo perfeito dos mestres da sabedoria, como é apresentado para os jovens em seu período de formação, a justiça leva a uma longa vida de bênção, enquanto a impiedade conduz à destruição e à morte prematura. Entretanto, no mundo real, pode-se frequentemente observar os justos recebendo o que os
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ímpios merecem (v. 14). Não obstante, o rei deve ser obedecido, e Deus deve ser temido, já que nem mesmo a maldade livra aqueles que a praticam (v. 8). Existe justiça (uma hora certa, v. 6) para tudo, e, embora a hora e o método da justiça possam estar além da compreensão (v. 17), os dias dos ímpios, como sombras, serão poucos (v. 13).
Desfrute a vida A sabedoria e a justiça são elusivas, e a soberania de Deus e do rei é ines¬ crutável. O único plano de ação destinado à pessoa comum é desfrutar a vida (dentro dos limites da obediência e do temor a Deus), pois não há nada melhor (v. 15).
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XI. 0 MESMO DESTINO SOBREVÉM A TODOS (9.1-18) POR TRÁS DO TEXTO O capítulo 9 dá continuidade ao argumento de Coélet com mais reflexões sobre a injustiça na vida. Os temas do capítulo 9 são quase os mesmos do capí¬ tulo 8. O capítulo 9 apresenta o caráter elusivo da justiça sem o otimismo do capítulo 8. O capítulo 9 também continua o tema da soberania de Deus. Co¬ élet valoriza a sabedoria, mas considera-a ineficiente, porque existem aqueles que a desprezam (o capítulo 8 enfatiza a esquivança da sabedoria). A narrativa da cidade sitiada em 9.13-16 pode ter sido baseada em uma situação histórica. Porém, há poucas dicas quanto à história específica em Eclesiastes, e a maioria dos eruditos agora concorda que esse relato seja um exemplo fictício. Sugestões do contexto histórico do passado incluem o cerco de Dor por Antíoco III (218 a.C.) ou Antíoco VII; o cerco de Abel-Bete-Maaca (2 Sm 20.16) ou de Bete-Sura por Antíoco V, ou o de Siracusa pelos romanos (212 a.C.). Outros sugerem que a cidade em questão possa ser Atenas ou Temístocles (Kinlaw, 1968, p. 628).
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Sheol Eclesiastes usa a palavra hebraica para submundo apenas uma vez (sé o/; 9.10), o que é incrível, considerando-se a preocupação de Coélet
com a morte. Entretanto, o AT menciona morte ou morrer mais de mil vezes, mas registra o nome Sheol menos de 100 vezes, e Eclesiastes, fre¬ quentemente, menciona a morte sem usar esse vocabulário (ex.: "Todos vão para o mesmo lugar", 3.20). Os antigos israelitas não possuíam uma visão desenvolvida sobre a vida após a morte, preferindo concentrar-se
na vida presente. Isso começou a mudar depois do exílio, e, já na época dos acontecimentos do NT, havia uma visão desenvolvida sobre a res¬ surreição entre os mestres judeus (os fariseus), embora alguns grupos
resistissem a esse novo desenvolvimento (os saduceus). O Sheol no AT não é o céu, pois acreditava-se que somente Deus morava no céu (numa consciente rejeição ao politeísmo). O Sheol também não é o inferno, já que não é um lugar de tormento ou castigo. Sua localização é variada¬ mente descrita como debaixo da terra (Nm 16.30) ou na parte inferior do oceano cósmico (Jó 26.7). É um lugar para todos os mortos, independen¬ temente de seu relacionamento com Deus (Jó 30.23), e um lugar onde todos estão livres da miséria (Jó 3.17). Não é um lugar de alegria ou de louvor a Deus (SI 6.5), mas um lugar de silêncio (SI 94.17). É uma cidade com portões (Jó 38.17), e não existe uma rua de retorno dessa cidade (Jó 16.22). Ninguém desejava ficar preso no Sheol e, assim, deixar de viver a vida (exceto Jó na hora do desespero; Jó 14.13; veja SI 49.15). É um lugar úmido e obscuro (Jó 17.13). Não se acreditava que era a alma ( nepes ) ou o espírito ( ruah ) que ficava no Sheol, mas a sombra ("os fracos", répã’ím, SI 88.10).
O gênero do capítulo 9 é a reflexão, incluindo os ditados (ex.: v. 4, um ca¬ chorro vivo é melhor do que um leão morto), a instrução (v. 7- 1 0) e a narrati¬ va de exemplos (v. 13-16). A expressão ninguém sabe é repetida com variações nos versículos 1 e 12, e as palavras destino e afetam, nos versículos 2 e 11, vêm do mesmo radical (qãrah ). Esse capítulo pode ser esboçado da seguinte forma: O mesmo destino para o justo e o ímpio (9.1-6) Desfrute a vida (9.7-10) O sucesso é imprevisível (9.11,12) Os resultados da sabedoria são imprevisíveis (9.13-18)
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NO TEXTO
A. O mesmo destino para o justo e o ímpio (9.1-6) H 1 No versículo 1, Coélet conclui que o destino humano está sujeito à von¬ tade de Deus. A palavra para conclusão (lãbâr) é exclusiva do AT. BDB (101) registra o significado como, provavelmente, “tornar claro, esclarecer, explicar” e nota a similaridade com outros verbos, como “purificar, selecionar” ( bãrar ). Grátz observou a semelhança com lãtâr (“explorar”), que é uma palavra co¬ mum em Eclesiastes (1.13; 2.3; 7.25) (citado em BDB 101). Muitas traduções antigas, porém, traduzem a palavra como “ver”. Mais uma vez, Coélet resolve em seu coração (refleti nisso) o destino do justo e do ímpio e conclui que o destino deles está nas mãos de Deus. A sa¬ bedoria e a justiça não garantem o escape do destino à morte. Além do mais, ninguém sabe se Deus responderá com atos de amor ou ódio. Coélet observa, em seu mundo, a falha da doutrina da retribuição, que o leva a reivindicar que ninguém pode prever quem experimentará o amor ou o ódio de Deus. Todos compartilham um destino comum (v. 2), a saber: a morte. fli 2 No versículo 2, Coélet resume o seu argumento de que um destino co¬ mum aguarda a todos, seja justo ou ímpio, bom ou mau, ritualmente puro ou impuro, religioso ou não. Aqui, ele justapõe as características dos que são bons e dos que são maus. Nos capítulos anteriores, ele tratou sobre os sábios e os jus¬ tos. Os bons e os maus não são tratados em outra parce, e os maus não estão no texto hebraico (mas estão na Septuaginta, em siríaco e latim). O paralelo mais próximo a esse par é o bom e o pecador nesse versículo. Os opostos de puro e impuro, o que oferece sacrifícios e o que não oferece e o que faz juramentos e o que não faz são um elemento novo, já que Eclesiastes geralmente não se re¬ fere a rituais religiosos (e também evita a menção da história de Israel). ■ 3 Coélet chama a falta de retribuição de mal, no sentido de que o destino de todos é o mesmo, isto é, a morte. Ele não tem resposta para esse proble¬ ma. O NT, mais tarde, trará novos desenvolvimentos no judaísmo que veem a resposta na ressurreição e no subsequente julgamento para todos. Coélet está preso na compreensão padrão do AT que não conhece a ressurreição, mas vê todos indo para o Sheol, o lugar dos mortos, que não é castigo nem alegria. No Sheol, não há distinção entre o justo e o ímpio. 140 versículo 4 argumenta que quem está entre os vivos tem esperança. A palavra entre (yéhubbar, literalmente, unido a) segue a leitura que é apoiada por muitos manuscritos hebraicos e traduções antigas (o texto escrito aqui, no
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Massorético, éyibbãhêr, que significa “escolhido”) (Kriiger, 2004, p. 167). Essa
leitura é positiva sobre a vida, enquanto, em outra parte, Coélet foi negativo sobre a vida. Não obstante, o próximo versículo mostrará o sarcasmo na apre¬ sentação do provérbio por parte de Coélet. Esperança é uma palavra rara ba¬ seada em um radical mais comum, significando “confiança”. A palavra é usada outra vez apenas em Isaías 36.15 (veja 2 Rs 18.30), em que significa confiança na vitória durante a batalha. O grave mal da falta de justiça fez com que Coélet dissesse em 6.3 que uma criança nascida morta era melhor do que alguém que tem falta de con¬ tentamento, mas, aqui, ele coloca a vida à frente da morte, de forma que seria melhor ser um cachorro vivo do que um leão morto. Os leões eram símbo¬ los óbvios de força no antigo Israel, enquanto os cachorros eram desprezados como necrófagos e, com certeza, não eram “o melhor amigo do homem” (ABD 6:1143; 1 Rs 14.11; 16.4; 21.19; Pv 30.30). O termo cachorro era usado como uma metáfora para os inimigos ou como zombaria (1 Sm 17.43; SI 22.16,20). Ser chamado de “cão morto” era um insulto ainda pior (2 Sm 9.8; 16.9). A comparação com um cachorro vivo e um leão morto é um provérbio popular, que chegou a um grande número de diferentes línguas e culturas (Ginsburg, 1861, p. 412). Até na cultura ocidental, onde os cães e os gatos são venerados como animais de estimação, a posição inferior do cachorro é preservada em muitos ditados.
Rabi Hiya sobre o justo enquanto vivo Meu filho, você conhece a Escritura, mas não o Midrash. POIS OS VI¬ VOS SABEM refere-se aos justos que são chamados de VIVOS mesmo em sua morte; MAS OS MORTOS NADA SABEM refere-se aos ímpios que, mes¬ mo durante a vida, são chamados de MORTOS (In: Cohen, 1983, p. 229).
150 versículo 5 retrata uma visão negativa da morte no Sheol. Os vivos, pelo menos, têm esperança de ver a justiça ser feita em sua vida ou durante a vida (v. 4), mas os mortos estão presos no Sheol (não se acreditava que eles tivessem o poder de perambular pela terra como fantasmas) e nada sabem. Para eles não não haverá mais recompensa, porque o Sheol não é um lugar de recompensa nem de castigo; não é a vida eterna, mas apenas uma morte eterna. Já não se tem lembrança deles. Há um jogo de palavras com os sons semelhantes à re¬ compensa (sãkãr), “esquecido” (niskah ) e “memória” ( zikrãm). Numa cultura
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que não tem uma visão de vida significativa após a morte, esse é um tipo muito superficial de imortalidade. Coélet condenou a falta de memória em outro lugar. Não há lembrança das coisas antigas (1.11), ou dos sábios (2.16), ou do pobre sábio que salvou a cidade (9.15). Entretanto, a falta de memória é positiva para os que recebe¬ ram o dom de Deus, pois estes não se lembrarão dos dias (difíceis) de sua vida (5.20). Mais adiante no livro, Coélet recomendará que se lembrem dos muitos dias de trevas (11.8) e que se lembrem do Criador enquanto jovens (12.1). Existe uma ironia nessa comparação entre os vivos e os mortos, já que Co¬ élet citou um provérbio em 9.4 sobre o valor da vida, só para definir esse valor no versículo 5 como o conhecimento da morte. Isso é realmente uma vantagem insignificante (Delitzsch, 1875, p. 360). 6 No versículo 1, Coélet usou o amor e o ódio como ações que partiriam de Deus como recompensa ou castigo. Na esperada justiça da retribuição, o amor de Deus corresponderia aos atos de amor pela pessoa em questão e, da mesma forma, também, para o ódio. No versículo 6, a falta dessa justiça esperada é tanta que os atos de amor e ódio são esquecidos após a morte e já não fazem diferença. Tanto os amorosos quanto os odiosos estão presos no Sheol sem
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esperança alguma de justiça. Em muitos lugares, Coélet proclamou que não há proveito a se ganhar com o trabalho, a sabedoria e a justiça. Em vez disso, as pessoas deveriam des¬ frutar a porção que Deus lhes deu, já que não podem controlar o resultado de seu futuro. Aqui, em 9.6, Coélet argumenta que os mortos não têm uma porção (parte, heleq) para desfrutar. Eles nunca mais terão a oportunidade de gozar daquilo que é feito debaixo do sol, já que não veem o sol no Sheol.
B. Desfrute a vida (9.7-10) 17 O versículo 7 é um conselho para gozar a vida. Coélet geralmente não usa o modo imperativo quando dá o conselho de desfrutar a vida (2.24; 3.12,13,22; 5.18; 7.14; 8.15; 11.8,9). O modo imperativo aqui transmite um conselho for¬ te. Outros imperativos envolviam o comportamento diante de Deus (5.1-8) e do rei (8.2,3). Então, mais uma vez, Coélet aconselha que se desfrute da comi¬ da e da bebida (9.7). Isso é o que Deus quer (“favorece”, rãsâ). É algo que pode ser mencionado em oposição ao que Deus não quer, a saber, as buscas pelo lu¬ cro ou a tentativa de controlar os resultados por meio da sabedoria e da justiça, já que Deus é soberano, e os resultados estão em Suas mãos.
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■ 8 Esse desfrute deve ser conduzido com “alegria”
(simha) e “um coração jubiloso” (leb-tôb) (v. 7). Logo, as vestimentas adequadas são roupas de festa, isto é, não as roupas de luto, ou roupas sujas do pó e das cinzas da angústia. Vestimentas reais foram usadas por Mardoqueu numa ocasião festiva (Et 8.15), e a roupa branca é usada pelo justo em Apocalipse 3.4,5; 7.9. Juntamente com a roupa de festa, Coélet aconselha que a cabeça seja ungida com azeite, o antigo equivalente do xampu ou da loção (veja Sl 23.5; 45.7; 104.15; Pv 27.9; Mat¬ thews, 1991, p. 24,26,326). 9 No versículo 9, Coélet acrescenta a alegria no casamento à sua prescrição de desfrutar a comida e a bebida. A vida é curta (sem sentido, hebet) e é uma dádiva de Deus. Portanto, qualquer que seja a porção (recompensa, helqékã) que Ele tem dado deve ser desfrutada. Não há garantia de que a justiça ou a sabedoria possam estender a vida ou a prosperidade, então, isso não deve ser a motivação do trabalho. Em hebraico, a palavra para mulher é a mesma que “esposa” ( issâ). Nesse caso, espera-se que haja o artigo definido como em “ a mulher que você ama”. Já que não há artigo no texto hebraico, o significado é, tecnicamente, “uma mulher que você ama” ( ’issâ ’âser- ’ãhabtã). Porém, Coélet não está sugerindo promiscuidade aqui. Ginsburg argumentou que, por causa da falta de artigo, o significado não é mulher, mas uma gratificação sensual sem referência ao contexto do casamento (1861, p. 417). Entretanto, isso é provavelmente ape¬ nas outro exemplo do uso errático do artigo em Eclesiastes, e os qualificadores quem você ama (“amor”, em hebraico, enfatiza atos de compromisso) e todos os dias sugerem que o que se tem em vista é uma parceira conjugal de uma vida inteira (e não qualquer mulher). Embora o amor seja temporário (v. 6), Coélet ainda o recomenda. O conselho desse versículo pode igualmente se aplicar às mulheres, mas é, de modo específico, direcionado aos homens; Coélet tem em mente um público masculino (o que é normal para os mestres da sabedoria). O conselho é semelhante ao que foi dado por Siduri, o taverneiro no antigo do¬ cumento acadiano, a Epopeia de Gilgamesh (Coélet provavelmente conhecia a narrativa; Seow, 1997, p. 64). A segunda metade do versículo 9 está faltando em alguns manuscritos, o que sugere que possa ter sido adicionada por engano. Se for assim, então as ocorrências de hebel no livro seriam 37, o que iguala ao valor numérico dessa palavra (Wright, 1980, p. 44). H 10 O versículo 10 aconselha a trabalhar duramente, porque, para onde você vai, não há atividade (...) planejamento (...) conhecimento nem sabedoria. A
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palavra vai, em conexão com Sheol (sepultura), é consistente com o uso ante¬ rior dessa palavra por Coélet para indicar a morte (1.4; 6.6). O conselho para trabalhar-se arduamente está ligado ao gozo da vida. Já que não há uma vida significativa após a morte no pensamento dele, essa vida é a única oportunida¬ de de apropriar-se das dádivas de Deus: comida, bebida, casamento e a própria vida.
John Ruskin sobre Eclesiastes 9.10 (1868) Pergunte ao trabalhador no campo, ao ferreiro ou ao minerador; per¬ gunte ao paciente, ao artesão de dedos delicados ou ao forte latoeiro de coração ardente... E nenhum deles, que são verdadeiros trabalhadores,
dirá a você que acha cruel a lei do céu: do suor do seu rosto comerá o pão, até que retorne ao chão; nem que jamais a acharam uma obediência sem recompensa, se foi prestada verdadeiramente segundo o mandamento — "Tudo o que vier à mão para fazer faça com toda a sua força" (In; Chris¬ tianson, 2007, p. 213).
C. O sucesso é imprevisível (9.11,12) I 11 O tema de 9.1-6 é repetido em 9.11,12. No primeiro, um destino co¬ mum aguarda os justos, os ímpios, os puros, os impuros, os que fazem votos e os que os evitam. A morte aguarda a todos. No segundo, o tempo e o acaso esperam ambos, os velozes e os vagarosos, os fortes e os fracos, os sábios c os prudentes. Até aqueles que todos esperam que sejam bem-sucedidos na vida são finalmente vencidos pela morte e não sabem quando esse evento ocorrerá. A prática de correr maratonas fazia parte da cultura grega, mas não da cultura hebraica. Os torneios gregos foram provavelmente introduzidos na Pa¬ lestina durante a época de Antíoco Epifânio IV (174-164 a.C.), que aprovou a construção de um ginásio (Coogan, 2001, p. 326). Na cultura hebraica, a corrida geralmente era importante na guerra, porque um soldado em fuga teria melhor vantagem se fosse um atleta mais veloz (2 Sm 2.18-23; Am 2.15), e a velocidade também era importante para os mensageiros (2 Sm 18.19-32). A próxima declaração especifica que uma batalha está em mente, já que os fortes nem sempre triunfam na guerra. Espera-se que o soldado mais forte ganhe a peleja, mas esse nem sempre é o caso. A moral da história de Davi e Golias, em 1 Samuel 17, é mostrar a superioridade do Senhor sobre Golias e sobre os
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deuses pagãos. Coélet não tem esse objetivo. O resultado inesperado é sim¬ plesmente o acaso e outra indicação da falibilidade da vida. Em outra parte de Eclesiastes, a ameaça de guerra é possivelmente a maior causa da falibilidade da teologia da retribuição (veja 3.1-8; 12.1-8). A menção específica da guerra em 9.11 sugere que o resultado da guerra seja imprevisível, assim como a guerra torna o resultado da retribuição imprevisível. Da cena da batalha, Coélet volta-se para a vida cotidiana e argumenta que a inteligência e o aprendizado nem sempre deixam os homens ricos ou dão a eles o prestígio esperado. Ao contrário, os mistérios do tempo e do acaso re¬ duzem a confiabilidade da velocidade, da força, da inteligência e da educação. Não há uma menção explícita da soberania de Deus aqui, diferentemente de 9.1, onde o justo e o sábio estão nas mãos de Deus. B 12 Porque as vantagens nem sempre produzem a vitória, ninguém sabe quando virá a sua hora. A hora da morte vem inesperadamente, como uma armadilha que cai sobre um pássaro desavisado ou como uma rede maligna (rede fatal, bimsôdâ rã a) que apanha o peixe. Semelhantemente, o mau tempo (tempos de desgraça, ét rã a) apanhará cada pessoa na morte. O tempo e as estações estão debaixo do controle de Deus (3.1-8); o tom de resignação em 3.1-8 muda para ressentimento em 9-12, assim como a hora da morte é inespe¬ rada e indesejada, algo a ser temido, assim como o pássaro alça voo a qualquer suspeita de uma armadilha. Contudo, o pássaro/peixe/homem fica enredado assim mesmo. Isso pode ser um retorno ao tema da guerra. Se a guerra cai sobre a terra, toda a população experimenta os tempos de desgraça (veja 11.2).
D. Os resultados da sabedoria são imprevisíveis (9.13-18) B 13 Apesar da hora inesperada da
9.13-18 relaciona uma história que mostra a superioridade da sabedoria que, se for seguida, pode levar a al¬ gum atraso do dia da morte. Esse exemplo de sabedoria impressionou extre¬ mamente Coélet e entra em contraste com a impotência da velocidade e da força no versículo 11. Todavia, o poder da sabedoria também é limitado, ou porque o povo da cidade não ouviu o conselho sábio, ou porque logo se es¬ queceu do sábio quando o perigo passou, de forma que a sabedoria não trouxe uma vantagem duradoura ao homem que a possuía. É provável que a falta do valor duradouro da sabedoria impressionou Coélet do mesmo modo que a superioridade da sabedoria.
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morte,
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H 14 A história é tirada de um cenário de guerra, que pode ser um dos prin¬ cipais imprevistos que Coélet vê para a diminuição da aplicação da teologia da retribuição. A história fala de uma pequena cidade de poucos habitantes, que foi atacada por um grande rei que a cercou e construiu enormes artefatos de ataque contra ela. A palavra usada para artefatos de ataque no texto hebraico tem a mesma grafia de “rede” (masôâ), usada no versículo 12. Alguns manus¬ critos hebraicos e a Septuaginta favorecem a leitura de masôr (dispositivos de guerra), em vez de masôd (erro de grafia devido à confusão entre dalet e resh), do TM. O verbo “construir” [NTLH] favorece a leitura de dispositivos de guerra {masôr) nesse versículo. H 15 Nessa situação, o poder avantajado do rei invasor deveria prevalecer, mas, ao contrário, foi encontrado um homem pobre, mas sábio, que, com a sua sabedoria, ele salvou a cidade. De modo aparente, ele realmente salvou a cidade, provando, assim, a superioridade da sabedoria sobre o poder militar,
depois, ninguém se lembrou daquele pobre. A palavra lembrar tem o mesmo sentido de “meditar em” em 12.1 (“Lembre-se do seu Criador.”). Um evento semelhante ocorreu em 2 Samuel 20.16, no qual uma mulher sábia sal¬ vou sua cidade, Abel-Bete-Maaca, lançando a cabeça de Seba por cima da mu¬ ralha para Joabe e seu exército israelita que atacava. Um homem sábio que é pobre está em contradição com a teologia da retribuição, porque a sabedoria deveria levar a certo nível de prosperidade. A palavra pobre (miskên ) é usada somente em 4.13; 9.15,16 no hebraico bíblico, mas é comum no aramaico. Isso é típico da afinidade da linguagem de Coélet mas,
com o aramaico.
■ 16 Não obstante, a sabedoria é melhor do que a força, porque a sabedo¬ ria conseguiu salvar a cidade quando a força lhe faltava e conseguiu vencer a força superior do rei invasor. Contudo, a força da sabedoria não durou muito, porque a sabedoria do pobre foi desprezada pelo povo, e não se deu mais atenção às suas palavras. A sabedoria não teve valor nem força duradouros. Embora a sabedoria seja melhor do que a força, ela é limitada naquilo que consegue alcançar. ■ 17 O rei invasor poderia estar bradando exigências de rendição enquanto sitiava a cidade, mas as palavras dos sábios deveriam ser ouvidas com mais atenção do que os gritos de quem dominava sobre tolos (v. 17). Os invasores babilónios gritavam suas exigências aos que estavam nas muralhas de Jerusalém na época do rei Ezequias. Os oficiais de Jerusalém pediram que eles falassem em árabe em vez de hebraico, para que o povo não ficasse desmoralizado com
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as palavras deles (2 Rs 18.26). A declaração geral de 9.17, entretanto, pode ter em mente o grito do governador dentro da cidade sitiada, que não queria ouvir
o conselho do sábio pobre. 118 “A sabedoria” é “melhor do que a força” (v. 16), mas é, todavia, vulnerᬠvel à sabotagem de um só pecador ou de alguém que não entende o raciocínio (v. 18). A palavra pecador ( hôte ’) não é geralmente usada no sentido religioso na literatura da sabedoria e parece ter um sentido mais literal, aqui, de alguém
que perde a oportunidade por causa da incompetência. A palavra específica para guerra no versículo 18 é incomum (qérãb, em vez de milhãmâ, 3.8; 8.8). Ela vem da palavra “aproximar” e é usada no sentido de uma aproximação hostil (BDB 898a; veja Zc 14.3; SI 55.18; 68.30; 78.9; 144.1; Jó 38.23; Dn 7.21). A superioridade da sabedoria sobre as armas de guerra é semelhante ao provérbio inglês: “A caneta é mais poderosa do que a espada” (veja Pv 20.18). Apesar da consciência de Coélet sobre as limitações da sabedoria, ele no¬ vamente proclamou a superioridade da sabedoria sobre possibilidades, tais como a insensatez ou, nesse caso, sobre o poder militar. A PARTIR DO TEXTO
O mistério da retribuição Coélet desafia o funcionamento da retribuição no capítulo 9 com o argu¬ mento de que todos são semelhantes na morte, que é um estado tão triste que é
preferível ser um cão (vivo). Seis versículos são dedicados a essa anomalia, que é respondida pela doutrina da ressurreição do NT, uma doutrina que é estranha ao AT.
Desfrute a vida Tendo em vista a rejeição de uma vida significativa após a morte, Coélet aconselha a alegria na vida presente, pois essa é a sua recompensa (v. 9). Esse conselho está ligado diretamente à falta de uma vida após a morte, pois é nesta vida que o indivíduo deve estar motivado a trabalhar e desfrutar a vida (v. 10). Embora Coélet esteja sério quanto a esse conselho de desfrutar a vida e tenha uma visão positiva da vida como uma dádiva de Deus, ele também sente a falta da justiça e fala sobre a falta de uma vida eterna em certo tom de amargura (9. T 3). Ele não está defendendo que “comamos e bebamos, porque amanhã morre¬ remos” (rejeitado por Paulo em 1 Co 15.32), tampouco concorda com Paulo
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que “somos os mais dignos de compaixão” sem a ressurreição (1 Co 15.19). Contudo, algo está faltando. Nesse sentido, Coélet serve como um preparo para a doutrina da ressur¬ reição do NT. Na ressurreição, as desigualdades desta vida serão retificadas, e o desfrute da vida não será fugaz ( hebel, veja Delitzsch, 1875, p. 361). Bonhoeffer viu uma profunda conexão entre o gozo desta vida e a esperança na ressurreição (1997, p. 157). Davis chama o livro de “um tipo de prefácio para o Novo Testamento” (2000, p. 169).
Sabedoria: valore limitações O valor da sabedoria é expresso por meio da história de um sábio homem pobre que salvou sua cidade sitiada com sua sabedoria. A sabedoria tem uma força resistente apenas se a comunidade lembrar-se e prestar atenção às pala¬ vras do sábio (mesmo as palavras de um homem pobre com sabedoria). As palavras de sabedoria são calmas, porém poderosas e boas para aqueles que as ouvem. Todavia, qualquer que seja o bem que a sabedoria acumule, este pode ser destruído por um pecador (v. 18), um tolo que se recusa a prestar atenção nas palavras de sabedoria.
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XII. MOSCAS NO PERFUME (10.1-20) POR TRÁS DO TEXTO O capítulo 10 dá continuidade aos temas significativos do capítulo 9, in¬ cluindo o valor e as limitações da sabedoria, a soberania dos reis e o mistério da retribuição. Há uma referência ao riso, mas não com a mesma ênfase no desfrute da vida que o capítulo 8 e 9 têm. Os capítulos 11 e 12 enfatizam a alegria nova¬ mente quando Coélet dá conselhos conclusivos ao seu jovem público, incluindo conselhos sobre a generosidade e a lembrança de Deus. Inúmeras atividades cotidianas são mencionadas em 10.7-18. Os cavalos eram usados no transporte somente para os reis ou para os ricos, e, com certeza, não para os escravos (v. 7); covas eram cavadas e disfarçadas para capturar ani¬ mais (v. 8); muralhas de pedras eram habitações para cobras (v. 8); a pedra era a principal matcria-prima para as fundações e tinha de ser extraída (v. 9); a madei¬ ra era cortada com machados (v. 10); as cobras eram encantadas para serem re¬ movidas das habitações (v. 11); e os telhados, que eram suportados por vigas de madeira, tinham de ser revisados todos os anos antes da estação chuvosa (v. 18).
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O gênero do capítulo 10 é uma coleção de ditados, incluindo instrução (v. 4) e reflexão (v. 10). O capítulo pode ser esboçado como segue: A tolice pode suplantar a sabedoria (10.1-7) Os resultados podem ser imprevisíveis (10.8-15) Os benefícios de um rei sábio (10.16-20)
NO TEXTO
A. A tolice pode suplantar a sabedoria (10.1-7)
■1Coélet dá continuidade ao tema do versículo antecedente (9.18) no capí¬ tulo 10, a saber, que um pouco de tolice pode superar muita sabedoria. Nesse caso, uma imagem famosa e colorida é usada para transmitir a verdade, a mosca morta produz mau cheiro e estraga o perfume. Essa comparação dá origem ao ditado comum inglês “uma mosca no perfume”, significando que uma enor¬ me quantidade de coisa boa pode ser estragada por uma pequena quantidade de coisa ruim (também em outro ditado inglês: “uma maçã podre estraga um cesto”). O hebraico para mosca morta é, na forma literal, mosca da morte ( zébúbê mãwet), mas não é realmente mosca letal ou mosca zunindo ao redor de uma carcaça que está em questão aqui. De modo aparente, é uma mosca que come¬ çou a decompor-se, a qual faz um mau cheiro exalar do perfume. Logo, BHS sugere a leitura “uma mosca morta” ( zébúb mêt). Isso requer apagar duas le¬ tras do texto hebraico, e não há evidência textual para essa emenda, embora as traduções modernas sigam uma emenda semelhante. Além de exalar um mau cheiro, há outro verbo [yabbia\ significando “faz borbulhar” ou “fermentar”) na primeira linha, que está faltando em algumas das traduções antigas. As traduções modernas também deixam isso fora (também a NVI). A leitura da Septuaginta sugere a palavra hebraicaÿfó? ', significando “xícara, tigela” (Fox, 1999, p. 301). A aplicação para Coélet é sabedoria e insensatez. Parte do resultado da retribuição é que a tolice carrega mais peso do que a sabedoria em muitos casos. Um pouco de insensatez de uma pessoa sábia pode trazer enormes consequên¬ cias na vida e na reputação, assim como uma pequena mosca pode estragar um frasco inteiro de perfume (Ibn Ezra, in: Ginsburg, 1861, p. 424), e “um pouco de fermento faz toda a massa ficar fermentada” (1 Co 5.6). Isso é consistente com a observação de Coélet sobre as limitações da sabedoria, mas também é a
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interpretação de Ginsburg, que é a tolice dos outros que subverte a eficácia do sábio (1861, p. 424).
Frequentemente citado por John B. Bennett Um momento de tolice pode desfazer uma vida inteira de preparação (origem desconhecida).
12 0 coração do sábio se inclina para o bem, mas o coração do tolo, para o mal transmite a preferência de Coélet pela sabedoria em detrimento à tolice. Na cultura hebraica, o lado da mão direita era o preferido, como está refletido em nomes como Benjamim (“filho da minha mão direita”) e em di¬ tos, como: “A tua mão direita, ó SENHOR, tem um poder terrível” (Êx 15.6 NTLH). Ser canhoto era considerado anormal e era visto com suspeitas. Essa característica é mencionada como uma desvantagem do juiz Eúde, embora, para ele, tornara-se uma vantagem no assassinato de Eglom, já que a arma ficou escondida no lado oposto ao que Eglom esperava (Jz 3.21; veja também Mt 25.33). A preferência pela direita também é refletida no inglês. A mão direita é o “direito” (i.e., “correto”, “certo”), enquanto a mão esquerda é “abandonada” (i.e., “resto”). A palavra “sinistra” vem do latim, que significa “esquerda”. I 3 Portanto, os sábios estão no caminho direito, enquanto os tolos estão no caminho errado. A analogia de caminhar-se por uma estrada é importante na literatura da sabedoria, e, em outra parte, é-a fialavra de Deus que ilumina o caminho (SI 119.105), e Deus é quem endireita os passos de alguém (i.e., “facilita”; Pv 3.6). A própria conduta do insensato mostra para todos que não passa de um tolo (veja Pv 12.23; 13.16). As versões antigas transmitem a ideia de que os tolos aqui consideram que todas as outras pessoas sejam tolas. A arrogância e a tolice tendem a andar juntas, e Coélet pode ter intencionado essa ambiguidade (o que seria consistente com o seu estilo). M 4 Assim como um pouco de tolice pode pesar mais do que uma grande sabe¬ doria, o oposto também, às vezes, é o caso. No versículo 4, Coélet dá mais con¬ selhos sobre a conduta diante do rei (veja 8.2; 10.20). Enquanto, mais cedo, ele havia aconselhado a correr da presença do rei para executar as suas ordens, agora, ele aconselha a ficar parado, mesmo que a ira do rei se levante contra você. Isso porque a tranquilidade evita grandes erros. Essa foi a experiência do jovem
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acalmava o rei Saul quando “o espírito mau mandado por Deus vinha sobre Saul” (1 Sm 16.23 NTLH). O vocabulário do versículo 4 também usa “espírito” (ira, râah). A tranquilidade que é necessária é, literal¬ mente, a cura ( marpé ’). Há também o uso duplo da palavra descanso ( núah ) nesse versículo. A palavra também pode significar “abandonar”, no ramo causativo (não abandone; o nome de Noé vem desse radical). 15 No versículo 5, Coélet volta novamente a observar o resultado da retribui¬ ção, que é outro mal que viu debaixo do sol. Dessa vez, é um erro cometido pelos que governam, já que os governantes, de modo aparente, são a causa da anomalia a ser revelada ou, pelo menos, falham em usar seu poder para corrigir o erro. É possível traduzir um como verdadeiramente, de forma que o erro de¬ veras venha do rei, e não apenas aparente de um erro monárquico (Whybray, 1989, p. 170). No final das contas, é Deus o governador responsável pelo resul¬ tado da retribuição, porque Ele deve estar impondo as bênçãos aos justos e os castigos aos ímpios. O mistério da vida é que Ele, em Sua soberania, não esteja Davi, cuja música
fazendo isso. 16 0 mal, nesse caso, é que os tolos são postos em cargos elevados, en¬ quanto ricos ocupam cargos inferiores (v. 6). Os ricos estão associados aos competentes e abençoados. A palavra tolos é, na verdade, tolice (sekef) em he¬ braico, embora as antigas traduções digam “o tolo”. 7 0 versículo 7 continua com outro exemplo de anomalia. Coélet tem visto servos andando a cavalo, e príncipes andando a pé, como servos (veja Jr 17.25). A palavra servo [escravo] ( 'ebed) vem do vergo “trabalhar, servir” e tem um amplo raio de significados, incluindo oficiais do alto escalão do rei (2 Sm 19.17). Nesse versículo, entretanto, é traçado um contraste entre o baixo escalão de um servo e o alto escalão de um príncipe ou governador, que é o que torna chocante a reversão dos papéis (veja Pv 19.10; 30.22).
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B. Os resultados podem ser imprevisíveis (10.8-15) 18-9 Os exemplos mudam nos versículos 8 e 9. Em um modo similar à dou¬ trina da
retribuição, os trabalhadores esperam receber a recompensa pelo seu
trabalho, mas, com frequência, acontece um acidente que impede o resultado desejado. Aquele que cava um poço cai nele, e aquele que derruba um muro é picado por uma cobra (v. 8). A palavra poço {gúmmãs) é encontrada somente aqui no AT, mas aparece em outros lugares em aramaico. A ligação entre o muro e
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a cobra é, aparentemente, encontrada no habitat das cobras que constroem seus ninhos nos muros de pedra. Estes possuem muitas lacunas, onde os animais podem entrar (veja Am 5.19; Ginsburg, 1861, p. 429). O versículo 9 trans¬ mite um pensamento semelhante. Alguém arranca pedras para um propósito específico, mas, em vez disso, com elas se fere, e as toras são rachadas para a
construção, e quem racha lenha se arrisca (v. 9). A palavra yissãken (se arris¬ ca) também é exclusiva do AT, mas ocorre no hebraico pós-bíblico (Whybray, 1989, p. 153). Essa preponderância de palavras exclusivas (hapax legomena), que também se encontra em aramaico ou no hebraico pós-bíblico, é geralmen¬ te explicada em termos de uma data pós-exílica para Eclesiastes. Mesmo que essas palavras existam no hebraico coloquial das eras pré-exílicas, elas não se encontram na literatura até mais tarde, de forma que ainda sugerem uma data pós-exílica para Eclesiastes.
Calvino sobre os perigos da vida Embarque em um navio, você está a um passo da morte. Monte em um cavalo, se um pé escorrega, sua vida está em perigo. Ande pelas ruas da cidade, você está sujeito a tantos perigos quanto o número de telhas de um telhado ( Institutes 1.17.10; citado em Brown, 2007, p. 77).
H 10- 11 Os versículos 10 e 11 dão exemplos da retribuição em ação. A sabe¬ doria faz a diferença nesses contextos, especialmente o tipo de sabedoria prᬠtica usado por um artesão, como o que foi útil a Bezalel (Êx 35-30,31). Um lenhador (sábio) usa um machado afiado e economiza força, mas, se o ma¬ chado está cego (...), é preciso golpear com mais força (v. 10). A palavra para machado é literalmente ferro ( barzel também em 2 Rs 6.5). Cego é um significado extensivo do verbo qilqal (“polir”; BDB 886b). Esse vocabulário incomum dá lugar a uma sintaxe difícil na segunda metade do versículo. Agir com sabedoria assegura o sucesso é, literalmente, o lucro provoca sucesso à sabedoria. O lucro que traz sucesso é a sabedoria, ou a sabedoria (“inteligência” NTLH) traz sucesso e lucro (para sucesso, veja 2.21; 4.4; 5.11; 11.6). Semelhantemente, um encantador de serpentes experiente deve usar a sua habilidade (sabedoria) para evitar a picada da cobra (v. 11). O encantador de ser¬ pentes é, na forma literal, senhor da língua ( léba al hallãsôn). Isso possivelmente diz respeito a alguma profissão que removia cobras indesejadas, atraindo-as com
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batidas de vara nas paredes, assobios, ruídos, cuspidelas e maldições ou fórmu¬ las mágicas, como observaram os viajantes do século 19 no Egito (Ginsburg, 1861, p. 435). O versículo 11 contrasta a falta de sucesso do encantador de cobras malsucedido com o lucro {yitrôn, sucesso) do trabalhador habilidoso no versículo 10. Os versículos 10 e 11 transmitem o bom senso da causa e do efeito em ação (retribuição). Coélet está consciente dos benefícios da sabedo¬ ria, assim como das limitações. Talvez essa ligação seja simplesmente para su¬ gerir que a sabedoria faça a diferença nos cenários dos versículos 8 e 9 também (Delitzsch, 1875, p. 379). H 12-15 Coélet é mais específico acerca da superioridade do sábio sobre os tolos em 10.12-15. Os sábios são cuidadosos com suas palavras (v. 12) úteis, enquanto os tolos multiplicam palavras que começam com tolice e terminam com loucura perversa (v. 13,14). A tradução de palavras do sábio (...) trazem benefícios (v. 12) presume que o favor venha do sábio, mas pode ser também que o favor venha para o sábio. Os tolos não percebem as limitações de seu pró¬ prio conhecimento ou mesmo do conhecimento em geral (v. 14). O pronun¬ ciamento no versículo 14 sobre o futuro incerto é uma citação prévia do livro (6.12; 7.14 e 8.7) e interrompe o fluxo da discussão dos tolos. É necessário que haja uma pessoa completamente sábia para conhecer as limitações da sabedoria e do conhecimento e perceber que a retribuição tem sérias inconsistências. Os tolos não chegaram a esse ponto, mas estão cheios de sua própria importância e continuam a fazer pronunciamentos sobre o futuro baseados na compreen¬ são padrão da causa e do efeito. Eles estão enganados, já que ninguém sabe o que está por vir; quem poderá dizer a outrem o que lhe acontecerá depois ? Coélet conclui dizendo que os tolos cansam a si mesmos, pois a sua falta de habilidade leva-os à ineficiência, e eles não conseguem encontrar o caminho de casa, muito menos o sucesso (v. 15). Pode não haver garantia de que a sabe¬ doria levará ao sucesso, mas o que está claro para Coélet é o fato de que a tolice somente levará ao desastre.
C. Os benefícios de um rei sábio (10.16-20) ■ 16 O versículo 16 tem uma advertência para aqueles cujo governador era jovem demais, e cujos príncipes viviam uma vida de indulgência e folia. Uma palavra incomum é usada para pobre ( í), que ocorre somente duas vezes na Bíblia (4.10; 10.16) e é também usada na literatura rabínica (BDB 33a). As 202
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palavras hebraicas normais são hôy e ôy, que são usadas quando alguém morre (ex.: Am 5.16-18, em que é usada no contexto do castigo pela quebra da alian¬ ça) ou está prestes a morrer (Is 24.16). A palavra na 'ar (jovem) é, geralmente, usada para alguém em idade adolescente (menino ou moço), até mesmo al¬ guém na idade de ir à guerra (os guerreiros de Abraão em Gn 14.24), enquanto a palavra yele (criança) é tipicamente usada para crianças mais novas. Não se sabe ao certo, entretanto, a idade em questão aqui. Já que “menino”, às vezes, tem um sentido depreciativo em inglês, assim também na 'ar pode referir-se a um jovem que seja adulto (ex.: Nm 22.22). Os príncipes {sãr) que fazem banquete logo de manhã não são necessariamente os filhos do rei, no sentido estrito que “príncipe”, em geral, tem em português. O sãr hebraico é a palavra generalizada para um governante que é subordinado ao rei. Esses governadores começam suas folias (e bebedi¬ ces?) logo de manhã, isto é, mais cedo do que deveriam, quando outros assuntos deveriam ser tratados primeiro. Eles estão satisfazendo -se (veja At 2.15; Is 5.11). 117 0 versículo 17 fornece um contraste com o versículo 16. Em vez de uma maldição ser aplicada ao “pobre” da terra cujos governantes são incompetentes, há uma bênção para a terra cujos governantes têm nobreza. Feliz é o resultado comum para aqueles que são sábios (veja SI 1) e vem de um verbo com o sen¬ tido básico de “andar reto” (BDB 80b). Um caminho reto é uma estrada mais fácil. Essa bênção é para a terra cujo rei é filho da nobreza e cujos líderes fazem banquete na hora adequada. Origem nobre é, literalmente, filho de homens livres { ben-hôrim). A presunção é que um rei de nobre nascimento recebera a educação apropriada e o treinamento para trazer bênção sobre a terra como rei (veja 9.15; 10.6). Os príncipes ou os governantes dessa terra abençoada comem na hora cer¬ ta, isto é, no momento apropriado (não de manhã, como no v. 16). A razão para eles fazerem banquete é para adquirir forças {gêbúrâ ), e não porque são beberrões (veja Pv 31.5-7). ■ 18 Coélet declara as consequências da preguiça no versículo 18. O substan¬ tivo “preguiçoso” (preguiça) está duplicado, significando uma preguiça inten¬ sa (Delitzsch, 1875, p. 388). O telhado do preguiçoso se enverga {yimmak ) e, por causa das mãos indolentes (siplút significa “afundar”), a casa tem gotei¬ ras. As palavras telhado ( méqãreh ) e indolentes {siplút), aqui, são exclusivas do AT. A palavra comum para telhado é qôrâ (Gn 19.8; Ct 1.17). Enverga ( yimmak ) também é uma palavra rara, ocorrendo apenas em 10.18; Sl 106.43
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24.24. A preguiça é um tema comum em Provérbios (ex.: Pv 6.10). No dos dois versículos anteriores, isso poderia facilmente ser aplicado aos reinos que são governados pelos líderes preguiçosos (Ginsburg, 1861, p. 442), já que um reino ou uma dinastia chama-se, frequentemente, de “casa” (2 Sm 7.16). B 19 No versículo 19, Coélet cita um provérbio que tem a ver com o seu conselho de desfrutar a vida (ex.: 9.9), incluindo comida, bebida e riqueza. Essas coisas não devem ser apenas a orientação da vida (especialmente para os governantes, veja 10.16,17), como também não devem ser as preocupações da vida. A riqueza responde a tudo no sentido de que a vida pode ter problemas sem ela. Ela pode ser a resposta temporária, como foi para o filho pródigo (Lc 15.13), ou pode ser usada para construir relacionamentos (como o gerente as¬ tuto que foi exonerado; Lc 16.9). O uso de se paga ( 'ãnah) também pode ser traduzido como aflige, como é visto na versão siríaca: “O dinheiro oprime e os desvia” (Ginsburg, 1861, p. 443). Embora o excesso de dinheiro possa causar problemas na vida, isso não parece ser um dos argumentos de Coélet. É provável que haja algum sarcasmo na declaração de Coélet de que “por tudo o dinheiro responde” (ARC), assim como é possível que os membros de seu público houvessem orientado a vida em torno do dinheiro e pensassem mais nessa comodidade do que devessem. Usando outra nuance de 'ãnah, uma palavra-chave em Eclesiastes (ex.: 4.8, “negócios”; 5.20, “ocupado”), Seow traduz essa linha como “o dinheiro preo¬ cupa a todos” (1997,p. 328). B 20 O versículo 20 dá uma advertência para que não se amaldiçoe o rei ou os governantes, nem mesmo a sós. As ações de alguém têm um jeito de torna¬ rem-se conhecidas, e o rei poderá descobrir, com desastrosas consequências (veja Lc 12.3). A expressão em pensamento (bémaddã'ãkã) foi influenciada pelo aramaico e é encontrada em outros lugares no AT somente em 2 Crónicas 1.10-12 e Daniel 1.4,17 (Barton, 1908, p. 179). O governo persa empregava espiões (conhecidos nas fontes gregas como olhos e ouvidos do rei) que levavam ao conhecimento do rei as transações das pessoas comuns (Briant, 2002, p. 344). Eclesiastes 10.20 parece ter essa situ¬ ação em mente quando adverte contra o ato de falar-se do rei: Porque uma ave do céu poderá levar as suas palavras. Essa referência tem um paralelo no provérbio aramaico de Ahiqar, que adverte: “Um pássaro é uma palavra”, também no contexto da advertência contra a maldição (Krúger, 2004, p. 189; Matthews e Benjamin, 2006, p. 304). No Midrash de Hag 2.11, diz-se que as paredes têm ouvido (Ginsburg, 1861, p. 445). e Jó
contexto
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Provérbios de Ahiqar [Meu] filho, não [amaldiçoe] o dia até que veja o [seu fim]. Que [isso] possa vir à sua atenção, que, em todo lugar, os olhos E os ouvidos deles [i.e., dos deuses] estejam perto da sua boca. Cuidado para que isso não destrua [as suas] vantagens. Diante de todos os outros, cuide de sua boca, E [contra] aqueles que [perguntam], guarde o seu coração; Pois um pássaro é uma palavra, E qualquer que o solte é um homem sem entendimento. (Krúger, 2004, p. 189)
A PARTIR DO TEXTO
Sabedoria: valor e limitações Coélet continua a dialogar com o ensino da sabedoria padrão, argumen¬ tando que a habilidade (sabedoria) compensa por um machado cego, mas que, muitas vezes, a sabedoria é suplantada por uma simples tolice, assim como uma pequena mosca estraga o perfume (veja também 1 Co 5.6). Até o resultado das coisas cotidianas, como cavar um poço, pode ser imprevisível, e os seres huma¬ nos não conseguem controlar o futuro (v. 14).
A soberania dos reis Mais uma vez, é aconselhado o cuidado quando se está na presença do rei que, assim como Deus, pode exercer sua soberania de modos inesperados. O governador pode tomar decisões tolas, com resultados desastrosos, mas o tipo certo de rei resulta em bênção para a terra.
A retribuição e a prestação de contas Os homens são responsáveis pelos resultados de suas ações. Espera-se que o telhado do preguiçoso goteje (v. 18). Isso pode ser uma ilustração para mostrar que a retribuição divina, às vezes, funciona como o esperado. Contudo, Coélet é mais cauteloso acerca de outras experiências da vida humana que não são planejadas nem intencionais. Ele parece pensar que algumas ações humanas têm um risco ou perigo inerente, tal como cavar um poço, quebrar um muro,
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extrair pedras ou rachar lenhas (v. 8,9). Esse risco inerente demonstra a nature¬ za imprevisível dos resultados. A atividade humana nem sempre leva aos resul¬ tados esperados, porque, diferentemente de Deus, os homens são incapazes de controlar os resultados.
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XIII. LANÇA 0 TEU PÃO SOBRE AS ÁGUAS (CONCLUSÃO) (11.1-12.7) POR TRÁS DO TEXTO
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Eclesiastes 11.1 12.7 dá continuidade ao tema do mistério da retribuição do capítulo 10, mas também introduz a generosidade, o gozo da vida, e o ato de lembrar-se do Criador enquanto ainda se é jovem. Isso traz as palavras de Coélet a um encerramento, e o restante do livro reafirma o tema do editor (12.8) e faz uma análise positiva da escrita de Coélet (12.9-14). Assim como na unidade anterior, esta tem diversas atividades extraídas da vida diária do mundo antigo. As sociedades agrícolas estão preocupadas com pão, nuvens e chuva, árvores caídas, vento, nascimento, semeadura, e com o sol (11.1-7). As imagens do capítulo 12 alimentam-se de diversas atividades domésticas: guardar a casa, moer o grão, fechar as portas, levantar-se da cama, evitar os perigos da rua, observar as flores da amendoeira, e tirar água da fon¬ te e das cisternas (12.3-6). Muitas dessas atividades param no capítulo 12, no
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qual as imagens parecem ser extraídas da guerra ou da desolação causada pela guerra. A guerra e a ameaça de guerra eram uma realidade constante nas eras pós-exílicas. O gênero desta unidade é a instrução e a reflexão. Os artifícios literários incluem o ditado numérico (11.2) e os elementos de um lamento da cidade, que podem ter sido vistos como uma alegoria ou uma metáfora ampla (12.1-7). A alegoria não é um artifício literário comum no AT (veja Jz 9.7-15; Ez 17.18), apesar de uma longa história de amplo uso de alegorias pelos intérpretes subsequentes. Isso faz da metáfora um artifício mais provável aqui, mas o cenᬠrio é provavelmente um lamento da cidade em antecipação à possibilidade da guerra (nem metáfora nem alegoria, mas literal). O verbo conhecer é repetido cinco vezes (11.2,5 duas vezes, 6,9), reiterando a falta de conhecimento hu¬ mano que foi enfatizada nos capítulos anteriores. Essa realização da limitação humana e da soberania divina deve vir antes ( ‘ad ãser lõ 12.1,2,6) da morte ou da desolação causada pela guerra. Eclesiastes 11.1 12.7 pode ser esboçado como segue: A generosidade ( 11.1,2) O conhecimento é limitado (11.3-6) A felicidade na juventude (11.7-10) Lembre-se do seu Criador (12.1-7) A interpretação desta unidade tem confundido os leitores de Eclesiastes durante séculos, e a análise de Jerônimo ainda é amplamente verdadeira: “Qua¬ se tantas opiniões quanto o número de pessoas que há” (citado por Murphy, 1992, p. 115). É claro que o livro como um todo é enigmático, e talvez esta unidade seja outro exemplo de Coélet usando uma escrita enigmática para ex¬ pressar o enigma da vida (“um estilo desassossegado que imita a própria vida”; Davis, 2000, p. 164). Coélet faz referência a um desastre que poderá cair sobre a terra (l 1.2), dias de trevas (11.8) e dias difíceis (12.1). É difícil determinar o que Coé¬ let tinha em mente nesses textos. Essa dificuldade levou os intérpretes judeus (Targum, Talmude, Midrash) e alguns intérpretes cristãos (ex.: Delitzsch, 1875) a uma interpretação alegórica desta unidade. Alguns outros apelaram para uma leitura híbrida desta unidade, que procura encontrar um significado literal, mas apela para o significado alegórico ou metafórico quando o signifi¬ cado literal é elusivo (ex.: Crenshaw, 1987; Eaton, 1983). Outros veem, nesta unidade, descrições de velhice e morte, a chegada da noite ou o inverno, algum desastre cósmico escatológico, uma comunidade em luto ou a chegada de uma
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tempestade. É bem provável que Coélet esteja falando, literalmente, acerca de eventos que estão ligados à guerra. Os impérios pós-exílicos experimentaram períodos de paz e prosperidade, mas também foram assolados pela guerra. Co¬ élet pode estar sugerindo que a iminente possibilidade de guerra não deve sig¬ nificar que as atividades diárias devam ser suspensas (tais como o plantio das lavouras, 11.4).
NO TEXTO
A. A generosidade (11.1,2) M 1O capítulo 11 inicia esta unidade literária com o famoso provérbio: Atire o seu pão sobre as águas, e depois de muitos dias você tornará a encontrá-lo
(a palavra encontrar, mãsa ’, soa como outra palavra para pão [asmo], massâ ’). O pão achatado e circular dos tempos bíblicos talvez permanecesse boiando por mais tempo do que os modernos pães ocidentais. Alguns têm interpretado esse provérbio como um conselho para fazer um investimento, talvez enviando navios mercantes para cruzarem os mares (Delitzsch, 1875, p. 391; Bartholo¬ mew, 2009, p. 337; veja Is 18.2). Isso seria peculiar no livro de Eclesiastes, por¬ que, em nenhum outro lugar, Coélet aconselha uma orientação em torno da riqueza (5.10). Em 5.14, ele observa que o resultado de um investimento não pode ser garantido, já que tudo poderia ser perdido em um empreendimento (veja 9.11; Davis, 2000, p. 219). A atitude de Coélet para com o pobre é mais positiva do que a sua atitude para com a riqueza. Ele é simpatizante do oprimido (4.1; 5.8) embora, até este ponto, ele não tenha recomendado ação alguma em favor deles. Aqui, em 11.1, ele parece aconselhar a generosidade, que trará as suas próprias recompensas. Isso é consistente com a prática de hospitalidade do Oriente Médio; comen¬ taristas judeus antigos e medievais seguem essa linha de interpretação. Isso também está refletido em um provérbio árabe: “Faça o bem, lança o seu pão sobre as águas e, um dia, será recompensado” (Ginsburg, 1861, p. 447). Um documento egípcio possui ditados semelhantes: “Faça uma boa obra e jogue-a na água; quando ela secar, você a encontrará” e “Dê um pão ao seu trabalha¬ dor, receba dois pães pelo trabalho dos ombros deles” (Ankhsheshonq 19.10; 22.19; in: Fox, 1999, p. 312; Matthews e Benjamin, 2006, p. 316).
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Isaque de Nínive sobre a generosidade (ca. 700 d.C.) Quando você der, dê generosamente, com um semblante feliz, e dê mais do que lhe pedirem, já que dizem: "Envie o seu pedaço de pão em direção à face do pobre e logo achará a sua recompensa". Não separe o rico do pobre, nem tente separar o digno do indigno, e que todas as pessoas sejam iguais aos seus olhos para uma boa ação (In: Christianson
2007, 220).
I 2 Coélet continua o tema da generosidade no versículo seguinte (1 1.2) e aconselha a dar uma porção a sete ou oito. Repartir (hêleq) é uma palavra im¬ portante em Eclesiastes e deve ser contrastada com proveito (yitrôn ). O indiví¬ duo deve ficar satisfeito com a sua porção, que é uma dádiva dc Deus, enquanto não há nenhum benefício (yitrôn) real no trabalho ( ãmãl, ex.: 2.11) infindo. Agora, em 11 .2, Coélet aconselha a dar porções aos outros. A frase com sete, até mesmo com oito é um artifício literário da literatura da sabedoria conheci¬ do como ditado numérico (veja comentário em 4.8). Ele não se refere ao núme¬ ro literal, mas é indefinido. Os exemplos, frequentemente, revolvem em torno do número sete, que simboliza a plenitude. Se o versículo 1 for tomado como referência a transações comerciais, então sete, até mesmo oito, estaria referin¬ do-se à diversificação de investimentos, a fim de minimizar as perdas. Todavia, nos outros lugares, Coélet está preocupado em aconselhar contra a orientação que visa à riqueza do que aconselhar estratégias de bons investimentos. Coélet também relembra o leitor da razão dessa generosa atividade - pois você não sabe que desgraça (rã a) poderá cair sobre a terra. Você não sabe é um tema recorrente aqui, em Eclesiastes. Coélet tem enfatizado as limita¬ ções da sabedoria e do conhecimento humano, em oposição ao conhecimento ilimitado de Deus que determina a hora de todos os acontecimentos (cap. 3). Essa falta de conhecimento requer uma atitude de humildade e gozo do mo¬ mento presente. Nesse versículo, exige-se a generosidade. Coélet liga a generosidade à incerteza do futuro nesse versículo. A palavra hebraica rã â é geralmente traduzida como “mal” e também inclui calamidade natural ou nacional (ex.: Am 6.3; Pv 1.33). Se houvesse uma fome ou uma invasão, os menos favorecidos precisariam da generosidade da riqueza de um benfeitor, ou aqueles que receberam ajuda no passado, agora, poderiam ser re¬ cíprocos. Essa possível calamidade é a primeira dica de que esta unidade pode
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ser sobre como conviver com a perspectiva de uma guerra. Coélet aconselhará que a vida deverá continuar normalmente, em vez de viver com medo ou sus¬ pender as atividades importantes, como plantar as sementes (11.4,10).
B. O conhecimento é limitado (11.3-6) 13 O versículo 3 relaciona duas constantes óbvias da natureza: se as nuvens estão carregadas, a chuva cai; se uma árvore cai, ela permanece onde caiu. Mes¬ mo que os lenhadores controlassem onde a árvore cairia, ainda seria difícil ou impossível removê-la usando a tecnologia antiga. A visão de que a chuva vinha das nuvens parece ser uma progressão na compreensão bíblica sobre o mundo científico. Em outro lugar no AT, o universo é visto como um caos aquoso com a terra mantida seca por uma cúpula dura (ou talvez uma barreira plana). A chuva é possível, porque essa cúpula possui janelas que são abertas por Deus quando chove (ex.: Gn 7.11; mas veja Pv 25.14). A chuva era considerada uma bênção e não era uma metáfora para dificuldades. Os seres humanos não conseguem controlar a chuva e não podem mudar o lugar onde a árvore caiu. Isso é uma expressão da soberania de Deus, que Coélet já proclamou anteriormente (em contraste com a falta de controle do ser humano; 7.13). O objetivo desse versículo pode ser relembrar os leitores de que eles não têm controle sobre os acontecimentos futuros, nem do desastre de uma possível guerra ou invasão (11.2). 4 Coélet transmite, no versículo 4, a incapacidade do homem de predizer quando o vento soprará ou quando a chuva cairá. O versículo 4 avisa que o fazendeiro que se preocupa com o vento e a chuva não semeará nem ceifará. Essa é outra metáfora para o conselho de Coélet de aproveitar o momento pre¬ sente e não se preocupar demais com o futuro. Ahiqar escreveu: “Trabalhe em seus campos na estação certa, realize cada tarefa. Você encherá o seu estômago, alimentará a sua casa” (Matthews e Benjamin, 2006, p. 307). À luz da possibi¬ lidade da guerra, Coélet aconselha seus leitores a continuarem suas atividades diárias, tais como semear a semente, já que não sabem quando haverá um de¬
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sastre, ou se haverá.
15 0 versículo 5 coloca a falta de conhecimento e de controle por parte do ser humano no contexto do Deus onisciente e todo-poderoso. Os homens não sabem em que direção o vento soprará, muito menos como o fôlego chega aos ossos no útero de uma mulher grávida (veja 8.8; Jo 3.8). Eclesiastes 11.5 parece ter um significado duplo que coloca o leitor no estilo característico de Coélet. Após
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declarar a incapacidade dos homens em conhecerem o caminho do vento, Coélet muda o assunto para a formação dos ossos no útero da mulher grávida. Vento, no versículo 5 (râah), pode também significar fôlego (veja a NTLH). Talvez Coélet se refira à incapacidade de saber o caminho do vento e também a origem da vida humana. Tanto o caminho do vento quanto o mistério do nascimento são desconhecidos pelos humanos, portanto, ambas as leituras apoiam o ponto que está sendo defendido nesse versículo. A crucial falta de conhecimento agora é declarada no fim do versículo 5. Os homens não conhecem a obra de Deus que, realmente, (opera) em tudo. A soberania de Deus é mais uma vez enfatizada por Coélet. Os homens não controlam os acontecimentos, nem mesmo sabem o que Deus fará (veja 3.11; 8.17:9.12). I 6 No versículo final desse parágrafo, Coélet dá alguns conselhos característicos: Plante de manhã a sua semente, e mesmo ao entardecer não deixe as suas mãos ficarem à toa (11.6). À primeira vista, isso parece um conselho para um cansaço infindável, mas Coélet já rejeitou a labuta ( ' ãmãl). No contexto desta unidade, ele está aconselhando a usar a oportunidade para agir, em vez de ficar esperando as circunstâncias perfeitas (ou esperando para ver se não ha¬ verá guerra). Em tempos de paz, é geralmente a avareza que faz a pessoa exigir as condições perfeitas que garantirão a melhor colheita. Em vez disso, Coélet aconselha a tomar uma atitude e, depois, a deixar os resultados dessa atitude nas mãos de Deus. Diferentemente de Deus, os homens não sabem se isso ou aquilo prosperará ou se ambos serão bons. Existe um enorme contentamento em confiar nos resultados a Deus.
C. A felicidade na juventude (11.7-10) ■ 7 No versículo 7, Coélet liga a luz à suavidade (assim é o sono do trabalha¬ dor, 5.12) e à contemplação do sol. Sua frase característica, “debaixo do sol”, re¬ presenta a vida na terra, e, se o seu conselho para contentar-se for seguido (ex.: 9.7-10), então a vida será suave. Logo, luz é uma metáfora para vida e juventude nesse contexto (veja 6.5; 7.11). A luz frequentemente representa a presença e o amor de Deus no AT (ex.: Sl 44.3). Em Amós, ela representa salvação, isto é, a vida, já que o povo espera que o Dia do Senhor traga salvação para ele. No entanto, Amós diz: “Trevas será e não luz”, porque os próprios israelitas serão submetidos ao julgamento de Deus (Am 5.18 ARC). 212
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George Sandy sobre a luz (1632) Quão suave é a luz! Quão agradável de contemplar, O sol elevado envia raios de ouro! Todavia, embora o homem viva muito; longamente em prazer:
Que ele lembre que a noite se aproxima Na qual em trevas infindas fechará seus olhos: Então ele a tudo, como vaidades, desprezará. (In: Christianson, 2007, p. 221).
18 0 versículo 8 sugere que a luz também representa tempos de paz, pois os dias de trevas (desastres, guerras) estão chegando (Am 5.18; 2 Sm 22.29). Mesmo sem a ameaça de guerra, a vida não dura para sempre, e os anos de plenitude podem ser seguidos de dias de trevas (velhice ou sofrimento). Con¬ tudo, até o futuro é “vaidade” ( hebel), isto é, vazio e de vida curta. Os anos de uma vida inteira de realizações podem ser muitos, mas a escuridão do fim da vida é uma questão de dias. As trevas podem representar a morte, como uma antítese davidaedaluz (Ginsburg, 1861, p. 454, citando Sl 143.3; Jó 10.21).
O progresso do peregrino Então, eu vi no meu sonho que, quando eles conseguiram sair do deserto, logo viram uma cidade diante deles, e o nome daquela cidade é Vaidade; e, na cidade, há uma exposição chamada de Exposição da Vaida¬
de. Ela fica aberta o ano inteiro. Ela tem o nome de Exposição da Vaidade, porque a cidade onde ela está é mais leve do que a vaidade - Salmo 62.9; e também porque tudo o que lá é vendido ou que vem de lá é vaidade; como diz o ditado do sábio: "Tudo o que está para vir não faz sentido" Eclesiastes 11.8 (John Bunyan, 1678).
■ 9 Alegrar-se é também o tema do versículo 9. Esse conselho é direcionado a um jovem ( bãhúr), que é uma característica da literatura da sabedoria (em¬ bora essa palavra não seja comum). O livro de Provérbios frequentemente usa a expressão “meu filho” para dar conselho à geração mais nova (ex.: Pv 4.20). A alegria em Eclesiastes 11.9 é, em especial, para as pessoas jovens que podem ser tentadas a preocupar-se com o futuro a ponto de não quererem desfrutar
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do presente. Isso tem sido uma mensagem importante ao longo de Eclesiastes, e esse ponto é reiterado à medida que o livro se aproxima da conclusão, pos¬ sivelmente no contexto de preocupações sobre uma guerra vindoura (11.2,8). Ankhsheshonq escreveu: “Desfrute do seu corpo enquanto você é jovem, a morte vem para todos” (In: Matthews and Benjamin, 2006, p. 311). O conselho continua: Siga por onde seu coração mandar, até onde a sua vista alcançar. O coração é o trono do pensamento e da vontade, assim como da emoção no pensamento hebraico. Esse é o conselho para buscar o prazer na vida, mas não é um convite para orientar a vida em torno do prazer (Números 13.39 usa um vocabulário semelhante para advertir contra a desobediência aos mandamentos de Deus). Há, também, o equilíbrio de que Deus levará todas as ações a julgamento. Esse julgamento não pode ser o julgamento escatológico final do pensamento cristão, porque Eclesiastes já rejeitou o conceito da vida após a morte (ex.: 9.1-6, embora alguns intérpretes leia esta unidade referindo-se a uma escatologia cósmica final). Coélet também já desafiou a doutrina da retribuição na qual a justiça é recompensada, e a impiedade é castigada. Ele já viu exemplos demais nos quais isso não teve efeito imediato (ex.: 7.15). Ainda assim, ele não queria abandonar essa doutrina completamente e ainda sentia que, de alguma forma, a justiça de Deus teria a palavra final. Em suas últimas palavras aos jovens pensadores, Coélet agora aconselha que o deleite da vida deva ser balanceado com uma compreensão saudável de que as ações têm con¬ sequências. Deus ainda é soberano, e Ele trará o julgamento. Kriiger vê uma aplicação do julgamento mais específica no versículo 9, a saber, que Deus jul¬ gará mais severamente aqueles que não desfrutarem plenamente da vida (2004, p. 197).
Francis Quarles sobre o estoque do tempo (1638) Consuma seus dias dourados Em liberdade servil; deixe seus caminhos Tirarem a melhor vantagem da sua diversão; O estoque do seu tempo decai; E muita gastança ainda precede a escassez: O pássaro que voou pode voltar afinai; E a dolorosa tarefa pode reparar o desperdício; Mas nem a dor nem o preço podem invocar os minutos passados. (In: Christianson, 2007, p. 222)
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■ 10 Esse tema prossegue no versículo 10. O contentamento é declarado ne¬ gativamente com o conselho: Afaste do coração a ansiedade. A razão para esse conselho é revelada: a juventude e o vigor são vaidades (hebel, passagei¬ ros), no sentido de que não duram muito. A palavra vigor (sahãrút) é pecu¬ liar no AT, e as versões antigas tiveram dificuldades para traduzi-la (“loucura”, “ignorância”, “desejo”). Outras palavras do mesmo radical significam “preto” e “aurora”. Já que o contexto de 11.10 é juventude, isso pode aludir à aurora da vida ou aos cabelos pretos (já que a velhice é designada pelos cabelos brancos; Fox, 1999, p. 319). Como a juventude é fugaz, ela não deve ser desperdiçada na preocupação com o controle do futuro (que está nas mãos de Deus). Qualquer que seja a porção que Deus tenha dado, esta deve ser aceita com alegria, mesmo que haja preocupações sobre uma guerra que se aproxima.
D. Lembre-se do seu Criador (12.1-7) IlO capítulo 12 continua com o conselho para lembrar-se do seu Criador nos dias da sua juventude. A palavra lembrar no hebraico ( zèkõr) não é apenas cognitiva, mas envolve ação. Quando Deus se lembrou dos israelitas no Egito, não foi porque Ele havia se esquecido deles e não soubesse que estavam no Egito. Ao contrário, a hora para uma ação decisiva havia chegado. Isso significa que Ele “se lembrou” de Sua aliança com eles (Êx 6.5; veja Jr 31.34). Portanto, o jovem destinatário do capítulo 12 deveria lembrar-se de Deus no sentido de servir a Ele em cada decisão (a essência da literatura da sabedoria). Esse conselho pode, de certa parte, fazer uma retrospectiva da autobio¬ grafia real de 1.12 2.26. Naquele cenário, o jovem rei desfrutou de todos os tipos de prazeres, mas não encontrou satisfação alguma. A resposta para aque¬ le cenário de abertura encontra-se no encerramento do livro: Lembre-se do seu Criador quando ainda é jovem. Ao longo de todo o livro, o convite foi feito para desfrutar-se daquilo que Deus tem dado (ex.: 9.7). A juventude só é desperdiçada se for gasta na luta pelo controle ou pela riqueza (que não po¬ dem trazer satisfação). Nesta unidade, um assunto mais urgente parece estar indicado, i.e., a possibilidade de uma guerra iminente, que é o sentido provável da referência dias difíceis (veja 11.2,8). Em outro lugar, “dia de trevas” refere-se à destruição da cidade (Jr 17.17,18; 51.2). A perda da satisfação é uma característica dos lamentos que eram invocados pelas cidades que tinham sido devastadas pela guerra (Lm 5.15; Barbour, 2008).
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Esse entendimento é semelhante à interpretação judaica registrada por Jerônimo de que os recursos devem ser desfrutados antes que o “tempo do ca¬ tiveiro venha, e eles troquem a juventude pela velhice” (Kraus, 2001, p. 194). Essa interpretação é alegórica, não obstante, revela a compreensão dos versícu¬ los 1-7 como uma antecipação da guerra. Outros intérpretes entendem que os dias difíceis e a falta de satisfação referem-se à morte (Ogden, 1987, p. 199) ou à velhice (Gordis, 1968, p. 341). Essa visão da velhice parece muito negativa para o Israel antigo, que valorizava os seus anciãos e não enfatizavam muito a juventude à moda da cultura ociden¬ tal moderna. A presença de seu Criador {bôrè 'êkã) parece fora do lugar para Crenshaw, que nota duas emendas propostas: “seu poço” {bê'êrêka) e “sua cova” (bôrékã) (1987, p. 184; veja Cohen, 1946, p. 299). Ele prefere a anterior como uma metáfora para “mulher” (Pv 5.15), que é consistente com o ensino de Coélet em 9.9. A tradução “cova” (como uma metáfora para sepultura) também seria relevante aqui, já que a morte e a desgraça são proeminentes nesta unidade. Entretanto, a palavra Criador, aqui, é igualmente apropriada, já que sugere uma abismo entre a soberania de Deus e o conhecimento humano sobre o fu¬ turo, um tema importante também nesta unidade. A escolha do vocabulário de Coélet foi provavelmente designada a invocar diversos significados à mente. B 2 As imagens que seguem em 12.2-6 são, em geral, consideradas como me¬ táforas para a idade avançada. Elas têm sido interpretadas de várias maneiras, e é possível que a poesia aqui se destine a transmitir um duplo sentido. Coélet já usou esse recurso literário anteriormente nesse livro (1.6,8; 11.5). No contexto da tripla menção da desgraça ou das trevas vindouras (11.2,8;12.1), parece que essas imagens podem referir-se às condições do resultado da guerra, que era uma realidade comum nas eras persa e helenística. O versículo 2 retrata o escurecimento dos elementos universais: sol, luz, lua e estrelas. A interpretação alegórica do Midrash viu nessas imagens o escu¬ recimento do semblante: nariz, testa e bochechas. Wesley viu o rosto, as bo¬ chechas e os olhos, enquanto interpretava as nuvens como as enfermidades e as angústias. A doçura da vida, representada pela luz em 11.7, ofusca-se quando o sol escurece, o que pode ser uma metáfora para velhice ou morte (Ginsburg, 1861, p. 457). A escuridão, às vezes, é uma metáfora para o Dia do Senhor segundo os Profetas (Jl 2.10; Ez 30.3; 32.7,8; Is 13.9,10; Am 5.18,20; Sf 1.15; Chris¬ tianson, 2007, p. 225). Nesse contexto, isso pode ser uma imagem de guerra,
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mesmo que não signifique especificamente o Dia do Senhor. Fox reconhece o efeito da imagem para “evocar uma vasta catástrofe”, mas considera que isso seja uma metáfora sugerindo “uma visão da morte individual” (1999, p. 343). Em vez da metáfora, é provável que o foco principal seja uma catástrofe real, e que Coélet esteja tentando avisar os seus jovens leitores de que o estilo de vida deles pode ser perdido repentinamente. A escuridão está associada à morte e ao Sheol e é uma antítese da vida “debaixo do sol” (1.3: vejais 13.10; Am 8.9). Como tal, é importante nos lamentos da cidade (Lm 3.2,6; Barbour, 2008). Em Eclesiastes, a escuridão também pode referir-se a uma vida insatisfeita,
como aquela experimentada por alguém que “come na escuridão” em 5.17. O que fica escuro são o sol e a luz, a lua e as estrelas (v. 2). A luz parece desnecessária aqui, já que as três fontes cósmicas são citadas. Whvbray vê aqui um exemplo de hendíadis e sugere que o significado intencionado seja “as es¬ trelas brilhantes” (1989, p. 164). Provan observou que esses quatro elementos estão sujeitos à criação em Génesis 1, e, então, esse versículo representa uma reversão escatológica da criação (2001, p. 213). A ordem que é estabelecida em Génesis 1 está comprometida no caos da guerra, tal como o caos que voltou durante o conflito com o Faraó em Êxodo 7 11 (na forma de pragas). A referência às nuvens depois da chuva é enigmática, já que as nuvens ge¬ ralmente estão associadas à chuva, e a chuva para quando as nuvens vão embora (Ec 12.2). Coélet já havia feito a conexão entre as nuvens e a chuva (11.3). Se essa imagem aponta para a velhice, talvez a questão seja que a velhice é como uma tempestade de chuva após a outra. Nem bem uma tempestade acabou, as nuvens voltam, e outra tempestade se torna iminente. Crenshaw sugere que a visão do idoso decaíram tanto que as nuvens pareciam ainda estar lá, embora elas já tivessem ido (glaucoma?) (1987, p. 185). É possível que a referência seja de uma estação chuvosa, e o fim da chuva signifique que a guerra seja mais provável (2 Sm 11.1). As nuvens estão ligadas à escuridão nesse versículo e tam¬ bém em Isaías 5.30, Ezequiel 32.7,8 e na inscrição de Tell Deir ‘Alia (Seow, 1997, p. 353). Logo, o retorno das nuvens pode representar um possível desas¬
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tre (como uma guerra). 130 versículo 3 utiliza as metáforas guardas da casa, homens fortes, moe¬ dores e aqueles que olham pelas janelas que o Midrash interpretou como as costelas, os braços, o estômago, os dentes e os olhos. Os guardas da casa podem ser os servos (2 Sm 20.3, também Fox, 1999, p. 323), mas, se as imagens forem de guerra, o que é provável, então esses são os guardas (talvez da dinastia ou do palácio, casa). Tremer {yãzu «), encontrado
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mais comumente no aramaico bíblico e hebraico pós-bíblico, ocorre somente três vezes no AT (12.3; Et 5.9; Hc 2.7). A referência a homens fortes encurvando-se no versículo 3 tem ligações óbvias com a velhice, e o homem que havia cuidado de sua casa quando jovem tremeria quando ficasse idoso, tendo perdido a força para proteger a sua casa. Os moedores são literalmente pessoas que moem os grãos girando as pedras do moinho. Pararem (bãtélu) é usado somente aqui no hebraico bíblico, mas aparece no aramaico bíblico e hebraico pós-bíblico. Ginsburg explica isso como um cessar das atividades por causa de uma tempestade que se aproxima (v. 2) (1861, p. 459). Em Jeremias 25.10, a cessação do som dos moinhos é uma metáfora para uma cidade em ruínas (vejatambémjr 7.34; 16.9; 33.10,11). Essa é uma indicação importante da possibilidade de que essas imagens se referem ao tempo de guerra. Depois da devastação da guerra, os ruídos das atividades normais (como a moenda de grãos) cessaram. As casas estão abandonadas, e as lâmpadas (aqueles que olham pelas janelas; na forma literal, aqueles que olham nas janelas) não são abastecidas com óleo e finalmente se apagam (Jr 25.10 também há lâmpadas que se apagam; veja Ap 18.22,23; Lc 17.33-36).
A variedade de pessoas mencionadas no versículo 3 é característica dos lamentos da cidade que, frequentemente, retratam a natureza abrangente da crise, identificando as vítimas que representam os diferentes grupos sociais. Por exemplo, Lamentações 5.11-14 cita mulheres, virgens, príncipes, anciãos, ve¬ lhos e jovens (Barbour, 2008).
Francis Fawkes sobre a velhice (1761) Antes mesmo que o ranger de dentes termine, E os olhos embaçados não contemplem mais o sol; Antes mesmo que os lábios pálidos esqueçam a fala, As gengivas estão sem dentes, e a voz é fraca; Inquieto se levanta quando ouve a folia Mesmo a doce música falha em encantar seus ouvidos. (...) Antes de quebrar o vaso dourado que contém o cérebro, Antes de quebrar o jarro do manancial do coração, Ou que a roda da vida trepide, e a alma parta. Então, o pó será entregue à terra nativa, A alma se elevará sublime e voará em direção ao céu. (In: Christianson, 2007, p. 230)
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14 O Midrash interpretou as imagens do versículo 4 alegoricamente. As por¬ tas da rua foram vistas como os orifícios da
pessoa, e o despertar com as aves como um medo de bandidos quando se ouve o barulho dos pássaros. Wesley entendia que as portas eram os sentidos, boca e lábios, e o despertar com os pássaros como o resultado da insónia na velhice. À medida que o idoso vai perdendo a mobilidade, o esforço para sair de casa torna-se maior, de forma que as portas da rua são fechadas, e a audição começa a falhar, de modo que o som da moagem diminui. O sono também pode tornar-se vacilante na velhice, pois o barulho das aves faz os homens despertarem, isto é, ao menor ruído (isso contradiz a audição fraca), eles levantam-se tão cedo quanto os pássaros. Ginsburg colocou todo o versículo no contexto da perda da audição, de maneira que “a voz do pássaro se torna fraca, e todos os tipos de música desaparecem” (1951, p. 101). A interpretação literal de Ginsburg vê as portas fechadas por causa da tempestade, e os pássaros (e não os homens) levantando-se em suas atividades perturbadoras de comoção antes da tempestade (1861, p. 460). Jerônimo viu essas portas como as do templo, como parte de sua interpretação dessa passa¬ gem como uma figura da destruição de Jerusalém. O som dos pássaros, então, se refere aos cantores do templo que pararam de cantar como resultado da crise (Kraus, 2001, p. 194). O duplo sentido de portas é um grande indício de que o que está em vista aqui é uma cidade, e não uma casa. Berger vê essa cidade como “um símbolo da ordem humana (talvez a razão?)” que está caindo na destruição (2001, p. 146 n9). Todavia, Coélet também é positivo sobre as possibilidades da ordem (embora limitada). Fox vê um vilarejo ou uma fazenda engajada em uma pro¬ cissão funerária (1999, p. 337). Ele alega que as portas estão fechadas durante o funeral, presumivelmente as portas das casas. Isso não se encaixa bem com o duplo sentido de portas, e é improvável que um vilarejo tivesse portas. Se tivesse, elas estariam abertas para que a procissão funerária pudesse passar em direção ao cemitério. É provável que Coélet não esteja usando a cidade como um símbolo, mas esteja literalmente antecipando a destruição da cidade por causa da possibilidade da guerra. As portas da cidade estariam fechadas por segurança em tempos de guerra, e os profetas falaram de casas desertas e cidades sendo “trancadas” (Is 24.10; Jr 13.19). Rua (súq) é uma palavra rara no AT (ocorrendo apenas em 12.4,5; Pv 7.8; e Ct 3.2). Talvez ela esteja sendo usada no sentido de “mercado”, como numa feira de rua (também o cognato árabe de súq). As portas ou os portões do mer¬ cado estariam fechados durante o tempo de guerra. Neemias fechou os portões
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da cidade para impedir os vendedores de venderem mercadorias no Sábado (Ne 13.19, onde os portões da cidade também são chamados de portas). Se a intenção são imagens de guerra, então o barulho das aves pode des¬ pertar os homens que estão dormindo levemente, porque estão esperando pelo inimigo. O canto também seria suspenso por causa da aflição, logo, as filhas da canção ficariam abatidas (o som de todas as canções lhe parecer fraco, i.e., das cantoras; veja Ct 3.5 ARC, em que “filhas de Jerusalém” significa “mulhe¬ res de Jerusalém”). O vocabulário parecer fraco (“abaixar”) também é usado para humilhar a terra por causa da idolatria (Is 2.8,9; 5.13-15; 29.4; Babour, 2008). 150 versículo 5 transmite a ideia de medo de altura e perigo nas ruas. O Midrash relaciona esse medo à fraqueza e à visão fraca. Essa interpretação também relaciona as flores da amendoeira à espinha dorsal, o gafanhoto aos tornoze¬ los inchados da velhice, e o desejo ao desejo sexual. Wesley viu, nesse versículo, uma referência ao medo de tropeçar na velhice, aos cabelos brancos (flores da amendoeira), à incapacidade de carregar fardos (gafanhoto), e à perda do dese¬ jo de alimentar-se. A palavra desejo (há ãbiyyôna) é uma palavra única no AT, mas o significado “alcaparra” é afirmado no hebraico pós-bíblico, e foi assim que as traduções antigas a entenderam. A alcaparra era um estimulante do ape¬ tite, e o Midrash ligou-a ao desejo sexual. Em breve, a morte vem, e o homem se vai para o seu lar eterno. Coélet já argumentou, em consonância com o restante do AT, que não há vida significa¬ tiva após a morte. Seu lar eterno é, portanto, simplesmente o túmulo, que é o lugar sem retorno. A tradução literal é casa da sua eternidade ( bêt ôlãmô), que não ocorre em nenhum outro lugar na Bíblia, mas era um conceito comum em fontes não bíblicas (Healey, 2001, p. 174). Youngblood traduz a frase como “casa escura”, referindo-se também ao túmulo (1986, p. 408). Uma interpretação literal desse versículo traz imagens da primavera, quan¬ do a estação chuvosa chega, e as lavouras começam a amadurecer. Essa é a épo¬ ca comum das guerras. A amendoeira floresce (antes de acabar a estação das chuvas), o gafanhoto está cheio e pesado e mal consegue mover-se, e as alca¬ parras estão explodindo. Ginsburg viu o terror no versículo 5 como o medo de uma tempestade na altura (céu) (1861, p. 461). Ele também traduziu quando florir a amendoeira (...) como “a amendoeira será desprezada, e o gafanhoto será abominado”, já que a preocupação com a tempestade iminente obscurece¬ ria qualquer desejo de iguarias. A alcaparra (desejo) também seria uma dessas iguarias. O versículo encerra-se com a morte iminente e os pranteadores já nas ruas, prontos para o funeral.
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Com o cenário do tempo de guerra em vista, as alturas seriam as muralhas da cidade que, quando escaladas, revelariam o inimigo invasor (Dt 3.5); ou as coli¬ nas ao redor (Is 30.25) pela mesma razão. Fox sugere que se deve entender altura como um epíteto para Deus (Jó 22.12) (1999, p. 327). Talvez o significado seja medo do grande rei, isto é, do imperador conquistador (Ec 5.8). A referência a ruas, provavelmente, é para ser relacionada com as referências às ruas e às praças da cidade nos lamentos (Lm 2.11,12,19; 4.1,5,14,18; Barbour, 2008). Se isso es¬ tiver correto, então o versículo 5 reflete a destruição deixada pela guerra. 16 Coélet continua seu conselho no versículo 6. A NVI faz uma conexão en¬ tre antes que se rompa o cordão de prata, no versículo 6, com “antes que ve¬ nham os dias difíceis”, no versículo 1, e fornece as palavras lembre-se dele (que não estão no TM). A relevância do cordão de prata e da taça de ouro não é óbvia, mas é frequentemente explicada como uma lamparina feita de uma taça de ouro, suspensa por um cordão de prata, e, quando o cordão se arrebentou, a taça caiu e quebrou-se (Ginsburg, 1861, p. 465). O Midrash interpretou o cordão de prata, no versículo 6, como a espinha dorsal e o crânio, e o cântaro como o estômago. Wesley viu o tutano da coluna vertebral e as membranas do cérebro, e também as veias (o cântaro), as artérias (roda) e os ventrículos do coração (fonte e poço). Estes podem ser considerados metáforas para a morte, e, já que os objetos são positivos (metais preciosos, água fresca), Gammie vê aqui uma afirmação dos aspectos positivos da vida (1989, p. 52). Uma lâmpada apagada é uma metáfora para morte em Provérbios 13.9 e também é o cordão rompido na mitologia grega (Murphy, 1992, p. 120). O leitor deve lembrar-se do Criador na juventude e não esperar até a velhice ou até mesmo a morte. Um cântaro e uma roda quebrados não podem conter ou tirar a água, que é neces¬ sária para a vida (a roda quebrada pode ter levado o cântaro a cair e quebrar-se; Lohfink, 2003, p. 141, nota que as rodas eram usadas nos poços na Palestina a partir do terceiro século a.C.). Então, eles também são considerados metáforas para a morte. Considerando-se, literalmente, como se apontasse para uma invasão imi¬ nente, a referência ao cordão rompido e à taça de ouro quebrada trazem à men¬ te os despojos tomados na guerra (Barbour, 2008). A prata não está rompida, mas “distante” (yirhaq, ketib), isto é, levada para longe, para a terra do conquis¬ tador (o lõ ’ não nega a distância, mas faz parte da expressão que significa antes, ad 'ãser lõ ’). O cântaro despedaçado e a roda (ou “panela”; veja Dahood, 1952, p. 217) fazem parte da destruição da guerra e simbolizam a falta de água potável e de outras provisões na sequência da guerra (Lm 5.4). Eles também contribuem para o tom geral da desolação, já que um poço cm funcionamento
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era um ponto de encontro nas cidades antigas. Essa desolação é um tema dos la¬ mentos da cidade, como Lamentações (1.1; 5.18; veja Jr 9.10; Barbour, 2008).
A palavra cordão (hebel) é, impressionantemente, similar a hebel (“vaida¬ de”) e talvez tenha a intenção de trazer à mente os versículos anteriores que advertiam que a prata (dinheiro) não traz uma satisfação duradoura (5.10). Nesse contexto, ela facilmente se perde. A palavra cordão (hebel) pode ter mui¬ tos significados, tais como: “cordão”, “território”, “faixa”, “armadilha”, “linha de medir”. Talvez o mais adequado nesse contexto seja “herança” (Dt 32.9; BDB 286b), que tem sido um tema importante em Eclesiastes, com vocabulário di¬ ferente (heleq, Ec 2.10). Uma porção de prata poderia facilmente ficar perdida como despojo de guerra, então, ela deve ser desfrutada no presente. ■7 Pela simples observação, os antigos hebreus percebiam que o corpo huma¬ no decomposto virava pó. Analisando ao contrário, eles presumiam que o pó fosse a matéria-prima do corpo humano. Logo, na morte, o pó volta à terra, de onde veio. Esse entendimento é refletido em Génesis 2.7 e 3.19, nos quais Deus pegou um pouco de pó da terra ( 'ãdãmâ) para fazer o primeiro homem ( ’ãdãm). O que tornou o 'ãdãm inanimado em um “ser vivente” foi o “fôlego de vida” que Deus soprou nas narinas do primeiro homem (Gn 2.7). A vida é, então, um presente de Deus. Logo, pela simples lógica, Coélet presume que o fôlego da vida (espírito, rúah) retorna a Deus, que o deu, assim como o corpo retorna ao pó de onde se originou. Isso não é um espírito ou uma alma no senti¬ do grego (platónico), em que uma entidade pessoal pode existir fora do corpo. É meramente um reconhecimento de que Deus é o doador da vida.
George Sandys sobre a morte (1638) O homem deve, finalmente, para a sua eterna casa descer:
Veja, os pranteadores às suas portas atendem. Aconselha-se, antes que o cordão de prata fique fraco;
Antes que a taça de ouro se rompa: Antes que o cântaro se quebre na fonte; Ou a roda desgastada da cisterna se quebre. Homem, feito de terra, nela se desintegra: Sua alma sobe para Deus, de onde veio.
Ó incansável vaidade de vaidades! (In: Christianson, 2007, p. 235)
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A PARTIR DO TEXTO
Generosidade Eclesiastes não tem sido um defensor do pobre e do oprimido, diferente¬ mente dos Profetas. As poucas referências à opressão dão mais a impressão de um espectador desinteressado (4.1; 5.8). No entanto, numa enigmática metᬠfora de lançar o pão sobre as águas, Coélet aconselha a generosidade (11.1,2). Não existe garantia nesse conselho de que Deus será generoso e multiplicará a recompensa pela generosidade de alguém. Qualquer demonstração de gene¬ rosidade por motivos egoístas ou lucrativos seria designada inútil (hebet) por Coélet.
Mistério da retribuição De acordo com a retribuição padrão, a pessoa, verdadeiramente, sabe que desgraça poderá cair sobre a terra (11.2), porque a impiedade leva à desgraça, e a retidão leva à bênção. Contudo, no mundo real, o futuro é menos contro¬ lado; enquanto as árvores permanecem onde caíram, o vento e a chuva são menos previsíveis. O conhecimento do futuro pertence somente a Deus, e o ato de preocupar-se com isso acarretará na perda da alegria.
Goze a vida Portanto, deve-se desfrutar da vida, e não preocupar-se com ela ou controlá-la. Sem dúvida, tempos difíceis virão na velhice ou em um desastre nacional,
por isso, a juventude fugaz deve ser desfrutada dentro dos limites do temor a Deus, que, certamente, trará o julgamento (11.9). A filosofia popular de “ Car¬ pe diem (aproveite o dia) ” é matizada por Coélet em direção a “aceitar a dádiva” (Davis, 2000, p. 182).
Temor a Deus A vida é para ser vivida e desfrutada no temor de Deus e em pleno re¬ conhecimento da possibilidade de tempos difíceis e do fim da alegria na vida no futuro. Enquanto isso, Coélet convida o seu público a viver a vida em sua plenitude - a engajar-se no trabalho cotidiano, edificando a vida e os relacio¬ namentos e fazendo coisas que trazem satisfação à vida - antes que venham os
dias difíceis (12.1). O conselho lembre-se do seu Criador é outra forma de conselho para temer a Deus, que pode ser imprevisível até certo ponto, não obstante, deve
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ser obedecido. Esse relacionamento com Deus deve ser para a vida toda, e não se deve esperar pelas aflições da velhice ou da morte prematura, pois ninguém sabe quando virá a sua hora (9.12).
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XIV. PALAVRAS AGRADÁVEIS (TEMA E EPÍLOGO) (12.8-14) POR TRÁS DO TEXTO A unidade final segue os temas complexos do livro com um epílogo uni¬ dimensional, que parece refletir a teologia padrão da sabedoria mais do que o tratamento matizado do restante do livro. Em vez dos valores e das limitações da sabedoria, a sabedoria é apresentada apenas como positiva. Em vez do mis¬ tério da retribuição, a justiça é apresentada como certeira. O tema padrão da sabedoria do temor a Deus é repetido, com o acréscimo de uma admoestação para guardar-se os mandamentos de Deus, um tema que não está presente em
nenhum outro lugar em Eclesiastes. Embora Coélet esteja dialogando com o ensino padrão da sabedoria ao longo do livro, o epílogo reflete a tradição em termos mais tradicionais. Ela identifica Coélet como um mestre (hãkãm) da sabedoria que comunicava o conhecimento ( da 'ai) e transmitia provérbios (ou comparações, mésãlim). O
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fundamento da literatura da sabedoria, o temor a Deus (geralmente, o temor do Senhor, fora de Eclesiastes) é recomendado, juntamente com o ato de guar¬ dar os mandamentos. E a doutrina padrão da retribuição é expressa inequi¬ vocamente: Deus trará a julgamento tudo o que foi feito (12.14), embora Coélet tenha gastado uma boa parte do livro tentando matizar essa doutri¬ na (enquanto se recusa a abandoná-la). Parece que o epílogo é o produto de mestres tradicionais da sabedoria que desejavam preservar os ensinamentos de Coélet, mas, ao final, não estavam convencidos de sua perspectiva (veja von Rad, 1972, p. 238) ou talvez desejassem impedir uma distorção por aqueles que ainda não estavam prontos para esse tipo de nuance. O gênero da unidade final é a reflexão e a instrução (veja v. 13). O valor numérico das consoantes hebraicas em tudo sem sentido! Sem sentido! (...) Nada faz sentido {hbl hblym... hkl hbl, v. 8) é 216, que é o mesmo número de versículos até esse ponto (Wfight, 1980, p. 43). Os versículos 8-14 podem ser esboçados como segue: Tema: vaidade de vaidades (12.8) O valor da sabedoria (12.9-12) O temor a Deus e a justiça (12.13,14)
NO TEXTO
A. Tema: vaidade de vaidades (12.8) 18 As palavras de Coélet terminam em 12.8 com os dizeres característicos: “Tudo sem sentido! Sem sentido!”, diz o mestre. Despois de ler o livro de Eclesiastes, o significado da palavra hebraica hebel (sem sentido) pode ser determinado melhor. Às vezes, Coélet usou-a para significar “absurdo” (ex.: 4.7,8), mas, muitas outras vezes, ela significou “ilusão” (ex.: 8.10,14 NTLH) ou “sem proveito” (ex.: 6.12). A vida é difícil de entender (incompreensível), porque somente Deus conhece o quadro completo. A vida também é tempo¬ rária, fugaz, efémera, porque somente Deus vive para sempre. Os homens an¬ dam na terra “debaixo do sol” por um período relativamente curto e, depois, morrem sem um futuro significativo (segundo a teologia do AT). Já que a vida é incompreensível, temporária e, em alguns casos, insignificante, tudo o que se pode fazer é aceitar a soberania de Deus, desfrutar do que Ele tem dado e viver contente.
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Esse versículo forma uma inclusão com 1.2, que é quase idêntico (em al¬ guns manuscritos e no Targum, ele é idêntico). Esses dois versículos podem ter sido compostos pelo autor, já que usam o vocabulário dele. Porém, essa frase generalizada não é usada no corpo do livro, então, ela parece ser obra de um editor. O artigo é usado por Coélet (mestre) somente aqui em 12.8 (exceto 7.27, que pode ser um erro do escriba).
B. O valor da sabedoria (12.9-12) 190 verbo
na primeira pessoa domina Eclesiastes, exceto nos primeiros dois versículos e no epílogo (12.9-14). Muitas sugestões têm sido feitas con¬ cernentes aos acréscimos feitos ao livro, mas essa conclusão editorial apresen¬ ta a mais clara evidência de um acréscimo, já que o livro é apresentado como obra de uma terceira pessoa. É possível que haja mais de uma conclusão edi¬ torial representada aqui, pois três pensamentos distintos são apresentados (v. 9,10,11,12,13,14). O primeiro é uma afirmação sobre a sabedoria de Coélet e suas atividades como mestre da sabedoria. Ele é muito positivo quanto a Coélet e pode ter sido escrito por um de seus alunos (Murphy, 1992, p. 125). A apresentação do ponto de vista de Salomão nos capítulos 1 e 2 não está refletida nesse sumário. Coélet é lembrado como um mestre da sabedoria, e não como um rei. O adjeti¬ vo hãkãm (sábio) pode ser usado como substantivo no sentido técnico de um professor profissional de sabedoria. Coélet era sábio e professor de sabedoria. Ele ensinou conhecimento ao povo e também examinou e colecionou muitos provérbios (12.9). Essas são atividades comuns de um mestre da sa¬ bedoria, e o mesmo pode ser dito a respeito de Salomão. Eclesiastes contém alguns provérbios, mas, diferentemente do livro de Provérbios, não é uma coleção de provérbios. Algumas vezes, Coélet desafiava os provérbios que ele citava, o que é consistente com a sua rejeição da simplificação demasiada do ensino padrão da sabedoria. Coélet realmente fez muitas comparações, que é o sentido literal de provérbios ( mésãlim). Um dos temas principais do livro é o lucro ou o ganho (yitrôn, yõtêr), e esse vocabulário aparece no versículo 9 {yõtêr, além de). O início do versículo é, literalmente: Como lucrou/ganhou (ou além disso), Coélet era mestre da sabe¬ doria. Tendo declarado, de forma pessimista, que não há proveito na vida (ex.: 1.3), o livro termina com um indício de que o ensino de Coélet talvez trouxera lucro, afinal (veja também 7.11).
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H 10 O versículo seguinte quase se lê como uma defesa de Coélet face ao criticismo, talvez por suas contradições ou visões não ortodoxas. Suas palavras são
defendidas como agradáveis (palavras certas), e o que ele escreveu era reto e verdadeiro (v. 10; veja SI 19.9; Pv 8.8). Esses dois versículos (9,10) seriam um fim adequado para o livro, mas ainda tem mais. 111 Os versículos 11 e 12 fazem uma declaração geral sobre o valor da sa¬ bedoria. Isso é consistente com outras afirmações feitas no livro, mas Coélet também não demora a apontar as limitações da sabedoria. Essa adição edito¬ rial pode ser um contrabalanceamento para essas afirmações sobre as limita¬ ções da sabedoria, ou uma defesa do valor de Eclesiastes, apesar dos elementos heterodoxos. Finalmente, os ditados dos mestres da sabedoria vêm de Deus (único Pastor, SI 23.1; 28.9), mas eles não são sempre fáceis de aceitar (os reis eram tidos como pastores, então, é possível que se esteja pensando em Salomão aqui). Eles podem ser como aguilhões ferroando alguém para viver melhor, mas também são como pregos bem fixados (v. 11), verdades atemporais que não serão abaladas. Três palavras raras ocorrem nesse versículo. A coleção dos seus di¬ tos ( ba ãlé ãsuppôt) não ocorre em nenhum outro lugar no AT e significa “assembleia de doutores” no hebraico pós-bíblico (Whybray, 1989, p. 172). Aguilhões (dãrêbõnôt) são o equivalente antigo para a vara dc conduzir o gado (varas pontudas), e essa palavra é peculiar, mas uma palavra relacionada a essa significa “instrumento afiado” em 1 Samuel 13.21. Em um epílogo semelhante ao do documento egípcio Instruction ofAni, o “filho” é incitado a ser como um animal e a ouvir e a aprender o que fazer (Seow, 1997, p. 61). A palavra pregos (;masmèrôt) é peculiar aqui, mas é encontrada com uma grafia alternativa em Jeremias 10.4 e 2 Crónicas 3.9. Segundo Delitzsch, esses pregos são de ferro; existe outra palavra para cravos de madeira para tendas {yãtêd, Jz 4.21) (1875, p. 435). 1 12 O versículo 12 usa o vocativo comum da literatura da sabedoria , meu filho, que não é usado em nenhum outro lugar em Eclesiastes, embora o tom do livro seja direcionado aos jovens, e o vocabulário alternativo seja usado com o mesmo significado (bãhur, 11.9; 21.1; veja Pv 1.8,10,15; 2.1; 3.1; 4.1 etc.). Diferentemente do primeiro epílogo, que começou em 12.9 e parecia com pa¬ lavras de um dedicado aluno de Coélet, o uso de meu filho dá o tom de outro professor da sabedoria acrescentando a sua contribuição. Há uma advertência para não acrescentar nada às palavras do sábio, e, no entanto, esses dois versículos (11,12) parecem ser um acréscimo. Será que esse
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editor está fracassando em seguir o seu próprio conselho? (veja 3.14; Dt 4.2; 12.32; Jr 26.2; Sir. 18.6; Ap 22.18,19) Não está claro, porque deveria haver um retrato negativo quanto à multiplicação de livros, ou uma advertência contra acrescentar provérbios de sabedoria. Seria de esperar-se que um professor de sabedoria achasse o estudo refrescante, e não cansativo. Em Eclesiastes, é o tolo que se cansa com muitas palavras (5.3,7; 6.11; 10.12-14). A palavra estudar (lahag) é peculiar e pode estar relacionada a hag (“meditação”) ou hãgâ (“estudar”). Uma palavra árabe semelhante significa “ser dedicado” (BDB 529).
Horácio sobre o aprendizado Consulte, com cuidado, a página do entendido,
Pergunte a cada sábio das ciências, Como você pode flutuar com facilidade Sobre as correntes dos seus dias. (In: Ginsburg, 1861, p. 476)
C. O temor a Deus e a justiça (12.13,14) I 13 Apesar das advertências para não acrescentar nada aos dizeres do sᬠbio, os versículos 13 e 14 parecem ser outro acréscimo. Isso está um tanto consistente com o ensinamento de Coélet, mas pode ter sido fornecido para garantir que o equilíbrio terminasse longe dos pronunciamentos mais cínicos
do livro. A conclusão do assunto é, literalmente, o fim do assunto/da palavra/da coisa ( sôp dãbãr), que é uma expressão idiomática pós-bíblica para “concluin¬ do, finalmente” (Ginsburg, 1861, p. 477). A conclusão tema a Deus é um en¬ sino padrão da sabedoria refletido em Eclesiastes seis vezes (3.14; 5.7; 7.18; 8.12,13:12.13) e forma uma inclusão na estrutura do livro de Provérbios (1.7; 31.30). Guardar os seus mandamentos não é uma ênfase comum na literatura da sabedoria, embora Jó alegue que ele não se apartara dos mandamentos de Deus (Jó 23.12). Outras referências aos mandamentos emjó são de Deus ordenando a natureza (Jó 9.7; 36.32; 37.12,15; 38.12; 39.27; vejaPv 8.29). Os mandamentos
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em Provérbios são
geralmcntc dados por pais ou professores (Pv 2.1; 3.1; 4.4; 6.20,23; 7.1,2; veja também 10.8; 13.13; 19.16). Guardar os mandamentos não havia sido mencionado em Eclesiastes de forma alguma, exceto numa ordem se¬ melhante a obedecer ao rei (8.2,5). O temor de Deus é mostrado como uma analogia do temor ao rei em Provérbios 24.21. A literatura da sabedoria bíblica geralmente se concentra mais na condição humana do que na história de Israel. Provérbios, Jó, Cantares e Eclesiastes não mencionam as promessas a Abraão, o êxodo, a Lei de Moisés concedida no monte Sinai ou o período do deserto. A palavra lei (tôrâ) é encontrado três vezes em Provérbios (1.8; 6.20; 13.14), mas é usada no sentido geral de “ensinar”, e não no sentido técnico da Lei de Moisés. Há uma forte conexão entre o temor do Senhor e a obediência aos Seus mandamentos (Dt 5.29; 6.2,24; 8.6; 13.4; 1 Sm 12.14; 2 Rs 17.34; SI 112.1).
O temor de Deus fez com que as parteiras do Egito não acatassem os manda¬ mentos do Faraó (Êx 1.17), e o temor do povo foi a desculpa do rei Saul para obedecer ao Senhor (1 Sm 15.24). ■ 14 No decorrer de Eclesiastes, Coélet foi crítico da doutrina da retribuição, embora não desistisse dela completamente. No acréscimo editorial do versícu¬ lo 14, a validade da doutrina é reiterada. O julgamento de Deus prevalecerá e deve permanecer como uma motivação para a justiça, já que até as ações escon¬ didas serão trazidas a juízo (veja 11.9). A natureza abrangente do julgamento mostra que isso é um julgamento divino, pois os homens não conseguiriam co¬ nhecer tudo o que estava escondido. Entretanto, isso não exige um julgamen¬ to escatológico (contra Ginsburg, 1864, p. 478), já que o julgamento divino ainda pode ser trazido nesta vida. Todavia, o NT não usa essa linguagem para um julgamento futuro (Rm 2.16; 1 Co 4.5; 1 Tm 5.24,25).
Delitzsch sobre o temor de Deus (1985) A sentença eth-haelohim yêra ("temor a Deus"), que se repete no
versículo 6, é o cerne e a estrela de todo o livro, a maior exigência moral que mitiga seu pessimismo e esvazia o seu eudemonismo (p. 438).
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A PARTIR DO TEXTO
Vaidade ( hebel ) O tema editorial do livro, “vaidade de vaidades” (ARC) (Tudo sem senti¬ do! Sem sentido! ), é repetido no versículo 8 como uma inclusão. Trinta e oito vezes a palavra é usada com nuances diferentes, mas, somente em 1.2 e 12.8, a frase “vaidade de vaidade” é usada, o que sugere que essa caracterização do livro seja simplista demais e extensiva. Toda a vida não é sem sentido e absurda, já que há muito o que ser desfrutado na vida, e Deus deve ser temido.
Temor a Deus O temor a Deus é um tema importante na literatura da sabedoria e não está faltando no livro de Eclesiastes, apesar das questões sobre a justiça e a hora de Deus. O que é peculiar nesta unidade é a referência à guarda dos mandamentos de Deus. Enquanto a obediência ao rei (8.2) sugere a obediência a Deus, e a conduta diante de Deus deva ser apropriada (5.1,2), os mandamentos como um código específico não são mencionados em outro lugar em Eclesiastes (ou Provérbios); isso indica que esse acréscimo seja mais uma preocupação para o editor do que foi para o próprio Coélet.
O valor da sabedoria e da retribuição Como um todo, o epílogo defende Coélet, mas também defende os dois elementos principais do ensino da sabedoria que ele tentou matizar, a saber, a sabedoria e a retribuição. O valor de cada um foi retido por Coélet, mas ele, aparentemente, sentiu que o seu público estava pronto para sair da simplifi¬ cação demasiada inerente nas primeiras lições dos professores da sabedoria. Os mestres da sabedoria que preservaram os seus escritos, de modo aparente, acrescentaram esse epílogo para ter certeza de que seus leitores não iriam muito longe na outra direção. O epílogo nos adverte contra a tentação de ler o livro simplisticamente, sem dar uma atenção cuidadosa ao retrato de Coélet sobre as complexidades da vida.
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LAMENTAÇÕES
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J.
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INTRODUÇÃO A LAMENTAÇÕES
O livro de Lamentações é uma coleção de cinco salmos que lamentam a queda de Jerusalém. Eles são amplamente uma expressão de angústia e contêm pouquíssima informação sobre os acontecimentos históricos que causaram esse sofrimento. Ao contrário, eles fornecem detalhes da desolação e da vergonha, expressões de emoção, acusações contra Deus e, às vezes, sugestões de arrepen¬ dimento e vislumbres de esperança. Os poemas atribuem soberania a Deus e aceitam as ações do exército invasor como atos justificados de Deus. A escrita nega uma profunda crença de que Deus se reverterá no mais verdadeiro Deus de fidelidade e amor. O leitor é convidado a compartilhar do horror da experi¬ ência e a perguntar se Deus dará um fim ao sofrimento.
A. Autoria O livro de Lamentações, como quase todos os livros bíblicos, é anónimo. O nome de um livro bíblico pode, às vezes, sugerir a autoria ou uma tradição de autoridade. Esse é o caso do livro de Amós, que contém a pregação de Amós, ou do Evangelho de Lucas, que se crê ter sido escrito por Lucas. O nome do livro de Lamentações não é o nome de uma pessoa, portanto, não ajuda nesse sentido. Ele é uma tradução da antiga designação rabínica qinôt (via latina e gre¬ ga). O nome hebraico mais antigo é 'êkâ (“como”), seguindo o costume hebraico
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de dar nome aos livros de acordo com a primeira palavra usada (ou uma palavra próxima do início). Embora o nome “Lamentações” não sugira autoria, muitos manuscritos hebraicos acrescentam “de Jeremias” ou “de Jeremias, o profeta”
(Hillers, 1972, p. xvii). A Septuaginta ainda identifica o livro com Jeremias por meio de uma frase introdutória, indicando que o que segue é um lamento de Jeremias, de quando ele estava chorando por Jerusalém. Harrison sugere que essa tradição ampla¬ mente seguida resultara de um engano de 2 Crónicas 35.25, que afirma que o lamento de Jeremias pelo rei Josias foi registrado em “as lamentações” {haqqinôt). Aparentemente, Josefo também identificou esse lamento sobre Jeremias com o quarto poema do livro de Lamentações. Todavia, Lamentações 4 é sobre Je¬ rusalém, e não sobre um rei ou outro indivíduo (Harrison, 1969, p. 1069). A referência ao rei em 4.20 deve ser de Zedequias, o rei da época da conquista babilónica de 586 a.C. (Hillers, 1972, p. xx). Muitos estudiosos têm concentrado o estudo da autoria na refutação do entendimento tradicional de que Jeremias seja o autor, começando por H. von der Hardt, em 1712 (Hillers, 1972, p. xix). Embora haja semelhanças entre Jeremias e Lamentações em termos de estilo, há também significativas ligações com outros livros (Ez, Is 40 46, Sl) e diferenças importantes de teologia entre Jeremias e Lamentações. Não há informação suficiente para se ter certeza da autoria de Lamenta¬ ções, mas os intérpretes têm sugerido uma origem nos círculos proféticos ou de sabedoria, um cenário de realeza ou (a sugestão mais popular) os cantores do templo (Miller, 2002, p. 11). A autoria de Jeremias é apoiada por Wood e McLaren (2006, p. 353); Keil (1873, p. 339,350); Hall (1969, p. 344); Gray (1966, p. 504); e Huey (1993, p. 443).
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B. Data A tradição sempre tem sustentado que o livro de Lamentações foi escrito logo após a destruição de Jerusalém em 586 a.C. Os eruditos modernos estão em concordância, porque os horrores da catástrofe parecem estar frescos na mente do autor. E, também, embora haja algum vestígio de esperança no ter¬ ceiro poema, não existe aquele otimismo que é encontrado na literatura pós-exílica posterior. Isso sugere que o livro de Lamentações fora escrito mais pró¬ ximo à queda de Jerusalém, e ainda durante o exílio.
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Isso não é conclusivo, entretanto, porque os poemas podem ter sido escri¬ to mais tarde por um poeta experiente que transmitiu o sentido de iminência. Esse foi o caso dos lamentos sumerianos sobre a cidade, que foram escritos 50 anos após a tragédia (Berlin, 2002, p. 33).
C. Local de origem Os eruditos presumem que o livro de Lamentações se originara na Palesti¬ na, por causa da especificação dos detalhes que ele fornece e por causa da falta
de interesse dos que foram exilados para a Babilónia (Hillers, 1972, p. xxiii). Provan adverte que isso também não é conclusivo (1991, p. 11). Alguém fa¬ miliarizado com a Palestina poderia ter escrito sobre ela de algum outro lugar.
D. Ocasião A queda de Jerusalém para os babilónios em 586 a.C. foi, aparentemente, a ocasião que deu início ao livro de Lamentações, embora a certeza disso tenha sido contestada (Provan, 1991, p. 12,13; Bergant, 2003, p. 14; mas veja Salters, 1994, p. 77,78). Os babilónios controlaram a Palestina após derrotarem Nínive, a capital assíria (612 a.C.), e o exército assírio em Carquemis (605 a.C.). Nabucodonosor, então, tornou-se rei da Babilónia e sitiou Jerusalém quando o
reijeoaquim se recusou a pagar os tributos. Jeoaquim morreu durante o cerco, c o seu filho Joaquim rendeu-se a Nabucodonosor três meses depois, em 597 a.C. Isso livrou Jerusalém da destruição, mas somente por dez anos. Os babi¬ lónios levaram Joaquim e outros para a Babilónia como cativos e colocaram Zedequias (irmão de Joaquim) como um rei marionete sobre Judá. Cerca de dez anos depois, Zedequias rebelou-se contra Nabucodonosor. Isso acarretou outra invasão babilónica contra Judá e a destruição da cidade em 586 a.C. A tragédia de 586 a.C. significou uma grande perda para o povo de Judá, que acreditava que Deus sempre o protegeria e a sua cidade. Essas pessoas acreditavam que um descendente de Davi sempre reinaria em Jerusalém (2 Sm 7). Criam também que o templo, como uma representação da morada de Deus, nunca seria destruído (Jr 7; 26.9). A perda do rei e do templo significou uma crise teológica. Também ficaram perdidas a língua (o aramaico substituiria o hebraico no exílio), a terra (muitas pessoas foram deportadas para a Babilónia) e a independência. A tragédia está registrada em 2 Reis 25, em Jeremias 52 e também na Babylonian Chronicle (Pritchard, 1969, p. 563,564; Matthews e Benjamin, 2006, p. 195-197).
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E. Propósito O livro de Lamentações foi escrito como uma expressão de angústia para aquela comunidade que perdeu o templo e a terra. Outra literatura bíblica trata da crise de modos variados. O Salmo 137 também expressa angústia, em Reis, o exílio é explicado como o resultado do pecado (2 Rs 24.3), e Isaías 40-55 procura oferecer conforto. O livro de Lamentações também tem um propó¬ sito teológico. Ele responde às questões levantadas pela derrota de Jerusalém (Gottwald considera as questões teológicas como primordiais; 1962, p. 48). Com o passar do tempo, as Lamentações passaram a ser usadas na liturgia para comemorar a destruição de Jerusalém.
F. Questões sociológicas e culturais Lamentação Os sinais externos do luto no antigo Israel eram jejum, abstenção sexual, lamentos, jogar pó ou cinzas nos cabelos, rasgar a roupa, vestir panos de ania¬ gem e sentar-se no chão. Aniagem era a vestimenta do pecador nos documen¬ tos babilónicos (Gunkel, 1933, p. 126; veja Sl 30.11; 35.13; Is 58.5; Jó 16.15). Regozijar-se (o oposto do luto) estava associado às celebrações sacrificiais (Dt 12.11,12; 27.7). Isso implica que o luto e a perda do sistema sacrificial andam juntos (assim como regozijar-se e louvar; Sl 34.1,2). Já que se acreditava que os mortos não podiam louvar a Deus (Sl 6.5), estar de luto era como estar no Sheol, a terra dos mortos (Lm 3.6). Isso demonstra a distância de Deus que o pranteador sente e experimenta. A destruição do templo torna essa realidade permanente. Desde que não haja um templo onde louvar a Deus, toda a na¬ ção permanece em estado de luto e não pode regozijar-se. Ir para o exílio em outro país reforça essa distância de Deus. As repetidas petições para que Deus ouça, veja, lembre, preste atenção e leve-os de volta são suplicas pelo conforto do acesso a Deus. Esse conforto não é encontrado no livro de Lamentações (Berlim, 2002, p. 15,16).
Lamentando pela cidade Lamentar a queda de uma grande cidade é um ato conhecido em outras culturas do antigo Oriente Próximo. Cinco documentos estão preservados, os quais lamentam a queda de Ur, incluindo Lamentation over the Destruction
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of Ur (Pritchard, 1969, p. 455-463; Harrison, 1969, p. 1065). Há também documentos mais recentes (do século 18 ao segundo a.C.) que podem fornecer um pano de fundo mais relevante para Lamentações (Longman, 2008, p. 334).
G. História textual e composição O texto hebraico de lamentações está bem preservado, e as variações da an¬ tiga tradução grega (Septuaginta) não parecem apontar para um texto hebraico diferente, mas, ao contrário, para erros dos escribas na transmissão do texto gre¬ go (Harrison, 1969, p. 1071). Isso significa que as antigas versões não são tão úteis como poderiam ser quando o texto hebraico é difícil; isso significa tam¬ bém que as emendas conjecturais são mais comuns para Lamentações (Hillers, 1972, p. xxxix). Existem pequenos fragmentos de Lamentações nos Pergami¬ nhos do mar Morto, e também fragmentos de poesias que citam Lamentações (Berlin, 2002, p. 36). O texto hebraico completo encontra-se no Códice de Leningrado (1008 d.C.), mas não no Códice de Aleppo (ca. 930 d.C.). Diferentemente de Eclesiastes, o lugar de Lamentações no cânone nunca foi questionado (Salters, 1994, p. 69). Nas Bíblias em inglês, o livro de Lamen¬ tações segue o de Jeremias, mas, na Bíblia hebraica, ele é separado dos profetas e fica localizado na seção das Redações (kétúbim). Ele é também um dos cinco pergaminhos (mègillôt) que são lidos nas sinagogas nos dias de festas (como Eclesiastes). O livro de Lamentações é lido no nono dia de Ab, que é o dia em que se comemora a queda de Jerusalém. Algumas liturgias cristãs incluem par¬ tes de Lamentações na Quinta-Feira Santa [Lava-Pés], Sexta-Feira da Paixão e
Sábado Santo. O uso litúrgico tem determinado a ordem em muitas Bíblias hebraicas publicadas hoje. Os cinco pergaminhos são organizados de acordo com a ocor¬ rência deles no calendário judaico (Cantares, Rute, Lamentações, Eclesiastes, Ester). A edição crítica da Bíblia hebraica, porém, segue a ordem do Códice de Leningrado (o manuscrito completo mais antigo), que segue uma perceptiva ordem cronológica para os cinco pergaminhos (Rute, Cantares, Eclesiastes, Lamentações e Ester) (Hillers, 1972, p. xvii). Enquanto os elementos de Lamentações podem ter tido uma história in¬ dependente antes de serem coletados e agrupados ou dada a estrutura deles como acrósticos, a natureza dessa história não pode ser descoberta com certe¬ za, e o livro forma um todo coerente a partir da forma como se encontra agora (Provan, 1991, p. 17; Hillers, 1972, p. xxii).
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H. Caraterísticas literárias 1. Gênero Hermann Gunkel foi o pioneiro da análise do gênero dos Salmos; sua obra continua relevante para Lamentações, que compartilha diversas características estilísticas com os Salmos. O gênero mais comum no livro de Salmos é o la¬ mento ou o salmo de reclamação. Lamentações 5 reflete as características desse gênero (parcialmente). Gunkel admite que a ordem dos poemas seja mista, embora ele categorize os capítulos 1, 2 e 4 como cânticos fúnebres e o capítulo 3 como um lamento individual (1933, p. 95,121). Porque o livro todo lamenta um desastre comunitário, até o capítulo 3 realmente reflete a voz da comunida¬ de (Gottwald, 1962, p. 34; Soggin discorda [1989, p. 459]). As expressões clássicas da canção fúnebre foram ocasionadas na morte de Saul e de Abner (2 Sm 1.17-27; 3.33,34; veja Am 5.1,2). Os elementos essen¬ ciais são um anúncio da morte, uma expressão de angústia, um convite ao luto, e o uso da palavra “como”. A canção fúnebre difere fundamentalmente do la¬ mento, no sentido de que as circunstâncias não podem ser revertidas quando alguém morre. No lamento, entretanto, há uma petição para que o Senhor re¬ verta a sorte (Berlin, 2002, p. 24). Os poemas de Lamentações não possuem os elementos essenciais da can¬ ção fúnebre (ex.: o anúncio da morte) e acrescentam elementos estranhos a esse gênero (ex.: apelo ao Senhor). Essa importante modificação da forma le¬ vou Hillers a declarar que a crítica da forma é relativamente de pouca ajuda na interpretação de Lamentações (1972, p. xxviii). Todavia, enquanto a forma padrão das canções fúnebres e dos lamentos não se aplica a Lamentações (exce¬ to o capítulo 5), a imagem e os elementos desses gêneros podem estar relacio¬ nados a Lamentações. O mesmo é verdadeiro para os lamentos das cidades, que possuem muitos elementos em comum com Lamentações, mas não o formato rígido do qual Lamentações é dependente. Tais elementos incluem uma lista de deidades que abandonaram os seus templos, o uso da palavra “como”, um decreto divino de destruição, uma descrição da destruição, deidades que agiram como inimigos, e uma oração para que as deidades retornem (Longman, 2008, p. 333; veja também Bergant, 2002, p. 8,10). O livro de Lamentações é um clamor por uma cidade caída com elementos de lamúria pela cidade, canção fúnebre e lamento (comunitário e individual).
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A natureza eclética do livro levou Morse a sugerir a analogia de uma montagem de fotografias como o gênero de Lamentações. “Gráfica e provocativamente, Lamentações lança imagens de destruição diante do expectador em rajadas implacáveis” (2003, p. 113).
2. Estilo linguístico O estilo linguístico de Lamentações é típico da redação pós-exílica, exceto que os verbos são, às vezes, construídos a partir de substantivos (ex.; yã íb, “nublar”, 2.1), e os homónimos são usados no mesmo versículo (ex.: ôlal, “fazer” e “filho pequeno”, 2.20; Berlin, 2003, p. 3). Os tempos verbais podem ser difíceis em Lamentações, e o contexto geral é, frequentemente, importante para deter¬ minar o tempo da ação. Lamentações 3.56-61, em particular, parece apresentar esperança no futuro, embora o tempo verbal perfeito seja usado (o que geral¬ mente é traduzido como passado; Provan, 1991, p. 81).
3. Estilo literário
Poemas acrósticos O livro de Lamentações consiste de quatro acrósticos alfabéticos mais um poema que tem 22 versículos (o número de letras no alfabeto hebraico), mas que não é um acróstico. Geralmente, os poemas acrósticos soletram uma pala¬ vra ou nome significativo nas primeiras letras de cada linha (como na literatura antiga do Oriente Próximo; Hillers, 1972, p. xxv). Os acrósticos de Lamenta¬ ções meramente soletram o alfabeto, o que, em si, não faz sentido. Alguns críticos são da opinião que uma forma rígida reprime e até obscure¬ ce o conteúdo, enquanto outros veem a forma como uma pista importante para a natureza do conteúdo e inseparável desse conteúdo. Alguns veem o acróstico alfabético como uma realização mestra, enquanto outros a veem como uma forma elementar que requer pouca habilidade para ser produzida. Embora os acrósticos possam ser relativamente fáceis de serem produzidos (meus filhos costumam escrevê-los regularmente na escola), os poemas de La¬ mentações não usaram a forma cegamente. Existem variações entre os poemas. Além do mais, essa forma deve ter sido usada com um propósito específico; do contrário, ela poderia até menosprezar a profundidade do luto que está expres¬ so em Lamentações.
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Os comentaristas têm dado algumas sugestões úteis quanto ao propósito do acróstico em Lamentações. Existe sempre a vantagem de o estilo do acrós¬ tico facilitar a memorização. A recordação é induzida porque a próxima linha começa com a letra subsequente do alfabeto. Alguns acham que isso acrescenta beleza (Hillers, 1972, p. xxvi). Uma possibilidade mais significativa é que o uso do alfabeto inteiro sugira a plenitude da angústia experimentada (Keil, 1873, p. 337). Isso parece ter uma analogia no Talmude, que menciona “as pessoas que cumprirão a Torá do álef ao tau (,Sabbath 55a; Salters, 1994, p. 90). Para Gottwald, isso significa uma completa catarse emocional e também uma total confissão do pecado, que poderia levar à esperança (1962, p. 30). O poema mais esperançoso, entretanto, tem o acróstico mais extenso (terceiro poema). Harrison pensou que isso implicasse um limite para a angústia (1969, p. 1069). Somente os 22 versos de emoção podem ser pronunciados antes que o alfabeto acabe, e a vida continue. Outra sugestão útil é que o acróstico tente trazer ordem ao caos do sofri¬ mento (Berlin, 2002, p.5). O terceiro poema é o mais longo acróstico, com três linhas por verso, cada uma das três começando com a mesma letra do alfabeto. Como tal, ele representa a tentativa mais heroica de trazer ordem e esperança. No entanto, o esforço não pode ser mantido, e o capítulo 4 oferece um acrós¬ tico menos ambicioso (com apenas duas linhas por verso). O capítulo 5 aban¬ dona a tentativa de vez, e o livro quase termina em desespero (sem acróstico e com apenas uma linha por verso).
Vozes Um elemento importante do estilo literário de Lamentações é o uso de diferentes vozes. Há um intercâmbio entre um narrador onisciente, a cidade de Jerusalém e o “homem” (geber) do capítulo 3. Deus não fala no livro, apesar das orações que são registradas. Lanaham identifica cinco vozes em Lamentações correspondendo aos cinco capítulos: repórter, Jerusalém, soldado, burguês e coral de vozes (1974, p. 41-49).
Métrica Em 1882, Karle Budde identificou uma métrica característica em Lamentações que ele percebia estar presente em outros lamentos do AT (Driver, 1897, p. 429). Ele a intitulou de métrica do qinah (“lamento”), e isso está caracterizado por três silabas acentuadas na primeira metade de uma
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linha e duas na segunda (ou alguma combinação na qual a segunda metade seja menor que a primeira). A maioria da poesia do AT tem um padrão de três/três. Driver nota que essa métrica é adequada para os lamentos, porque a segunda metade mais curta “parece que vai desaparecendo nela, e uma cadência queixosa, melancólica, é produzida dessa forma” (1897, p. 430). O livro como um todo também parece seguir esse padrão. Os três primeiros capítulos possuem estrofes de três linhas cada. No quarto capítulo, há duas linhas em cada estrofe, e, no quinto, as estrofes são feitas de apenas uma linha. O lamento, logo, está gradualmente sufocando e morrendo. Onde os versos em Lamentações se desviam desse padrão, Budde sugere que seja um acréscimo. Os eruditos modernos estão menos confiantes na análise de Budde e, prontamente, admitem a falta de compreensão das convenções da poesia hebraica antiga e oferecem muitas teorias diferentes para explicar essas variações (Hillers, 1972, p. xxxiii).
Esboço I. Como está deserta (1.1-22) II. A nuvem da ira de Deus (2.1-22) III. Eu sou o homem (3.1-66) IV. O ouro perdeu o brilho (4.1-22) V. Lembra-te, Senhor (5.1-22)
Sumário O livro de Lamentações começa com a palavra “como” expressando uma indagação sobre a queda de Jerusalém e o subsequente sofrimento do povo debaixo das condições pós-guerras. O primeiro contraste com a prosperidade anterior à guerra é a falta de pessoas. A alegria foi substituída pelo choro, os amigos tornaram-se inimigos, e a farta provisão transformou-se em fome. Há uma admissão de culpa (1.8) e um convite para que Deus observe (e aja) o presente estado de sofrimento (1.9,20). Nenhum consolador é encontrado para aliviar aquele sofrimento (1.16). A situação do padecimento no capítulo 1 é seguida no capítulo 2 com uma ênfase na causa primeira daquele apuro: a ira de Deus (2.1-10). A extensão da dor resultante é enfatizada pelas imagens de choro (2.11-18), e há, mais uma vez, um convite para que Deus olhe (e aja; 2.19-22). No capítulo 3, o acróstico dos poemas intensifica-se quando cada linha começa com uma letra específica do alfabeto, mostrando que o
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poema central é culminante. A descrição torna-se pessoal com a reflexão de um “homem” que viu a aflição (3.1-20), mas, não obstante, apega-se a um fio de esperança baseado na fidelidade e no amor de Deus (3.21-36). Existem uma admissão qualificada de culpa e uma afirmação da soberania de Deus (3.37-54). Esse poema também termina em uma petição para que Deus olhe (e aja: 3.5566). Com o quarto poema, o livro começa a esvaecer, e cada letra do alfabeto recebe apenas duas linhas em vez de três. Os habitantes de Jerusalém, outrora preciosos, agora são comparados ao barro desprezível (4.1-9), os profetas e os sacerdotes são condenados por sua função no destino da cidade (4.1016), e o apelo para que Deus veja é substituído pelo reconhecimento de que nenhum auxílio estava para chegar naquele momento de crise (4.17-22). Não obstante, há uma fraca esperança de que o exílio não será para sempre (4.22). A forma exaustiva do acróstico é abandonada no quinto poema, e os 22 versos são reduzidos ainda mais para uma linha cada. Há um convite para que Deus se lembre (e aja) da contínua dureza e dos sofrimentos (5.1-18) e restaure a cidade ao seu relacionamento anterior com Ele (5.19-22). Contudo, há uma expressão da excruciante demora de Deus em tal restauração, e o livro termina no desespero da possibilidade de que a ira de Deus não tenha medida (5.20,22).
I. Temas teológicos A perda de Jerusalém representou uma imensa crise teológica para Israel, e os diferentes livros bíblicos negociaram essa crise de diversas maneiras. Mesmo por meio da expressão de angústia, Lamentações provê uma explicação teológi¬ ca para a calamidade. Primeiro, o autor (e a comunidade) interpreta a queda de Jerusalém como um tremendo desastre. O desastre foi trazido, não pela impo¬ tência ou pela indiferença divina, mas como uma disciplina pela rebelião. Deus realmente havia sido fiel em Sua parte na aliança, enquanto a nação de Israel havia falhado em manter os seus compromissos. Isso deixa aberta a esperança de que a bênção poderia ser restaurada por meio da renovação da aliança de fidelidade (3.21-24).
1. O sofrimento O sofrimento é o tema principal do livro. Cada capítulo cataloga a deser¬ ção, a vergonha e a fome sofridas pelos habitantes de Jerusalém.
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2. A soberania de Deus O profundo sentido de soberania de Deus deixa a suprema causa do sofri¬ mento com Ele. Ele fez Jerusalém sofrer (1.5), Ele armou o Seu arco contra a cidade (2.4), Ele propôs esse desastre (2.17), e a Sua espada é lei (3.37; Brasy, 2003, p. 89).
3. O sofrimento é resultado do pecado O pecado de Jerusalém fornece o raciocínio pelo qual Deus usaria Sua so¬ berania contra o seu próprio parceiro da aliança (1.5; 2.14; 3.42; 5.7; 5.16).
4. O arrependimento
Jerusalém está certa de chorar e lamentar por essas circunstâncias, mas o arrependimento também é uma reação necessária. Esse não é um tema forte em Lamentações, porém há alguns movimentos em direção ao arrependimen¬ to (3.40). 5. A esperança Assim como o arrependimento, a esperança está velada em Lamentações, mas ela deve ser encontrada primariamente no caráter de Deus, e não no arre¬ pendimento humano ou em outra atividade. A Sua fidelidade é grandiosa, e as
Suas compaixões são novas a cada manhã (3.21-26; 3.55-66; 4.21,22). Con¬ tudo, o livro termina sem dizer se a esperança ou o desespero terão a última palavra (5.22).
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I. POEMA UM: COMO ESTÁ DESERTA (1.1-22) POR TRÁS DO TEXTO O primeiro poema em Lamentações determina o tom de uma cidade aban¬ donada enfrentando a dureza e a humilhação da derrota. Esse capítulo intro¬ duz os temas principais do pecado e do apelo a Deus. O segundo poema (cap. 2) intensificará esses temas com o foco na ira de Deus. O capítulo 1 de Lamentações foi classificado como uma canção fúnebre por Gunkcl (1933, p. 95). A palavra de abertura, como, e as reversões da sorte são consistentes com isso, mas a cidade cm si não é considerada morta, c não há o convite para unir-se ao luto. Existem diversos elementos do lamento da cidade no capítulo 1: a palavra como (1.1); a falta de descanso (1.3); a suspen¬ são das celebrações (1.4); o fogo do céu (1.13); a rede sendo armada (1.13); o colapso da ordem civil e a deidade como a causa do desastre (1.5) (McDaniel, 1968, p. 201,202; Bergant, 2002, p. 11). Os poemas acrósticos de Lamentações são cuidadosamente compostos, mesmo assim, além da forma alfabética, eles não têm um delineamento claro
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quanto à forma ou ao conteúdo (ou a estrutura é frequentemente interrompi¬ da). Os esboços dos poemas individuais oferecidos aqui são, portanto, muito generalizados. O capítulo 1 pode ser esboçado como segue: Como está deserta a cidade (1.1-11) Veja o meu sofrimento! (1.12-22)
NO TEXTO Nas traduções antigas, o versículo 1 é precedido pela informação sobre Je¬ remias como o autor do livro. Não há menção disso nos manuscritos hebraicos nem outra evidência direta da autoria (veja a seção sobre Autoria na Introdução).
A. Como está deserta a cidade (1.1-11)
H 1 Álef. O primeiro versículo do livro de Lamentações arma o cenário para o livro inteiro, presumivelmente a cidade abandonada de Jerusalém depois de sua destruição por Nabucodonosor em 586 a.C. A cidade experimentou ter¬ ríveis reveses em termos de tamanho e honra. Em hebraico, a palavra de aber¬ tura, como, começa com álef, a primeira letra do alfabeto hebraico, e, assim, esse versículo inicia a estrutura do acróstico que caracteriza os primeiros quatro capítulos. Assim como inúmeros livros hebraicos, a primeira palavra é o nome hebraico do livro ( 'êkâ) e também inicia os poemas nos capítulos 2 e 4 (e é usada em 4.2). A mesma forma e o mesmo uso dessa palavra só se encontram também em Isaías 1.21 e Jeremias 48.17. Em Isaías, é também a cidade de Jeru¬
salém que está sendo lamentada (especificamente pela perda da justiça), e, em Jeremias, a exclamação é pela derrota da vizinha nação de Moabe. A palavra pode também ser usada como uma pergunta (“como?”). Os poucos usos de 'êkâ como uma exclamação são todos em lamentos. A palavra deserta é irónica, porque ela (bãdãd) pode também ter o senti¬ do figurado de “segurança”, significando “livre de ataques” (Dt 33.28; Jr 49.31; BDB 94,95). Jerusalém sentia-se segura debaixo da proteção do Senhor, mas agora está desolada e sozinha. A repetição do vocabulário no versículo 1 é obscurecida pela tradução. Antes tão cheia e era grandiosa são as mesmas palavras em hebraico (rabbãtv, veja 2.6,20 para outros exemplos de homónimos no mesmo versículo). Ambos os significados estão dentro do âmbito normal de palavras, embora grandiosa (isto é, “ampla”) seja menos frequente (BDB 913). Essa escolha de palavras permite a
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repetição nas primeiras duas linhas do versículo 1 (cada verso tem três linhas). A forma rabbãtí usada em ambos os casos é incomum, e pensa-se que o yod no fim seja um final genitivo antigo (GKC § 90/). A forma arcaica não indica um texto antigo (como pode ser na poesia arcaica encontrada em Jz 5), mas deve ter sido escolhida por razões pocticas. McDaniel sugere que a tradução deveria ser “dona, senhora”, seguindo o uso desse radical nas línguas cognatas (fenícia, ugarítica e cartaginesa; citado por Provan, 1991, p. 35). Isso daria a tradução: “A cidade era a dona do povo... uma senhora entre as nações”. O uso bíblico da palavra, entretanto, favorece a tradução tradicional e enfatiza o contraste me¬ lhor, sem perder a imagem feminina de Jerusalém (viúva, princesa). A cidade de Jerusalém foi comparada a uma viúva, o que insinuou uma posição muito baixa no antigo Israel. Sem um sistema público de bem-estar social, as viúvas ficavam destituídas, a não ser que tivessem filhos adultos ou outro suporte familiar. Juntamente com a classe desprivilegiada, tais como os estrangeiros e os órfãos, as viúvas eram frequentemente sujeitas à opressão (vejais 10.1,2), eleis especiais estavam em vigor para protegê-las (Dt 10.17-19; 24.17-22; 27.19). Isaías também comparou a Jerusalém conquistada a uma vi¬ úva, mas, nesse caso, a profecia é de renovação, e a viuvez fica para trás (Is 54.4; Kinge Stager, 2001, p. 53). Bergant percebe a significância da personificação de Jerusalém como uma mulher (viúva, princesa) (2003, p. 28). Os muros da cidade envolvem a popu¬ lação, assim como o útero da mãe envolve a criança.
Isaías 54.4-6 "Não tenha medo; você não sofrerá vergonha. Não tema o constrangimento; você não será humilhada. Você esquecerá a vergonha de sua juventude e não se lembrará mais da humilhação de sua viuvez. Pois o seu Criador é o seu marido, o Senhor dos Exércitos é o seu nome, o Santo de Israel é seu Redentor; ele é chamado o Deus de toda a terra. O Senhor chamará você de volta como se você fosse uma mulher abandonada e aflita de espírito, uma mulher que se casou nova, apenas para ser rejeitada", diz o seu Deus.
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A palavra para princesa (sãrãtí ) não denota especificamente uma líder so¬ berana ou a esposa de um rei. Éãrãtí é apenas a forma feminina de uma pala¬ vra mais geral para chefe ou líder, independentemente da linhagem. Na forma feminina, ela é usada para mulheres da nobreza ou filhas do rei (1 Rs 11.3; Et 1.18; Jz 5.29; Is 49.23). De sua alta posição como líder entre nações e cidades, Jerusalém havia caí¬ do para a posição de escrava. Essa não é a palavra comum para escravo ( ebed) , mas é um grupo de trabalhadores {mas). Jerusalém já era uma vassala da babi¬ lónia. A sua situação agora é pior, com menos independência ainda. O termo também se aplica à escravidão de Israel no Egito (Êx 1.1; veja Dt 20.11; Is 31.8). H 2 Bêt. Acrescentando à solidão e à vergonha da derrota, o versículo 2 con¬ dena a falta de consoladores em Jerusalém (veja 1.2,9,16,17,21; Jr 31.15). O mesmo vocabulário é usado em Is 40.1; 49.13; 51.3,12; 52.9). A solidão de Jerusalém é intensificada pelo fato de que seus amantes e seus amigos tornaram-se seus traidores e seus inimigos. A palavra amantes talvez se refira aos deuses pagãos (veja Jr 2.25,28,33). Jerusalém procurou amigos (aliados políticos) entre os assírios durante os dias do rei Acaz e, aparentemen¬ te, entre os egípcios durante os dias de Jeremias. Contudo, esses “amigos” não eram realmente amigos, pois estavam mais preocupados com seus próprios interesses. Isaías retratou a confiança no Egito como o ato de apoiar-se numa “cana esmagada” (Is 36.6). Jerusalém entrou nesses relacionamentos sem sa¬ bedoria e descobriu que seus amigos e seus amantes eram colegas trapaceiros que não podiam confortá-la. O tema sobre amigos traiçoeiros é comum nos lamentos (ex.: SI 38.11; Provan, 1991, p. 13,37). A palavra inimigos ocorre frequentemente no livro (1.2,5,9,16,21; 2.3,4,5,7,16,17,22; 3.46,52; 4.12). O som parecido das palavras hebraicas amantes ( ’õhéb ) e inimigos ( ’õyêb) enfa¬ tiza a reversão da experiência de Jerusalém. O povo de Jerusalém está sofrendo as consequências de falhar em confiar em Deus para sua segurança e seu bem-estar. As pessoas rejeitaram Deus e, agora, estão sendo rejeitadas pelas nações nas quais confiaram. ■ 3 Guímel. O hebraico do versículo 3 lê-se, literalmente, assim: Judá foi exi¬ lado da aflição e do trabalho árduo. O Targum assimilou isso como um modo de demonstrar que o exílio veio porque ( min ) Jerusalém oprimiu os órfãos (Brady, 2003, p. 33,34). Contudo, em outros lugares, o verbo exilar, seguido de min, significa “exilado para longe” (1 Sm 4.21,22; Ez 12.3;Mq 1.16; Berlin, 2002, p. 45). Isso sugere que o exílio seguiu o sofrimento e levou à tradução: Em aflição
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e sob trabalhos forçados, Judá foi levado ao exílio. A última frase exagera a
situação para criar um efeito, já que apenas uma parte da população foi depor¬ tada (Provan, 1991, p. 14,38).
Judá vive entre as nações reitera a condição de exílio da nação. Além do condição de exílio, ela não encontra repouso. Isso é uma rever¬ são do descanso prometido na terra (Dt 12.9; SI 95.11). O significado preciso da última frase (todos os que a perseguiram a capturaram em meio ao seu desespero) não está claro. A palavra desespero ( mêsãrim) vem de um verbo que pode significar “apertado, estreito” (Bergant, 2003, p. 32). A Nova Tradu¬ ção na Linguagem de Hoje, “estão cercados pelos seus perseguidores e não po¬ dem escapar”, transmite a ideia de Judá em uma situação perigosa. Desespero (mésãrim) também soa como a palavra egípcia “Egito” (misrayim), o que teria a intenção de relembrar a escravidão do Egito (Berlin, 2002, p. 51). Goldman sugere que a referência não é do exílio babilónico, mas daqueles que se retira¬ ram para o Egito naquela época (1946, p. 71). mais, em sua
A cidade deserta, por C. G. A. Roberts (1893) Lá está uma cidade a léguas de distância. Seus cais são lavados pelo verde mar o dia todo. Seus cais ensolarados movimentados com canções de marinheiros E gritos do comércio ecoam alto todo o animado dia. Adentrando a alegre movimentação do porto, felizes Com inúmeras velas cheias de neve, os grandes navios chegam. As ruas cheias de gente pertencem à Paz de olhos jovens. Alegremente abrigados sob esses tetos aglomerados cor de cinza.
Foi há muito tempo atrás que esta cidade prosperava assim, Pois, ontem, uma mulher morreu ali. Desde quando os portos caíram em desuso, eu sei, E nas ruas o alegre barulho é silenciado; Os navios apinhados se foram, as canções se foram; Já que ontem foi há tanto tempo atrás.
H 4 Dálet. O versículo 4 prossegue na condição abandonada e desolada de Je¬ rusalém. Os caminhos para Sião pranteiam por causa da falta de peregrinos que
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vinham para as festas de Jerusalém. O livro de Êxodo exigia o comparecimento a três festas todos os anos: a Festa dos Pães Asmos (ou Páscoa), celebrando o início da colheita da cevada e a comemoração do êxodo do Egito; a Festa da Colheita (ou das Semanas), marcando o fim da colheita de trigo e depois ligada à entrega dos Dez Mandamentos; e a Festa do Ajuntamento (ou Tabernácu¬ los), que marcava o fim da colheita das frutas e comemorava a época do deserto (Êx 23.14-17). Lamentações, até então, não identificou o pecado como a causa do desastre, mas o Targum denuncia que as estradas para Sião estavam vazias exatamente porque as pessoas não mantiveram as festas dos peregrinos (Brady, 2003, p. 35,36). Jerusalém é chamada pelo nome poético de Sião, que é, tecni¬ camente, a fortaleza dos jebuseus que Davi capturou e deu o nome de “Cidade de Davi” (2 Sm 5.7; 1 Rs 8.1). Em uma cidade murada como Jerusalém, as portas eram um local de en¬ contro. A destruição de Jerusalém trouxe um fim para tal ajuntamento de pes¬ soas às portas, e estas permaneceram desertas. Os sacerdotes gemeram por¬ que perderam seu trabalho e sua vivacidade com a destruição do templo e com a extinção da adoração (veja Jl 1.9). As moças de Jerusalém lamentaram por¬ que a destruição da cidade significava o fim das festas, da música e da dança nas ruas de Jerusalém (veja Jr 31.13). A Septuaginta tem as servas arrastadas para longe, o que pode refletir a dispersão geral da população ou pode ter em mente o tratamento frequente das mulheres como despojos no mundo antigo. A pró¬ pria cidade, personificada como uma mulher, esteve em angústia profunda por causa da perda da população e da destruição e devastação em toda a cidade. 5 He. O versículo 5 continua o lamento sobre a reversão da sorte. Jerusalém está sendo governada pelos inimigos que agora estão tranquilos. A palavra adversário ocorre no início e no fim do versículo 5, “linguisticamente cercando e capturando Sião e seus filhos sofredores, assim como os adversários cercaram a cidade” (O’Connor, 2002, p. 21). Os adversários tornando-se chefes (lit., cabeça) ecoa a maldição da aliança em Deuteronômio 28.44 (veja 28.13), que adverte sobre o estrangeiro tornar-se a cabeça, e Israel tornar-se a cauda se a nação falhar em viver uma relação fiel com o Senhor. Lamentações 1.5 reconhece a realidade de que a presente condição de Jerusalém é obra do Senhor, embora a Babilónia seja o agente político que destruiu Jerusalém. Esse tipo de interpretação teológica dos acontecimentos históricos é comum na Bíblia. Embora as causas imediatas de um evento sejam claramente conhecidas, a tradição bíblica, em geral, reconhece Deus como a causa suprema. Por exemplo, na seção do prólogo do livro de Jó, os leitores são primeiro apresentados ao
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papel de Satanás no sofrimento de Jó, mas, depois, a narrativa identifica os sabeus, o relâmpago, os caldeus, um vento poderoso e uma enfermidade como as causas imediatas. Entretanto, Jó alega que Deus é quem dá e quem retira as Suas bênçãos (Jó 1.21). No caso da destruição de Jerusalém, existe uma conexão entre as realidades histórica e teológica. Foi o mesmo espírito de rebeldia do povo de Judá que o levou tanto à rejeição do Senhor como à sua recusa de submeter-se à Babilónia (que trouxe a retaliação dos babilónios). Se as pessoas tivessem tido um relacionamento saudável com Deus, seus relacionamentos internacionais teriam sido diferentes.
O versículo 5 esclarece a razão pela qual o Senhor trazia angústia a Jeru¬ salém. Essa condição é a consequência dos seus muitos pecados {pésã êha). O AT frequentemente usa a palavra pêsa ' para a rebelião política (ex.: 1 Rs 12.19). Essa admissão de culpabilidade pela comunidade que se lamentava também implica o seu reconhecimento de que está experimentando uma dis¬ ciplina da parte de Deus, e não um castigo ou uma retribuição (veja Ambrose in: Wenthe, 2009, p. 290). Deus não estava tentando vingar-se do povo, mas trazê-lo de volta. A destruição de Jerusalém e o exílio faziam parte dessa dis¬ ciplina.
Anais de Assurbanipal, Rassam Cylinder A fome caiu sobre eles, e eles comeram a carne de seus filhos por causa da fome. Asur, Sin, Samá, Adade, Bei, Nebo, Istar de Nínive - a rainha de Quidmuri - Istar de Arbela, Ninurta, Nergal (e) Nusku (então) infligiram rapidamente sobre eles (todos) as maldições escritas (registra¬ das) em seus contratos sob juramentos... Onde quer que os habitantes da Arábia perguntassem um ao outro: "Porque causa essas calamidades ca¬ íram sobre a Arábia?", (eles respondiam:) "Porque nós não guardamos os mandamentos solenes (jurados por) Asur, porque ofendemos a amizade de Assurbanipal, o rei amado de Elil!" (Pritchard, 1969, p. 300).
■ 6 Vav. O versículo 6 retrata Jerusalém como uma cidade que perdeu o seu esplendor e compara-a com as corças que fogem do caçador. A Septuaginta, presumindo uma vocalização diferente, traduziu corças ( 'ayyãlim) como “car¬ neiros” ( ’êlim), dando uma imagem de ovelhas diante de um pastor, em vez de corças diante de um caçador. A tradução “filha de Sião” [ARC] é enganosa,
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porque dá a impressão de que um subgrupo de Jerusalém está em vista, quando, de fato, é um termo carinhoso significando a população de Jerusalém como um todo (Hillers, 1972, p. xxxviii). Essa expressão (ou variação) é usada 21 vezes nesse livro, dezesseis vezes em Jeremias e cerca de dez vezes em outros lugares (Berlin, 2002, p. 10). Ela pode ter-se originado da antiga ideia do Oriente Pró¬ ximo de uma deusa patrona da cidade (O’Connor, 2002, p. 14, citando Dobbs-Allsopp). O Targum preferiu a tradução “congregação de Israel” (kénesset; Bra¬ dy, 2003, p. 84). Líderes (sar) não são especificamente os filhos do rei, mas um termo geral para comandantes ou governantes. ■7 Zain. No meio de sua aflição e de seu desnorteio, Jerusalém lembra-se de todos os tesouros que antes tivera no passado. A recordação do passado induz Jerusalém a chorar pela perda de seus tesouros. A palavra aflição é geralmente usada cm conexão com um peregrino ou estrangeiro {gêr), representando o po¬ bre e o desprivilegiado na terra (ex.: Lv 19.10). Entretanto, se as consoantes ti¬ vessem sido transpostas por engano, o radical correto poderia ser jyãrad, “cair”, que é encontrado na forma do substantivo môrãd (i.e., as consoantes mwrd em vez de mrwd). Essa palavra, em geral, significa a inclinação de uma rua em de¬ clive (ex.: Jr 48.5). Isso faria referência à aflição de Jerusalém em Lamentações 1.7 ou à descida da honra (ou à descida da população quando saía da cidade). O versículo 9 usa o mesmo radical para referir-se à queda de Jerusalém. Desnor¬ teio ( mérúdêhã), no versículo 7, é raro e de sentido incerto. Algumas versões antigas traduzem essa palavra como “rebelde”, enquanto a Septuaginta oferece “rejeição, lançar fora”. A ARC emenda as consoantes para traduzir como “afli¬ ção”. A tradução desnorteio presume a raiz rud, que, se estiver correta, pode sugerir a peregrinação ou a viagem dos residentes de Jerusalém para o exílio. Peake sugere que a linha de todos os tesouros que lhe pertenciam nos tempos passados seja provavelmente um acréscimo ao texto (1911, p. 305). O versículo 7 tem quatro linhas, enquanto outros versos do livro têm três linhas cada, o que sugere que uma dessas quatro linhas possa ter sido acrescentada por um escriba. A expressão tempos passados usa um radical que significa “diante de” (qedem), refletindo a concepção hebraica de que a pessoa anda de costas para o futuro. Isso é lógico, já que o passado é conhecido, e o futuro não é. O inglês tem um paralelo a isso, já que a palavra “before” [antes, diante] refere-se não só ao que passou, mas também ao que está adiante. O livro de Lamentações termina com uma incerteza sobre o que o futuro pode conter. A segunda parte do versículo 7 reitera a condição abandonada da popu¬ lação de Israel. Ninguém veio socorrer ou ajudar o povo quando o inimigo
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invadiu a terra. A humilhação de Jerusalém incluía os risos das nações vizi¬ nhas de Judá, seus inimigos históricos (veja Ob 1.11-13). A palavra usada para descrever a sua queda (misbatehã ) é usada somente aqui, no AT. As versões antigas traduzem essa palavra como “acampamento, morada” ou “deportação, cativeiro”. Os Pergaminhos do mar Morto dizem “as ruínas dela” ( msbrh). Uma tradução como “destino” seria apropriada. I 8 Hêt. O versículo 8 reconhece o grave pecado de Jerusalém (Jerusalém cometeu graves pecados). Os pecados de Jerusalém deixaram a cidade santa impura. A palavra hebraica para impura {lenida) é usada somente aqui, no AT, e pode ser entendida de três modos. O primeiro sentido é “peregrinar” (as¬ sumindo o radical nwd dos Pergaminhos do mar Morto), que se encaixa bem como uma consequência do pecado (assim como Caim foi enviado para Node, a terra da peregrinação; Gn 4.12-16). O segundo é “escárnio” (do mesmo radi¬ cal), que se encaixa bem com a linha seguinte em que o povo desprezou Sião. O terceiro é uma emenda que dá a tradução de impura, que se encaixa bem com o versículo seguinte. Todas as três leituras são úteis no progresso da argu¬ mentação (Berlin, 2002, p. 54). O versículo 8 continua o tema da humilhação de Jerusalém. Outrora, Je¬ rusalém possuía um lugar de honra entre as nações; agora, ela é uma cidade desprezada e nua. A nudez transmite uma ideia de grande vergonha e humilha¬ ção. É também uma imagem de ser derrotado e levado à escravidão (Is 47.3; Jr 13.26; Na 3.5). O versículo 8 termina com o retrato de Jerusalém gemendo por causa da rejeição, da humilhação e da perda da honra entre as nações. ■ 9 Tét. O versículo 9 continua o tema da impureza de Jerusalém. Sua im¬ pureza prende-se às suas saias (tum 'ãtãh bèsúlêhã) transmite a ideia de que Jerusalém se tornou um lugar impuro pela idolatria e pelas alianças estrangei¬ ras. A palavra saias {bêsulêha) usada aqui se refere às bordas ou à parte inferior da vestimenta (Êx 28.33). Impureza (turn 'ãtãh) frequentemente se refere às impurezas rituais, como a menstruação (Brady, 2003, p. 76). Aqui, ela se refere à promiscuidade (Berlin, 2002, p. 54). O versículo 9 termina com um apelo de Jerusalém ao Senhor para pres¬ tar atenção à sua aflição. A forma na primeira pessoa, minha aflição ( ‘ãnèyí ), é incomum num poema que tem a terceira pessoa como perspectiva, falando sobre Jerusalém e seu destino. Daí, os editores de BHS sugerem a leitura: “A sua aflição”. Contudo, a forma da primeira pessoa dá uma força pessoal ao cla¬ mor ao Senhor, e o texto hebraico faz sentido em sua forma corrente. A oração “olha, Senhor, para a aflição de Jerusalém” transmite esperança; no passado,
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o Senhor tinha visto a aflição de Israel quando o povo era escravo no Egito e o salvou de suas aflições (Êx 3.7). O apelo também transmite confiança no poder do Senhor para salvar o Seu povo de suas aflições. ■ 10 Iode. O versículo 10 condena a entrada de estrangeiros no templo para saquear os seus tesouros. Os templos eram um local comum de riqueza, e os invasores sempre carregavam os vasos de ouro para longe. Mais tarde, o livro de Daniel condenou Belsazar por usar irreverentemente esses vasos santos como taças de bebidas em seu banquete (Dn 5.2,3). A repetida ocorrência de tais eventos (ex.: entrada ilegal no templo em 597, 586 e 167 a.C.) induziu Provan a desafiar a interpretação usual da queda de Jerusalém em 586 a.C. como a ocasião de Lamentações (1991, p. 13). Aqueles que eram proibidos de participar das assembleias, aparentemente, eram os amonitas e os moabitas de Deuteronômio 23.3 e, por extensão, os babilónios. M 11 Caf. O versículo 11 documenta a falta de alimentos durante o cerco da cidade. Durante esses tempos, as pessoas negociavam seus bens materiais acumulados para comprar comida e sobreviver. A riqueza não tem valor algum para alguém que está morrendo de fome (veja Mt 16.26). Há outro convite nesse versículo, que diz: Olha, Senhor, e considera ( wéhabbítâ) o sofrimento
de Jerusalém (veja 1.9).
B. Veja o meu sofrimento! (1.12-22) H 12 Lâmed. O versículo 12 pergunta: Vocês não se comovem? enquan¬ nenhum dos observadores hipotéticos oferece algum consolo (veja v. 2,9 etc.). Provan traduz essa pergunta como: “Será que isso não é para vocês?” in¬ sinuando que o sofrimento de Jerusalém é para ajudar os outros a evitarem as consequências da desobediência (1991, p. 48). Esse só pode ser um propósito periférico do sofrimento, entretanto, e essa linha pode ser um desejo: “Que isso nunca aconteça com você” (Harrison, 1973, p. 210), ou, provavelmente, apenas uma declaração: “Não é para você (preocupar-se com isso)” (veja Albrektson, 1963, p. 68,69). Os transeuntes estão mais propensos a zombar do que confortar, e essa é uma característica comum nos lamentos (ex.: SI 89.41). Obadias condenou a vizinha Edom por alegrar-se com a desgraça de Judá e por não ajudar o seu povo (Ob 1.12). A segunda parte do versículo 12 indica o tamanho do sofrimento de Jeru¬ salém; ele não pode ser comparado com o sofrimento de nenhum outro povo. to
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Ele é imenso e sem comparação, porque foi trazido sobre Jerusalém pelo furor da ira do Senhor. Não obstante, Jerusalém deveria buscar o consolo do Senhor (v. 1 1). A ira de Deus é mencionada 1 1 vezes em Lamentações. O dia em que se acendeu a sua ira parece conectar-se com “o Dia do Senhor”, uma predição comum de desastres nos livros dos profetas.
O Dia do Senhor O conceito do Dia do Senhor aparentemente surgiu dos milagres das guerras passadas, das conquistas nas quais o Senhor livrou Israel de seus inimigos. A tradição popular de Israel esperava que o Senhor interviesse e salvasse Israel das futuras invasões inimigas. Amós levou essa expectativa de julgamento para as nações estrangeiras e a aplicou ao reino do norte de Israel (Am 5.20). Israel, de modo aparente, teve o seu Dia do Senhor quando Samaria foi destruída em 722 a.C. O Dia do Senhor foi aplicado a Judá como um acontecimento futuro (Is 22.5) e, depois, como um acontecimento passado (Lm 1.12; 2.22; Ez 34.12). Depois da queda de Jerusalém, a terminologia ainda foi empregada para acontecimentos futuros, frequentemente de significância cosmológica (Jl 1.15—2.11).
■ 13 Mem. O versículo 13 descreve a tragédia como atos que o Senhor man¬ dou fazer ou fez para tornar Israel um local desolado. Fogo enviado do alto era a maneira comum para descrever o relâmpago ou uma erupção vulcânica no AT (Gn 19.24; Êx 9.23,24). A destruição de Jerusalém não aconteceu por nenhum desses dois meios, mas os invasores frequentemente usavam o fogo para trazer a completa destruição a uma cidade. Esse foi o caso de Jerusalém e de Hazor na conquista de Josué (Js 11.11). Amós prometeu fogo do Senhor para todas as oito nações em sua profecia inicial, que condenava não somente nações estrangeiras, mas também Judá e, especialmente, o reino do norte de Israel. Embora o fogo literal que destruiu Jerusalém possa ter sido aceso pelos babilónios, o Senhor recebeu o crédito, como a causa suprema da destruição. Armar a rede é outra metáfora que o autor usa para descrever as ações do Senhor em Jerusalém. Essa metáfora é também usada por Ezequiel (12.13; 17.20; 19.8; 32.3) e Oseias (5.1; 7.12). Nos Salmos, Deus resgata da rede (25.15; 31.4), mas, aqui, a ação do Senhor causa a destruição, a desolação e o desmaio.
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M 14 Nun. O versículo 14 descreve o pecado de Jerusalém como amarrados num jugo (;nisqad õt ). Essa frase é encontrada somente aqui, no AT; alguns manuscritos hebraicos (e a Septuaginta) trazem nisqad al, isto é, “estão sendo vigiados”. Ou o Senhor amarrou os pecados de Judá num jugo que Judá tem de carregar (veja por ex.: Lv 19.8), ou Ele esteve vigiando os pecados deles e colocou-os sobre o pescoço de Judá. Ambas as leituras transmitem o mesmo significado. O peso do pecado de Judá foi grande demais, e a sua força falhou. Tampouco ele conseguiu enfrentar ou levantar-se contra o inimigo que estava trazendo o castigo de Deus. O jugo, em outros lugares, é uma metáfora para a
servidão (ex.: Jr 27.8). ■ 15 Sâmeq. O versículo 15 retrata Jerusalém como uma cidade sendo pisada por um exército estrangeiro a mando do Senhor. A palavra dispersou é usada apenas quatro vezes no AT (Jó 28.16,19; Sl 119.118). Deus rejeita a eficácia das defesas de Jerusalém (todos os guerreiros que me apoiavam) e, depois, envia um exército {lit., uma assembleia) contra a cidade para esmagar os jo¬ vens soldados de Jerusalém. O lagar {gat ) é, literalmente, o fosso de pedra onde as uvas colhidas eram esmagadas com os pés descalços, para que se extraísse o suco. Nesse versículo, ele é a metáfora do julgamento de Deus que pisa sobre o povo de Judá até que o sangue jorre como o suco vermelho das uvas (veja tam¬ bém Jl 3.13). A virgem, a cidade de Judá, não é uma subseção de Judá, mas uma metáfora para Judá como um todo (veja o comentário em 1.6). H 16 Áin. O versículo 16 revisita o tema da falta de um consolador (1.2,9), e a expressão de angústia toma a forma de choro. O hebraico por trás da ex¬ pressão as lágrimas inundam os meus olhos {yõrédâ mayim) é incomum, porque yãrad (“descer”) é geralmentc um verbo intransitivo (não aceita um objeto direto), mas, aqui, ele tem o objeto “água” (lit., do meu olho, do meu olho desce água). A ocorrência dupla de “meu olho” acrescenta ênfase, embora esteja faltando em alguns manuscritos e pode ser um acréscimo. Não há ninguém para consolar ou restaurar o espírito de Jerusalém. Jerusalém permanece na ne¬ cessidade tanto de consolo emocional como de sobrevivência física depois da destruição da cidade, em 586 a.C. O lamento meus filhos estão desampara¬ dos mostra a preocupação paterna natural com os filhos, já que é mais difícil ver os filhos sofrendo do que passar pelo próprio sofrimento. Isso destaca a profundidade do desespero quando a cidade está cercada e depois é tomada pelo inimigo. A vitória do inimigo sobre Jerusalém é outra razão para a intensa agonia expressa nesse versículo.
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Angústia, por Elizabeth Barrett Browning (1844) Eu lhe digo, a angústia sem esperança é impassível;
Que somente homens incrédulos pelo desespero, Ensinados pela metade em agonia, pelo ar da meia-noite Esmurram o trono de Deus em alto acesso De gritos e reprovação. Plena desolação, Na alma, como no país, descansa o puro silêncio Debaixo do ofuscante olhar vertical Do absoluto céu. O homem de coração profundo expressa Angústia pelo morto em silêncio como a morte Bem como uma estátua monumental Em eterna guarda e imóvel dor Até sucumbir ao pó embaixo de si. Toque-o; as pálpebras de mármore não estão molhadas: Se pudesse chorar, poderia levantar-se e sair.
■ 17 Pê. O retrato de Jerusalém (Siáo) no versículo 17 é o de uma mulher com as mãos estendidas pedindo socorro e consolo. Esse estender das mãos ( pêrêsâ ) para buscar consolo é necessário por causa da mão estendida do ini¬ migo durante a conquista (1.10, “o adversário saqueia”) e do estender da rede (1.13, “armou uma rede”). As mãos também eram estendidas (levantadas) du¬ rante a oração (Is 1.15; Jr 4.31). Usando um vocabulário diferente ( nãtãh ), Deus, em outras passagens, estendeu a Sua mão em julgamento (Is 5.25) e es¬ tendeu o Seu braço para salvar (Dt 4.34). O Senhor foi creditado com a destruição de Jerusalém anteriormente no poema (1.5,14), mas o versículo 17 diz que Ele “mandou” (decretou, siwwâ) que os vizinhos de Jacó se tornassem seus adversários. Em certo sentido, essa determinação veio porque Judá desobedeceu à ordem que Deus deu ao Seu povo (essa conexão é explícita na versão NVI de 1.18, mas “ordem” não está no texto hebraico desse versículo). É pelo decreto do Senhor que Jerusalém, o único lugar santo do Senhor, tornou-se impura no mundo (veja v. 8). H 18 Tsade. A primeira parte do versículo 18 é uma declaração da justiça do Senhor e a confissão do pecado de Judá. Judá não havia sido justo, mas o Senhor é justo ( saddiq) ou está à direita (veja 2 Cr 12.6; Dn 9.14; Ne 9.33). Ele fez a coisa certa no relacionamento da aliança, enquanto Judá não fez. Judá
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não só negligenciou seu relacionamento com Deus, mas também seus profetas e sacerdotes derramaram “o sangue dos
justos” (4.13).
Saddiq (Justos) O radical da palavra hebraica para justos é usado fora da Bíblia, no sentido de uma posição ou um comportamento que se conforma com um padrão. Na Bíblia, esse padrão pode ser a Lei ou alguma outra regra relacionada a um relacionamento. Por exemplo, Jacó foi justo quando agiu honestamente com Labão sobre a divisão do rebanho (Gn 30.33). Judá falhou em ser justo quando não permitiu que Tamar se casasse com seu filho (Gn 38.26). Estar correto ou fazer a coisa certa também se aplica à Lei, que está posta em um relacionamento de aliança entre Deus e Israel. A justiça de Deus é vista como a Sua fidelidade para com a aliança (SI 9.4,5) (NIDOTTE 3.744-769).
Os versículos 9 e 11 clamam ao Senhor para que veja a aflição de Jeru¬ salém, mas, aqui, no versículo 18, são os povos que são chamados para que ouçam e olhem. Esse é um pedido para olhar com piedade, embora seja mais provável que Judá fosse olhado com desprezo pelas nações vizinhas (veja v. 7). O Targum considera eu me rebelei contra a sua ordem como uma afirmação do rei Josias, que não foi ordenado a lutar contra o Faraó Neco (por cuja mão encontrou sua morte em 609 a.C.). Logo, o Targum considera que o pecado de Josias tenha contribuído para a queda de Jerusalém, e que o livro de Lamenta¬ ções contenha os lamentos de Jeremias acerca disso (2 Cr 35.23; Brady, 2003, p. 39,40). A declaração de que minhas moças foram para o exílio aparente¬ mente contradiz a afirmação de 1.4 de que as moças ainda estão entristecidas na cidade (embora a Septuaginta diga “arrastadas para longe” no versículo 4). Da mesma forma, os jovens enviados para o exílio, nesse versículo, já haviam sido “quebrantados” no versículo 15. B 19 Cof. O versículo 19 transmite a traição dos aliados de Jerusalém. Cha¬ mei os meus aliados, mas eles me traíram é uma justiça poética para a traição de Judá à aliança com o Senhor. Os países vizinhos mal poderiam ter vindo de¬ fender Jerusalém contra o poderoso império da Babilónia, e todos os que tinham
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um tratado com a Babilónia teriam evitado uma aliança com Judá.Judá também tinha esse tratado, mas atraiu a ira da Babilónia ao recusar-se a pagar os tributos (que era um dos termos do tratado). Então, Judá condenou a traição dos outros, embora tivesse traído tanto Deus como a Babilónia. A palavra hebraica para aliados é, literalmente, amantes (lamé'ahãbay)-, isso poderia significar outros
deuses ou relacionamentos inapropriados com outras nações. O Senhor deve¬ ria ter sido o amado de Judá, e não os outros deuses ou as outras nações (veja
1.2). Os sacerdotes e os líderes devem ter sido pessoas de alto padrão na co¬ munidade e os últimos a passarem fome na crise do cerco. Todavia, as coisas estavam tão ruins que eles não conseguiam encontrar pão para comer. Existe uma aparente contradição aqui com 1.4, que fala dos sacerdotes gemendo, e não perecendo. Esse é o primeiro relato de que as condições estavam tão ruins que resultaram em morte (veja v. 11). I 20 Rêsh. O Senhor novamente é chamado para observar o desespero de Judá no versículo 20 (veja v. 9,11). A palavra angustiada é a mesma usada para “inimigos” em 1.5,7,10,17 ( sar). A angústia de Judá é por causa de seu inimigo, Babilónia. A frase no meu coração me perturbo é, literalmente, meu inte¬ rior está no tumulto (mê'ayhõmarmãru). A palavra para tumulto ou perturbo ( hõmarmãrâ) é usada em outros lugares para água fervente ou águas borbulhantes. No pensamento hebraico, os órgãos do corpo, incluindo o coração, representavam o trono da emoção, embora o coração fosse frequentemente considerado o órgão do pensamento e da força de vontade (a função do cére¬ bro não era entendida). As palavras no meu coração enfatizam a totalidade da angústia. Tenho sido muito rebelde sugere outra confissão. A palavra rebelde ( mãrâ) é semelhante a “amargo” {mãrar), que parece encaixar-se melhor no contexto (veja a Septuaginta). Existe alguma ambiguidade na frase: Lá fora, a espada a todos consome; dentro impera a morte. Literalmente, as palavras falam de “rua” (mihús ) e “casa” ( babbayit ). Mais precisamente, a espada estava fora das portas da cidade, enquanto a fome reivindicava vidas (Jr 14.18; Ez 7.15). De forma metafórica, havia um perigo físico (lá fora), enquanto, psico¬ logicamente, o estresse do cerco estava tirando toda a coragem e até o desejo de viver (dentro da cidade). H 21 Sin e Shin. O versículo 21 retorna ao tema da falta de consoladores. A ordem do alfabeto hebraico permite esse poema dar seguimento ao convite para
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“ver”, no versículo 20, com o convite para “ouvir”, no versículo 21. Isso presume uma força imperativa para “ouvir”, juntamente com as versões gregas e siríacas. O texto hebraico tem o indicativo “eles ouviram”, que também faz sentido. Esse primeiro poema tem ambos os clamores ao Senhor para notar as angústias de Judá e as afirmações sobre o que as nações que observavam estavam fazendo (fracassando em ajudar ou consolar). E, assim, o lamento é repetido: Não há ninguém que me console. O versículo 21 continua: Todos os meus inimi¬ gos sabem da minha agonia. A palavra agonia {rã 'ãtí) também é usada para mal ou impiedade. As nações vizinhas teriam ouvido a angústia de Judá, mas também sabiam de suas más ações, especificamente de sua rebelião contra a Babilónia e, talvez, até do clamor dos próprios profetas de Judá anunciando sua
rebelião contra o Senhor. A última linha do versículo 21 menciona o dia que anunciaste, que pode ser o Dia do Senhor que os profetas anunciaram (veja o comentário em 1.12). O versículo 21 termina com um desejo de que as nações se tornem como Judá na experiência do julgamento do Senhor. Essa justiça divina será a fonte do consolo para Judá, que, no presente momento, sobrevive sem o consolo de nin¬ guém. Para que eles ficassem como eu, naturalmente, combina com o versí¬ culo seguinte, que invoca o julgamento sobre as nações. H 22 Tau. O poema encerra-se com um desejo para que o mesmo destino sobre¬ venha aos inimigos de Judá. A oração pelo julgamento de Deus sobre os inimigos é ffequentemente encontrada nos salmos de lamentos. Na oração pela vingança nos salmos de lamentos e em Lamentações, existe um reconhecimento implícito de Deus como o juiz de todos os que praticam o mal. Jerusalém exige o julga¬ mento imparcial de Deus sobre os seus inimigos do mesmo modo pelo qual Ele trouxe o julgamento sobre Jerusalém. Muitos dos profetas proferiram oráculos contra as nações estrangeiras - não por vingança, mas para trazer justiça, não só pelos crimes contra Israel, mas também pelos crimes contra outras nações (Amós, Isaías, Jeremias, Ezequiel). O poema acopla essa convocação da justiça com o re¬
conhecimento de culpa de Judá. O lamento encerra-se com uma expressão de desespero (os meus gemidos são muitos e o meu coração desfalece) para motivar Deus a responder rapi¬ damente à crise de Jerusalém. A profundidade da emoção expressa aqui tem
induzido intérpretes a pensarem que o livro de Lamentações foi escrito logo após o desastre de 586 a.C. (veja a Introdução).
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A PARTIR DO TEXTO
Sofrimento Lamentações 1 introduz os sofrimentos de Jerusalém, que é o tema do li¬ vro inteiro. O sofrimento da cidade é superlativo (v. 12), é a causa das lágrimas intermináveis (v. 2), está sem consolo (v. 21) e é resultado do pecado (v. 22). Essa expressão de dor é uma reação saudável e convida o leitor/ouvinte a par¬ ticipar dos sofrimentos, mas isso não é a única resposta bíblica. Isaías 40 55 convoca consoladores (40.1; 49.13; 51.3,12; 52.9), e o NT traz significados para os sofrimentos de Cristo e convida à alegria Seus seguidores que também sofrem (Rm 8.18; 2 Co 1.5).
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Justiça Lamentações lamenta o sofrimento de mulheres e crianças inocentes, e, no entanto, atribui o sofrimento ao pecado (v. 22). Essa explicação para a impiedade se desfaz se o castigo é comensurável com o crime (Bergant, 2003, p. 72). A queda de Jerusalém resultou na rebelião de Zedequias contra os senhores babilónios. Essa decisão teve um impacto em todo o seu reino, em soldados e expectadores, inocentes e culpados. Às vezes, é apropriado atribuir o sofrimento ao pecado (quer seja o seu próprio quer o de outros) e, às vezes, não. O NT convida-nos a aliviar os sofrimentos dos outros pelos meios práticos e a esperar o dia do julgamento, quando a justiça será feita.
Reclamando com Deus Reclamar com Deus parece tão antinatural para um cristão como parecia natural para o crente do AT. Os salmos de lamento começam com uma recla¬ mação a Deus e são a mais extensa categoria no livro de Salmos. As reclamações nos lamentos são expressões significativas de sofrimento. Reclamar com Deus é um profundo ato de fé e representa uma expectativa de que Deus agirá na causa da justiça. É um passo em direção à cura e à restauração. As expressões variadas, repetidas e um tanto desconjuntadas de dor e sofri¬ mento nesse capítulo ecoam as indescritíveis e devastadoras tragédias humanas que testemunhamos no mundo hoje. Nós também ouvimos em nosso mundo os clamores e as reclamações daqueles que sofrem os solitários e os abandonados,
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os que estão feridos e traumatizados pelos trágicos efeitos da pobreza, da vio¬ lência e da guerra. Os desolados de Jerusalém convidam a Igreja para ver, ouvir e entrar no mundo contemporâneo do sofrimento e, então, tornar-se um lugar onde o quebrantado de coração e o abandonado encontrem cura e consolo.
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II. POEMA DOIS: A NUVEM DA IRA DE DEUS (2.1-22) POR TRÁS DO TEXTO O primeiro poema prepara o palco para a situação enfrentada por Jerusa¬ lém; o segundo (cap. 2) concentra-se na causa: a ira de Deus. O sofrimento é descrito com mais detalhes, e há também um convite para que Deus observe (e aja). Esse poema contribui para um gradual crescimento que encontra seu
clímax no terceiro poema (cap. 3). O capítulo 2 foi classificado como uma canção fúnebre por Gunkel, mas, assim como o capítulo 1, não há anúncio de morte algum nem convite para luto, embora o poema comece com “como” [ARC] (um elemento comum das canções fúnebres) (1933, p. 95). Ele realmente compartilha características com os lamentos da cidade: a ira de uma deidade (ex.: 2.1,22); a deidade como ini¬ miga (2.4,5); a deidade abandonando o templo (2.7); a deidade determinando a destruição (2.8,17); e a lamentação do muro (2.8; McDaniel, 1968, p. 203205).
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Os artifícios literários do capítulo 2 incluem adição e deixas (Bergant, 2003, p. 56). O poema começa c termina com a ira de Deus (inclusão), con¬ firmando, assim, o tema que é enfatizado pela repetição do vocabulário de ira. Existem deixas ligando a maioria dos versos, por exemplo, a palavra Senhor liga os versículos 1 e 2; a palavra Jacó, v. 2 e 3; a palavra fogo, v. 3 e 4; a palavra
inimigo, v. 4 e 5. Esse artifício (chamado concatenação) é também usado em Amós 1 2 (Paul, 2002, p. 60). O capítulo 2 pode ser esboçado como segue: A nuvem da ira de Deus (2.1-12) O que posso dizer-lhe? (2.13-19) Veja, ó Senhor! (2.20-22)
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NO TEXTO
A. A nuvem da ira de Deus (2.1-12) ■ 1 Álef. O versículo 1 assinala a ira de Deus como um tema importante no capítulo 2. A primeira palavra é “como” [ARC], assim como nos capítulos 1 e 4. Isso fornece a primeira letra do alfabeto hebraico {âlef) para o formato do acróstico. O lamento começa com a imagem da cidade de Sião coberta com uma nuvem - a nuvem da ira do Senhor. A frase cobriu (...) com a nuvem é a única ocorrência da forma verbal de nuvem na Bíblia hebraica {yã íb). Ge¬ ralmente, as nuvens que estão associadas a Deus são positivas, mas, aqui, não (Êx 19.9; 34.5; 1 Rs 8.10,11). A execução e o resultado da ira de Deus são declarados no restante do versículo 1. A ira de Deus é mencionada 11 vezes em Lamentações, incluindo seis ocorrências no capítulo 2. Em Sua ira, Deus lançou por terra o esplendor de Israel, assim como Babilónia e Tiro foram derrubados de seus lugares altos (Is 14.12; Êx 28.17). A ira de Deus é manifesta ainda mais em Sua falta de lembrança de Seu escabelo. O estrado dos seus pés é Jerusalém (ou talvez a arca da aliança). É, nesse caso, uma designação positiva (isso pode ser negativo, veja Sl 110.1). Em Isaías 66.1, o céu é descrito como o trono de Deus, e a terra como o Seu escabelo. A arca do concerto é o escabelo de Deus em 1 Crónicas 28.2. Deus não se lembrou de Sião implica que Ele se lembra dos pecados dela. O que está operando agora não é a compaixão, o perdão e a misericórdia de Deus, mas a ira trazida por causa da lembrança dos pecados. O verbo lembrar (zãkar) envolve não só se lembrar de alguém, mas tomar uma atitude.
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■ 2 Bêt. O versículo 2 continua a descrever a humilhação de Judá. O reino inteiro, com todos os seus príncipes, suas habitações e suas fortalezas, o Senhor devorou em Sua ira, sem mostrar compaixão alguma ao povo de Judá. As ha¬ bitações (ou pastagens) ficam em contraste com as fortalezas (SI 23.2; Am 1.2; Keil, 1873, p. 383). Tudo é destruído. O vocabulário para ira é expandido neste versículo com a palavra “furor” [ARA] (bé ebrãtô, também em 3.1). Devorou {billa ) é uma palavra-chave no capítulo 2 (2.5,8,16; veja Jn 1.17). I 3 Guímel. O retrato da ira de Deus é intensificado no versículo 3 com a frase ; No acender da sua ira (lit., ira ardente; veja 1.12). Todo o poder é uma referência a todos os símbolos de força. Um boi fica em tremenda desvantagem se não tem força. A força de Israel se foi completamente; o versículo 17 usa essa mesma imagem para mostrar o aumento da força do inimigo (veja 2.17; 1 Sm 2.10; SI 112.9; também SI 75.4,5; Jr 48.25). O Midrash aplicou a metáfora da força a dez entidades em Israel: Abraão, Isaque, José, Moisés, Torá, o sacerdó¬ cio, os levitas, os profetas, o templo e Israel (Brady, 2003, p. 99).
Dois touros em Te Kowhai Ellesmere Alteza Real ("Roydon”) era o macho dominante na fazen¬ da da família Bennett e mantinha a ordem no curral. Quando foi ficando velho, um novo touro, Ellesmere Rotokauri Lad ("Buddy"), foi introduzido à turma. Buddy foi amadurecendo, ficou grande e forte e começou a de¬ safiar o touro dominante e até a autoridade humana. Uma situação que poderia ter levado à fatalidade. Para igualar a situação, um veterinário foi chamado para cortar os chifres de Buddy. Depois da operação, ele marchou em direção a Roydon, com aquele seu desafio ameaçador, sem saber que seus chifres se foram. Roydon defendeu o seu espaço, e Buddy tentou enganchá-lo com seus chifres, mas nada conectou. Ele foi chegan¬ do mais perto, até que suas feridas abertas se chocaram contra a cabeça de Roydon. Buddy imediatamente se afastou em dor. A ordem tinha sido reestabelecida no curral.
Deus tornou Israel fraco ao retirar a Sua mão direita. A mão direita iyéminô) de Deus representa o Seu poder, o qual Ele usou para proteger Israel no passado (Êx 15.6; SI 10.12). Em um momento crítico, quando a Babilónia invadiu Judá, Deus retirou a Sua mão direita e permitiu que o inimigo prevalecesse. A nação
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está sofrendo por causa da ira de Deus e também por Sua falta de auxílio e suporte. O versículo 3 termina com uma comparação da ira de Deus com um fogo ardente que consome tudo em seu caminho. Os profetas, frequentemen¬ te, usaram o fogo como uma metáfora de destruição, e nações inimigas, muitas usaram fogo nos tempos antigos para destruir as cidades que atacaram (ex.: Ai, Js 8.19). A metáfora do fogo ardente (kê es lehãbâ) aqui intensifica a imagem da destruição. ■ 4 Dálet. O lamento retrata Deus como um inimigo armado que está no caminho da destruição. O termo inimigo, mencionado seis vezes em Lamen¬ tações, até este ponto, para uma nação destruidora, é usado aqui para Deus ( ôyéb, também em 2.5). Deus é também descrito com o sinónimo adversário (.késãr), usado sete vezes, até este ponto, para invasores. O relacionamento de aliança significa que Deus deveria ser um amigo, mas, porque Judá quebrou a aliança, Deus tornou-se um inimigo. Deus está como um guerreiro preparando o Seu arco para a batalha. Essa imagem é usada em Salmos (7.12; 77.17; 144.6) e na arte do antigo Oriente Próximo (Bergant, 2003, p. 60). Para preservar a função do arco, a corda só era colocada quando estava na hora da caçada ou da batalha. Deus está prestes a usar a sua arma contra Israel, pois Ele já preparou o seu arco. O versículo 4 termina com a repetição de Deus derramando a sua ira como fogo sobre a tenda da cidade de Sião (usando uma nova palavra para ira, lit., calor, hãmãtô). 15 He. O versículo 5 novamente enfatiza a função reversa de Deus (veja v. 2). Há um jogo de palavras com prantos e lamentações, que possuem um som si¬ milar {ta 'ãniyyâ wã’ãniyyâ). “Luto e gemido” é uma tradução apropriada para esse jogo de palavras (Meek, 1956, p. 18). ■ 6 Vav. O versículo 6 descreve a destruição do templo e de suas imediações (sua morada e seu local de reuniões) como se fosse um jardim. Não está claro aqui o que significa a expressão como um jardim. Um jardim ou um parque pode estar crescido demais ou pode estar bem cuidado. Talvez a imagem aqui seja a de destruir um jardim que cresceu demais. A Septuaginta diz “como uma videira” {kêgepen), no lugar de jardim {kaggan), o que pode referir-se à nature¬ za que a videira tem de espalhar-se (assim o prédio foi espalhado e destruído), ou isso pode referir-se à videira que foi podada. A destruição do templo signi¬ ficava o fim da celebração das festas fixas e dos sábados. Uma das festas fixas era Sucote, a Festa dos Tabernáculos (ou das Tendas), que acontecia no fim das colheitas de verão. Os fazendeiros moravam em tendas temporárias ou em cabanas nos vinhedos e nas oliveiras durante a época da colheita para proteger a safra contra pássaros e ladrões. Elas também serviam como memorial da época vezes,
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em que viveram em tendas nómades no deserto antes de entrar em Canaã. A palavra traduzida como morada ( sukkô) parece uma variante da palavra usada para essas cabanas e o nome da festa (Is 1.8; Jó 27.18). Sõk é usado para a mo¬ rada de Deus nos Salmos 27.5 e 76.2. Em vez de proteger sua morada e seu local de reuniões ( mô 'ãdô), Deus permitiu que fossem destruídos como um daqueles abrigos temporários (Bergant, 2003, p. 62). O resultado foi uma in¬ terrupção na adoração e na celebração das festas que o próprio Deus ordenara. A destruição de Jerusalém e do templo é um sinal da rejeição de Deus ao rei e ao sacerdote, os guardiães do palácio e do templo. O grande furor de Deus trouxe o fim da vida social, política e religiosa de Judá. ■ 7 Zain. O versículo 7 continua o tema da destruição do templo. Os inimi¬ gos estão de posse do altar que Deus rejeitou. Eles tomaram o controle do santuário que Ele abandonou. A frase entregou aos inimigos mostra o en¬ volvimento ativo de Deus no trágico evento de 586 a.C. O que o povo agora ouve no templo não são gritos de júbilo e celebração, mas gritos de vitória do inimigo como se fosse época de festa (Keil, 1873, p. 389). O Targum mostra um vislumbre de esperança de Deus interpretando os dias de festa como Pás¬ coa. O Targum parece implicar que Deus livraria o Seu povo novamente, como havia feito no êxodo, quando a primeira Páscoa foi celebrada (também 2.22;
Brady, 2003, p. 126).
fl 8 Hêt. O versículo 8 muda a atenção para os muros e as muralhas em torno de Jerusalém, que foram destruídos por Deus em Sua determinação de der¬ rubar a proteção da cidade. Duas metáforas são usadas. Uma é a imagem do Senhor medindo a cidade como um agrimensor faria antes de um projeto de demolição (veja também Am 7.7,8,17). A outra é a personificação de muros e paredes, em que estes lamentavam porque eram incapazes de proteger Je¬ rusalém e foram derrubados pelos babilónios. Em Jeremias 31.39, a linha de medir é uma metáfora para a restauração, e não para a destruição (também em Zc 1.16). A reclamação aqui também é que Deus não retirou sua mão des¬ truidora de Jerusalém. Ele realizou isso entregando a cidade nas mãos de seus inimigos (1.7; 2.4,7; 5.8). A mão do Senhor deveria ter protegido Jerusalém, mas Ele “retirou a sua mão direita” de proteção (veja v. 3). Isso permitiu que o inimigo erguesse a mão e obtivesse a conquista (1.10). fl 9 Tét. As metáforas para destruição continuam no versículo 9. As portas de Jerusalém caíram por terra, portanto, não puderam mais conter o inimigo. As trancas que mantinham as portas de madeira fechadas Ele quebrou e destruiu (veja Am 1.5, onde uma tranca de porta quebrada é uma metáfora para a con¬ quista). As portas e as trancas quebradas indicam que a cidade está vulnerável
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e aberta à destruição pelo exército invasor. O versículo 9 também retrata a exis¬ tência de uma cidade sem liderança política, sem a Lei e sem as visões de Deus. A invasão inimiga acarretou o exílio da liderança política (rei e líderes), o fim da vida nacional sob a direção da Lei (a lei já não existe) e o fim da revelação de Deus (seus profetas já não recebem visões do Senhor). A liderança foi
exilada para diferentes nações. A lei (tôrâ ) refere-se às instruções de Deus para a vida em Sua terra (Dt 28.36). A lei já não existe provavelmente significa que a lei perdera a sua eficácia, e Judá não se beneficiara mais da aliança. A lei escrita foi ignorada, e a palavra falada de Deus pelos profetas também cessou. A perda destes significava o fim da vida segura de Judá na terra. B 10 Iode. O livro de Lamentações começa com uma cidade solitária, como uma viúva. Aqui, no versículo 10, os líderes da cidade de Sião sentam-se no chão em silêncio. Sentar-se no chão em silêncio é uma demonstração de tristeza e angústia (veja Jó 2.13). Em sua tristeza e angústia, os anciãos da cidade não tinham palavras para consolar o povo; eles não tinham uma palavra de direcionamento. O pó e as vestes de lamento são trajes de luto e representam o oposto de ungir a cabeça com óleo e vestir roupas finas (Js 7.6; Ez 27.30,31; Jó 2.12,13). As jovens da cidade também participaram na demonstração de angústia, encur¬ vando a cabeça em vergonha e humilhação (veja Is 58.5; Jó 10.15; SI 3.3). B 11 Caf. O versículo 1 1 muda para a primeira pessoa. A expressão de an¬ gústia é tamanha que os olhos não conseguem mais chorar. Essa é a primeira expressão aberta da emoção do narrador. A frase minha alma está atormen¬ tada ( minhas entranhas se agitam), de 1.20, é repetida aqui. O meu coração (meu fígado) se derrama pela terra expressa a intensidade da dor e da angús¬ tia. Em outro lugar, as entranhas são derramadas na terra no sentido literal, quando alguém é esfaqueado (2 Sm 20.10), mas, aqui, o fígado é derramado na terra como uma metáfora para angústia. A palavra para fígado é, literal¬ mente, />«ÿ0 ( kãbêd), já que o fígado era considerado o órgão mais pesado e estava relacionado com as palavras “glória, honra”. Existe não somente uma tristeza emocional expressa nesse versículo, mas também a perda da glória e da honra. O versículo 10 já transmitiu a ideia de Jerusalém abaixando a cabeça com vergonha. O restante do versículo 11 declara a razão para a dor e a angústia do poeta: Meu povo está destruído, porque crianças e bebés desmaiam pelas ruas da cidade. O narrador vive em um mundo de dor; ele não só testemunha a dor, mas também a experimenta em sua própria vida. B 12 Lâmed. A luta das crianças e dos bebés foi introduzida no versículo 1 1, e, agora, o versículo 12 documenta o sofrimento e a confusão deles enquanto
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clamam às suas mães, dizendo: Onde estão o pão e o vinho? O pão e o vinho representam a fonte básica de nutrição que sustém a vida. O poeta pinta um vívido quadro da vida das crianças esvaindo-se nos braços de suas mães. O re¬ trato dos filhos morrendo nos braços das mães invoca uma tremenda simpatia pelas crianças morrendo e suas mães impotentes, que são devastadas pela inca¬ pacidade de manter seus filhos vivos (veja O’Connor, 2002, p. 37). Os filhos morrendo, nesse versículo, segundo O’Connor, representam o futuro da nação (2002, p. 1041). O narrador lamenta, porque não vê esperança alguma para o futuro da nação.
B. O que posso dizer-lhe? (2.13-19) B 13 Mem. No versículo 13, o narrador fala diretamente com Jerusalém e expressa sua incapacidade de oferecer qualquer consolo. Ele não tem palavras para consolar aquele sofrimento incomparável. A ferida de Jerusalém é tão profunda quanto o oceano. O versículo 13 termina com uma pergunta sem resposta: Quem pode curá-la? Deus é o curador de Israel (Êx 15.26), e o con¬ solo e a cura devem partir dele. I 14 Nun. Profetas como Jeremias expuseram o pecado de Jerusalém, mas o versículo 14 ataca os falsos profetas que deram visões falsas, inúteis e enga¬ nosas. Jeremias encontrou falsos profetas como Ananias, que predisse que o exílio duraria apenas dois anos (Jr 2.8; 5.31; 14.13,14; 23.11; 28.3). Ele recla¬ mou que a mensagem de Ananias carregava o fardo da prova, porque o pecado do povo clamava por guerra, e não por paz. O poeta faz Jerusalém lembrar-se de que esses profetas falharam em expor os pecados de Jerusalém e, também, em evitar o seu cativeiro (ou “restaurar a sua sorte”, veja ARA). Expuseram o seu pecado é, literalmente, descobriram (gillâ ); o radical desse verbo também significa ir para o cativeiro. Porque os profetas falharam em descobrir [glh ) os pecados de Jerusalém, a cidade foi “exilada” {glh) para a Babilónia (1.3; 4.22). A tradução alternativa, “restaurar a sua sorte” (ARA), implica um atraso na restauração da sorte de Judá por causa dos falsos profetas (Provan, 1991, p. 74). ■ 15 Sâmeq. A cidade desolada de Jerusalém é objeto de zombaria, ridicularização e hostilidade. As estradas para Jerusalém, que deveriam estar cheias de peregrinos alegres atendendo às festas anuais, estavam vazias (1.4), exceto por aqueles que passavam ocasionalmente por ali. Esses transeuntes, a quem Jerusa¬ lém apelava por consolo (1.12-16), zombavam da reputação perdida da cidade que outrora era a perfeição da beleza, a alegria de toda a terra. Bater palmas,
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menear a cabeça e zombar (sãrqâ ) são expressões que transmitem hostilidade (Provan, 1991, p. 74). A trágica reversão da sorte de Jerusalém não evoca com¬ paixão e consolo, mas apenas ridicularização e zombaria de seus antigos aliados e amigos. H 16 Pê. O versículo 16 registra o escárnio dos inimigos de Jerusalém. Ranger os dentes pode expressar escárnio (SI 35.16) ou hostilidade (SI 112.10; Jó 16.9; Provan, 1991, p. 75). Os inimigos de Jerusalém alegam: Nós a devoráramos; isso foi o que o Senhor fez com Jerusalém (veja o v. 2). Os inimigos esperaram
pelo dia da destruição de Jerusalém e, agora, alegram-se nele. A ordem alfabética do acróstico muda nesse ponto {pe ayin em vez de ayin pe-, também nos capítulos 3 e 4); isso induziu os eruditos a sugerirem um erro do escriba, uma ordem alternativa ou uma técnica poética para retratar a mu¬ dança da posição de Jerusalém no mundo, de seu lugar de honra ao seu atual lugar de humilhação (O’Connor, 2002, p. 40). H 17 Áin. A soberania de Deus é transmitida claramente no versículo 17. A destruição de Jerusalém mostra que Ele cumpriu a sua palavra, que há muito tinha decretado. Jeremias havia recentemente profetizado sobre a destruição de Jerusalém, mas os pronunciamentos anteriores vieram de Miqueias, no oita¬ vo século a.C. Deuteronômio e 1 Reis também falaram das consequências da desobediência à aliança. As ameaças do oitavo século não se materializaram, já que Ezequias seguiu os conselhos de Isaías e evitou a crise assíria em 701 a.C. (o reino do norte não escapou). Isso demonstra a natureza condicional da sua palavra, que há muito tinha decretado. H 18 Tsade. Uma vez que a lista dos que não podiam ajudar (profetas, tran¬ seuntes, inimigos) acabou (v. 14-17), o foco mudou para a oração pela ajuda de Deus (v. 18). Outras entidades não puderam ajudar, porque a ferida veio do Senhor (v. 17), e somente Ele poderia curar. O coração do povo interrompe o discurso direto a Sião. O sentido de muro da cidade de Sião é enigmático, e algumas traduções deixam a palavra muro de fora. O versículo 18 implica que Deus, que abandonou Jerusalém, pode responder novamente, em miseri¬ córdia, quando vir a intensa agonia transmitida pela expressão corram como um rio as suas lágrimas. As pessoas devem chorar dia e noite, assim como Jeremias chorou pelo seu povo (Jr 9.1). ■ 19 Cof. O versículo 19 continua o convite para a oração. As vigílias noturnas são os três períodos de tempo que marcam a passagem da noite (Jz 7.19; 1 Sm 11.11). Mãos haviam zombado do destino de Jerusalém no versículo 15, e, agora, o versículo 19 convida as mãos para levantarem-se em 276
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uma postura comum para oração e louvor. Em vez de lágrimas como um rio (v. 18), deveria haver orações derramadas do coração como água. A oração é para alívio, para as crianças que sofrem de fome nas esquinas de todas as ruas. O Targum interpreta isso como um convite ao arrependimento e para passar as noites estudando as escritas judaicas (Brady, 2003, p. 56). A linha final do versículo 19, às vezes, é apagada (desnecessariamente) pelos eruditos, porque torna esse versículo mais longo do que os outros (veja também 1.7).
C. Veja, ó Senhor! (2.20-22) H 20 Rêsh. O personagem muda no versículo 20, mas o tema da ira de Deus continua. No versículo 19, o narrador convida à oração, o que Sião faz nos ver¬ sículos 20-22, mas sem qualquer confissão ou qualquer pedido de alívio. Este é simplesmente um convite: Olha, Senhor, e considera (Bergant, 2003, p. 78). Pedir a Deus que olhe é o mesmo que lhe pedir para agir. Quando o Senhor agiu em favor de Hagar, ela o chamou de “o Deus que me vê” (Gn 16.13). O que segue é uma acusação contra Deus, um dos elementos do lamento (Sl 22.1; 42.9; 88.14). Deus é acusado pelo desastre e até pelas ações das mães que foram forçadas a cometer atos impensáveis. As perguntas retóricas no versículo 20 pedem a resposta “não”. As mulheres não deveriam comer os próprios filhos, e os profetas e os sacerdotes não deveriam ser assasinados. O rei Acabe rasgou as suas vestes quando soube que os bebés estavam sendo comidos quando Sa¬ maria fora sitiada (2 Rs 6.28-30), embora O’Connor pense que pode não haver uma ocorrência literal em Lamentações 2.20, mas um aviso de que as maldições da aliança de Deuteronômio 28.53 estariam cumprindo-se (veja também Jr 19.9; Lm 4.10) (2002, p. 42). A pergunta em 2.20 reflete a condição estrema do cerco. Uma cidade sitiada pelo inimigo tinha o abastecimento cortado, às vezes, durante anos, resultando em uma severa fome e inanição. H 2 1 Sin e Shin. O versículo 21 volta ao tema dos versículos 5-8 e liga as pre¬ sentes condições de morte e destruição à ira de Deus. Ninguém na cidade está isento da ira dele: velho e jovem, macho e fêmea. Jovens e velhos espalham-se em meio ao pó das ruas sem que haja um enterro apropriado. ■ 22 Tau. O capítulo 2 encerra-se com o retorno ao tema de um dia de fes¬ ta. Jerusalém reclama que Deus, que convida para as celebrações dos dias de festa, fez uma convocação contra os terrores por todos os lados (veja Jr 6.25; 20.4,5,10). Isso significa medo em vez de alegria, tristeza em vez de celebração, morte em vez de vida e desespero em vez de esperança. Os peregrinos deveriam chegar para as festas em Jerusalém, mas, ao contrário, as ruas estavam vazias
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(Lm 1.4), e os zombadores enfileiravam-se nas ruas (2.15). Em volta da cidade inteira, o que o povo via eram atos aterradores e destruidores do inimigo. Nin¬ guém escapa nem sobrevive ao dia da ira do Senhor. A PARTIR DO TEXTO
A ira de Deus A ira de Deus é um tema impopular no cristianismo contemporâneo, no qual o foco é predominantemente o amor, a misericórdia e a graça de Deus. Todavia, Lamentações 2 repetidamente acusa Deus de ira e usa um vocabulário variado para fazer isso (“engoliu, rasgou, derrubou em desonra, cortou todas as forças, retirou a mão direita, queimou, consumiu”; Wood e McLaren, 2006, p. 364). O amor e o ódio são menos pessoais em hebraico e têm mais a ver com as reações apropriadas em um relacionamento. Contudo, a palavra “ira” mostra o envolvimento pessoal e emocional de Deus em Sua ação. Essas acusa¬ ções ajudam a trazer a situação claramente em foco, mas, talvez, elas também exponham as ações de Deus como um distanciamento de Seu verdadeiro ser. O povo de Judá admite o erro e reconhece a ira de Deus em seu sofrimento. No entanto, a ira de Deus não é irracional. O poeta afirma, mais tarde, que “não é do seu agrado trazer aflição e tristeza” (3.33). A ira de Deus e as acusações contra Deus (2.20-22) não destroem o rela¬ cionamento com Ele. Essas acusações fluem da profundidade da dor e do so¬ frimento, mas não acusam Deus de infidelidade. O povo é que tem sido infiel, e, quando outras tentativas de alívio falham, ele volta-se para Deus, buscando
consolo e cura.
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III. POEMA TRÊS: EU SOU O HOMEM (3.1-66) POR TRÁS DO TEXTO O livro de Lamentações alcança o clímax no capítulo 3 com um retrato de sofrimento muito pessoal e intenso, e também com uma linda confissão do amor e da bondade de Deus. Juntamente com a soberania de Deus, essa é uma grande causa para a esperança, e o poema termina com um extenso apelo para que Deus aja. Os poemas seguintes (cap. 4 e 5) descem dessas alturas para uma esperança mais temperada que denuncia o desespero subjacente. Gunkel classificou o capítulo 3 como um lamento, embora não haja invo¬ cação ao nome de Deus nem voto de louvor ou sacrifício (1933, p. 95). Existe uma oração pedindo ajuda (v. 55,56) e uma expressão de louvor (v. 22-25). Os elementos de ataque sem causa (v. 52) e a determinação de destruição por uma deidade (v. 37) são comuns aos lamentos da cidade (McDaniel, 1968, p. 204,206). O capítulo 3 é o único poema com uma estrutura tripla nesse acróstico. Cada linha nesse terceiro poema encaixa-se no padrão do acróstico, de forma
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que há três versos começando com álef, crês começando com bêt, e assim por diante. Assis identifica a razão para isso como um sinal de que o capítulo 3 con¬ tém a mensagem principal do livro (foi planejado mais cuidadosamente, como o acróstico detalhado mostra) (2007, p. 724). O capítulo 3 pode ser esboçado como segue: Eu tenho visto a aflição (3.1-20) Fé, esperança e amor (3.21-36) Nós pecamos e nos rebelamos (3.37-34) Ouça a minha petição! (3.55-66)
NO TEXTO
A. Eu tenho visto a aflição (3.1-20) 11-3 Álef. O terceiro poema começa com uma narração em primeira pessoa da destruição de Jerusalém. O foco dos versículos 1-3 está no que Deus fez para o homem {geber), que descreve a si mesmo como alguém que viu a afli¬ ção. Geralmente, era Deus quem via e agia (1.9). Nesse caso, ver concentra-se em experimentar (Provan, 1991, p. 4). O homem pode ser o narrador ou um morador típico, mas vários intérpretes identificaram-no como Jeremias, Josias, Jeoaquim ou Zedequias (Bergant, 2003, p. 82). Provavelmente, esse homem representa Israel, da mesma forma que Sião é personificada nos capítulos 1, 2 e 4, especificamente, Israel no exílio (existem também semelhanças com o servo sofredor de Isaías; Middlemas, 2006, p. 523). A palavra homem {geber) vem do radical “ser forte, poderoso” e é usada para qualificar um homem valente, que defende mulheres, crianças e outros que não conseguem defender-se (ex.: Jr 41.16; BDB 149). Esse guerreiro poderoso agora observa pateticamente, pois ele mesmo não consegue escapar (Lm 3.7), muito menos proteger o seu povo. O seu próprio sofrimento é insuportável (Bergant, 2003, p. 82,83). O versículo 1 usa a metáfora da vara ( sébef ) para expressar a ira de Deus. A vara fazia parte do equipamento do pastor de ovelhas, mas os reis viam-se como pastores do povo, e a vara era estilizada como cetro (veja SI 45.6; 125.3). Para as ovelhas, a vara é um artigo de conforto (SI 23.4), mas, para o animal selvagem ou o inimigo, era uma arma para temer-se (em Êx 21.20, ela é usada para bater nos escravos e, em Pv 22.15, para disciplinar os filhos). Jerusalém deveria ter sido consolada pela presença da vara de Deus, mas, em vez disso, ela 280
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de disciplina contra a cidade (veja Is 10.5). Esse e outros elementos levam van Hecke a descrever 3.1-6 como um “anti-salmo 23” (2002, p. 264). O homem reclama que Deus o impeliu e o fez andar na escuridão (v. 2). O verbo impelir ( nãhag) é usado para a ação de um pastor (1 Sm 30.20) e também para Deus (Dt 4.27). A vara de Deus foi usada para levar Jerusalém para longe, então, cm vez de encontrar pasto e água (SI 23.2), o divino Pastor a conduziu a andar em trevas (veja Am 5.18; SI 23.4). A luz foi o primeiro ele¬ mento da criação de Deus em Génesis 1 e, como tal, representa a Sua ordem no mundo, ao contrário do caos da escuridão na qual Jerusalém agora deve andar. As palavras na escuridão, e não na luz são idênticas à profecia de Amós 5.18, que avisava que o Dia do Senhor seria de “trevas, e não de luz”, um aviso que agora se realiza em Jerusalém, como aconteceu para o reino do norte de Israel em 722 a.C. (veja Lm 1.12 para o Dia do Senhor). Andar na luz é uma metáfo¬ ra positiva no Salmo 119.105, na qual o caminho é iluminado pela Palavra de Deus, a Palavra que Jerusalém rejeitou e, por isso, agora, deve andar em trevas, tropeçando e sem direção. No versículo 3, o homem reclama que Deus voltou a Sua mão contra ele o tempo todo. Renkema relaciona esse voltar de mão com os constantes movi¬ mentos das mãos necessários para conduzir uma carruagem, dando a impressão do Senhor como “o condutor de uma carruagem, correndo de um lado para ou¬ tro, em alta perseguição a um prisioneiro” (veja 1 Rs 22.34; 2 Rs 9.23) (1998, p. 355). Voltar a mão pode ser uma expressão idiomática para um tapa no rosto (veja Am 1.8; Is 1.25; Jr 6.9; Zc 13.7; Jó 16.10; SI 81.14; Paul, 2002, p. 58). ■ 4-6 Bêt. A angústia física e emocional do homem é o foco dos versículos 4-6. Deus fez com que a sua pele e a sua carne envelhecessem e quebrou os seus ossos (v. 4). O termo envelhecessem inclui a ideia de desgastar ( billâ). Quebrou os ossos é apropriado para uma cidade que, finalmente, foi invadida pelo exército conquistador. Essas expressões podem ser metáforas, entretanto, já que esse tipo de linguagem é comum nos lamentos (Mq 3.1-3; SI 38.3; Provan, 1991, p. 85). O versículo 5 descreve a perseguição de um homem, não pelo exército ini¬ migo, mas por Deus. Jerusalém é a cidade que Ele sitiou de amargura e de pesar devido a presença dos babilónios. Deus fez o homem “andar em escuridão” (v. 2) e também habitar na escu¬ ridão (v. 6). A imagem aqui é a do Sheol, o lugar semiconsciente dos mortos, já que a comparação é feita com os que há muitos morreram. O vocábulo para tornou-se um instrumento
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escuridão (mahsãk ) aqui é raro, usado apenas sete vezes no AT, incluindo o Salmo 143.3, que Renkema considera ser dependente desse versículo (veja SI 88) (1988, p. 358). H 7-9 Guímel. O homem concentra-se em sua dificuldade como um cativo acorrentado nos versículos 7-9. Ele é rodeado por um muro e atado a pesadas correntes, para que não tenha liberdade de movimento (v. 7). A palavra pesa¬ das está relacionada à palavra “glória”, que o homem perdeu debaixo das cor¬ rentes da servidão. O versículo 8 indica que Deus não só cercou o homem com um muro, mas também rejeitou a sua oração. Ele está severamente restringido e confinado, isolado e abandonado por Deus. O versículo 9 continua o tema da falta de liberdade do homem; Deus impediu o seu caminho com blocos de pedra e fez as suas sendas tortuosas, para que não pudesse escapar da pri¬ são na qual ele vive. Provérbios 3.6 promete caminhos retos para aqueles que conhecem o Senhor. O radical da palavra tortuosas ( 'ãwâ) está relacionado à iniquidade ( 'ãwõn), uma das palavras para pecado no AT. O que Deus fez bom as pessoas torceram ou perverteram. Isso significa que a vida não terá mais a facilidade do caminho reto e suave, mas será difícil como um caminho tortuo¬ so. Um caminho tortuoso é a consequência natural de uma vida tortuosa, uma vida fora do relacionamento correto com o Senhor. ■ 10-12 Dálet. Os versículos 10-12 utilizam a metáfora de um ataque de um animal e uma cena de caçada para comparar o ataque do Senhor contra o ho¬ mem. O urso e o leão, no versículo 10, são metáforas que retratam Deus como um predador à espreita, esperando para atacar e destruir sua presa. O tema do ataque animal continua no versículo 11. Deus arrancou o homem para fora do seu caminho, deixando-o abandonado. Não havia alguém para resgatar Jerusalém do ataque de Deus contra a cidade. A palavra usada para despeda¬ çou-me ocorre somente aqui, no AT, e o significado é incerto. O versículo 12 descreve o homem como um alvo para as flechas de Deus. O verbo usado na frase preparou o seu arco é da mesma raiz que “caminho”, no versículo 11; isso transmite a ideia de um arqueiro pisando em seu arco a fim de encaixar a corda (veja 2.4). H 13-15 He. Os versículos 13-15 descrevem o que Deus fez ao homem para tornar a sua dor insuportável. O versículo 13 continua o retrato de Deus como um arqueiro que atingiu o coração (lit. rins; bêkilyôtãy ) do homem (veja 1.20; Jó 19.27; Pv 23.16). Bergant identifica quatro nuances de uma flechada nos rins: é uma ferida interior, profunda; atinge o centro da vida, um golpe fatal; ela atinge o centro da emoção, um golpe emocional; e os rins estão atrás, é um
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golpe surpresa por trás (2003, p. 85). No versículo 14, o homem descreve a si mesmo como um motivo de riso para o seu próprio povo o tempo todo. Parece estranho que os israelitas rissem do sofrimento deles mesmos, e alguns manuscritos hebraicos (e siríacos) traduzem isso como “todos os povos”, o que faz melhor sentido (Provan, 1991, p. 87; veja também Jr 20.7). Deus não só fe¬ riu o homem e o transformou em motivo de riso, mas também o encheu de er¬ vas amargas e fel ou absinto. Absinto representa amargura ou veneno. Amós condenou seus ouvintes por transformarem a justiça em absinto (Am 6.12). A referência é a uma planta conhecida por um gosto forte, amargo (veja Lm 3.19; Dt 29.18; Jr 9.15; 23.15). ■16-18 Vav. O homem continua a sua reclamação nos versículos 16-18. Deus o subjugou e o fez sofrer uma dor excruciante. Dentes quebrados e pi¬ soteado pelo chão fornecem vívidas metáforas para o sofrimento no versículo 16. A palavra para quebrou ( wayyagres) é encontrada aqui e no Salmo 119.20, e a palavra pisoteou ( hikpisani) é encontrada somente aqui, no AT. Não está claro o que significa quebrar os dentes com pedras. A referência pode ser so¬ bre comer algo desagradável (Lm 3.15; Pv 20.17) ou sobre humilhação (veja Lm 3.29; SI 72.9). Outra possibilidade é que os versículos 15 e 16 retratem o oposto da hospitalidade; um anfitrião oferecendo comida, bebida e pousada inaceitáveis (sobre pedras ou pó; Provan, 1991, p. 89, citando Kraus). Bergant sugere que o agressor parece ter empurrado o rosto do homem “no chão, que¬ brando os seus dentes nas pedras” (2003, p. 86). A sugestão de Calvino de que eram pedrinhas escondidas no alimento é consistente com as ervas amargas do versículo anterior e também com as práticas antigas de processamento do alimento, que eram menos eficientes em manter as impurezas fora do alimento (1563, p. 401; Harrison, 1973, p. 224; Goldman, 1946, p. 86). A Septuaginta segue isso ao traduzir pisoteou-me no pó como “alimentou-me com cinzas”. O enlutado que lança pó/ cinzas/ terra sobre si mesmo poderia facilmente atingir com isso a boca, causando desconforto aos dentes. Esse versículo deu origem ao costume de comer um pequeno pedaço de pão salpicado de cinzas antes do jejum Nove de Av, que comemorava a queda de Jerusalém (Cohen, 1983, p.
196). O homem não apenas sofreu dor e humilhação, mas também foi privado da paz (v. 17). A tradução tirou-me a paz, no versículo 17, segue a voz passiva do verbo na versão siríaca e na vulgata. O verbo hebraico está na ativa: Você rejeitou a minha alma da paz. Isso é inconsistente com o contexto, que não se dirige a Deus de forma direta (Keil, 1873, p. 410).
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No versículo 18, o homem lamenta a perda de seu esplendor ( nishi), uma palavra que é usada em outro lugar somente para Deus (veja 1 Sm 15.29; 1 Cr 29.11). Ele esperava receber boas coisas do Senhor, mas a sua esperança desapa¬ receu. Ele não vê a expectativa de nenhuma coisa boa vinda de Deus. ■ 19-20 Zain. Os versículos 19-21 concentram-se naquilo que o homem se lembra ou traz à mente. Lembro-me pode ser tomado como um imperativo (como na vulgata e na siríaca), pedindo a Deus para lembrar-se da condição do homem. Suas dolorosas memórias incluem sua aflição e seu delírio. Ele tam¬ bém se lembra da amargura e do pesar {la 'ãnâ ivãrõ V), que formam uma com¬ binação encontrada também no versículo 15 e em Amós 6.12. Essas memórias tornam o homem desanimado e desmotivado. A linguagem da alma abatida de alguém é frequentemente encontrada nos Salmos (Sl 42.5,6,11; 43.5; 44.25).
B. Fé, esperança e amor (3.21-36) B 2 1 Záin. Há um ponto de inflexão nesse poema das profundezas do deses¬ pero, no versículo 18, para a renovação da esperança, no versículo 21, o qual O’Connor chama de “uma calmaria durante uma tempestade violenta” (2002, p. 44). Essa esperança é detalhada nos famosos versículos adiantes. No meio da lembrança de sua aflição, ele também se lembra disso tudo da fidelidade de Deus celebrada nos versículos seguintes. B 22-24 Hêt. O homem concentra-se em suas experiências positivas com Deus nos versículos 22-24. No versículo 22, ele coloca a sua esperança no gran¬ de amor {hesed) do Senhor. A forma plural do substantivo {hasdé) transmite a demonstração do amor do Senhor por meio de ações concretas de bondade (veja 2 Cr 32.32). Ele relembra o seu público de que, por causa da hesed do Senhor, o povo (“nós”) não é (somos) totalmente destruído (consumidos). A salvação do povo não se apoia em sua justiça, nem mesmo no arrependi¬ mento, mas no próprio caráter de Deus. Essa visão de Deus como Salvador é uma reversão da Sua imagem como o guerreiro divino apresentado em outros lugares (1.5,15,17; 2.1,2,5,7,17; 4.11,16; Middlemas, 2006, p. 518). O homem também afirma que as misericórdias do Senhor {rahãmãyw, v. 22) são inesgo¬ táveis. A palavra hebraica rahãmãyw (que está relacionada a “útero”) transmite a ideia de misericórdia e ternura que as mães demonstram aos seus filhos. No meio de suas aflições e peregrinações, o poeta encontra esperança na imensidão da hesed do Senhor e em Sua infalível misericórdia.
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Hesed (aliança de amor) A palavra hebraica hesed é tão rica que os tradutores usam tradu¬ ções múltiplas para transmitir o seu significado. Ela possui o sentido bᬠsico de lealdade, fidelidade, bondade, benignidade, misericórdia e amor. Essa palavra é frequentemente usada para o amor e a fidelidade de Deus, especialmente Sua lealdade e Seu amor ao seu parceiro de aliança, Israel. A hesed do Senhor define o relacionamento da aliança com Israel. Ele permanece fiel à aliança e ao Seu compromisso de amar Israel, ainda que em meio ao pecado, à desobediência e à quebra de contrato por parte de Israel. Essa palavra também é usada para a lealdade e a fidelidade no relacionamento entre os seres humanos, tal como a aliança entre Davi e
Jônatas (1 Sm 20.8) (NIDOTTE 2.211-218).
No versículo 23, o homem afirma que Jerusalém, mesmo em meio às suas aflições, continua a experimentar o amor e as misericórdias do Senhor, que se renovam a cada manhã. Isso é uma evidência da grandeza da fidelidade ( ’émúnà?) do Senhor para com Israel, o Seu infiel parceiro da aliança. A frase grande é a tua fidelidade é “a jubilosa aclamação que vem dos lábios daquele cujo coração foi atingido pelas setas da aljava de Deus” (Varughese, 1992, p. 680). O homem que, anteriormente, reclamava da perda de sua porção terres¬ tre, agora, declara que a sua porção é o Senhor (v. 24). Essa declaração refle¬ te a linguagem de Números 18.20. Em Israel, os sacerdotes não tinham terra própria, mas, ao contrário, eles tinham um relacionamento especial com Deus (veja também Dt 10.9; 32.9; SI 16.3,6). Esse relacionamento especial com Deus é mais importante para o homem do que a herança da terra. O versículo 24 termina com o convite do homem ao seu público para pôr a esperança no Senhor, usando o vocabulário de esperança encontrado também no versículo 21 ( ôhit). Aguardar, no AT, envolvia expectativa e esperança, demonstrando uma fé ativa no Deus que tem o poder de transformar a angústia em alegria, o desespero em esperança, a aflição em cura, e a tristeza em consolo. Os versícu¬ los 22-24 estão faltando na Septuaginta, talvez devido a erro dos escribas por causa da semelhança com os versículos 21b e 24b (um erro chamado homoteleuto; BHQ). ■ 25-27 Tét. Dentre os versículos 25-27, todos possuem, nas frases iniciais, a palavra bom (tôb), que tem tét como a primeira letra em hebraico. O foco
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desses versículos está na bondade de Deus. Na opinião de O’Connor, “a bonda¬ de exige repetição para tornar-se convincente” (2002, p. 51). O Senhor é bom é uma afirmação fundamental da fé de Israel (SI 1 00.5). O homem começa com essa afirmação e a aplica àqueles que colocam a esperança no Senhor e esperam nele com paciência. Essa é a resposta apropriada para o sofrimento e o deses¬ pero, porque Deus é bom. O primeiro plano de ação a ser colocado em prática é esperar tranquilo (v. 26), que é uma expressão de esperança e confiança. Essa atitude está de acordo com o servo sofredor de Isaías 53.7. Aquilo que a comunidade aguarda e espera é a salvação do Senhor. No contexto da invasão babilónica, a salvação que Judá espera é o livramento e a restauração militar e política do exílio para a sua terra natal. O conceito de salvação do AT é muito concreto, já que os antigos israelitas não pensavam no céu como um lugar para onde as pessoas iam (somente Deus mora lá). Essa salvação finalmente veio quando a Pérsia subjugou a Babilónia e permitiu que Judá retornasse à sua terra em 538 a.C. No versículo 27, o homem procura estimular o público para que este su¬ porte o jugo, isto é, que ele suporte a disciplina e o sofrimento do Senhor (Longman, 2008, p. 369). Em Lamentações 1.14, o poeta reclama do jugo do pecado, ou do fardo e do castigo do pecado, que Deus colocou sobre o pescoço de Judá. H 28-30 Iode. Os versículos 28-30 dão continuidade à resposta adequada de um homem que está tremendamente em sofrimento. Ele deve ficar sozinho e em silêncio. Essa expressão transmite a ideia de uma solidão imposta a si mesmo e o fim da resistência, da reclamação e da rebelião. O versículo 28 ecoa a linguagem de 1.1, na qual a cidade “fica sozinha”. Ficar sozinho aqui, porém, é uma demonstração de esperança e confiança cm Deus, e não de rejeição e abandono. A frase ponha o seu rosto no pó (v. 29) é uma chamada à renúncia e à humilhação em meio ao sofrimento. Essa humildade e essa paciência são re¬ comendadas, porque talvez ainda haja esperança. Embora ninguém mereça a graça de Deus, o arrependimento é a chave para a restauração do relaciona¬ mento com Ele. O versículo 30 transmite o pensamento da submissão voluntária, da acei¬ tação do abuso e do insulto dos outros, e também da disposição de ser cheio de desonra. A identidade de quem o quer ferir não está clara; pode ser aquele inimigo (Babilónia) ou os inimigos em geral.
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Isaías 50.4-8 O Soberano Senhor deu-me uma língua instruída,
para conhecera palavra que sustém o exausto. Ele me acorda manhã após manhã, desperta meu ouvido para escutar como alguém que é ensinado. O Soberano Senhor abriu os meus ouvidos, e eu não tenho sido rebelde; eu não me afastei. Ofereci minhas costas para aqueles que me batiam, meu rosto para aqueles que arrancavam minha barba; não escondi a face da zombaria e da cuspida. Porque o Senhor Soberano me ajuda, não serei constrangido. Por isso eu me opus firmemente como pederneira, e sei que não serei envergonhado. Aquele que defende o meu nome está perto. Quem então trará acusações contra mim? Encaremo-nos um ao outro! Quem é meu acusador? Que ele me enfrente!
I 31-33 Caf. Os versículos 31-33 continuam o tema da esperança. O ho¬ mem afirma que o sofrimento é por pouco tempo, porque o Senhor não o desprezará para sempre (v. 31). O desejo supremo de Deus não é desprezar o Seu povo ou afligi-lo para sempre (veja SI 103.9; Êx 20.5), portanto, os peca¬
dores têm esperança do perdão e da restauração do relacionamento com Deus. O versículo 32 retrata Deus não apenas como aquele que traz tristeza, mas também como aquele que mostra compaixão. No versículo 23, o homem afirmou a grandeza da fidelidade de Deus. No versículo 32, ele declara: Tão grande é o seu amor infalível (hesed). A lealdade da aliança de Deus não tem fim. Portanto, existe esperança para Jerusalém. O homem que confessa sua fé em Deus como o Deus da compaixão, da fidelidade e do amor da aliança, agora, acha o sofrimento de Jerusalém algo que Ele não fez acontecer de propósito (não é do seu agrado trazer aflição; v. 33). A aflição não vem do coração dele ( millibô, do seu agrado). Como é típico dos lamentos cm Salmos, o homem desloca-se do desespero para a esperança e da dúvida para a fé e a confiança, nos versículos 1-33. Nós podemos também
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dizer que, na luta teológica do homem entre o desespero e a esperança, a espe¬ rança vence; em sua luta entre a dúvida e a fé, a fé vence. Todavia, Lamentações se deslocará desse clímax no capítulo 3 para uma posição mais temperada no fim do livro. H 34-36 Lâmed. Os versículos 34-36 começam com uma série de infiniti¬ vos. Todos esses infinitivos representam opressões de Jerusalém por seus ini¬ migos: Esmagar (...) todos os prisioneiros da terra, negar a alguém os seus direitos (...) impedir a alguém o acesso à justiça. O versículo 36 termina com esta pergunta: Não veria o Senhor tais coisas? Isso implica que Deus, que vê a injustiça do inimigo, agirá para trazer justiça. Isso poderia também ser lido como uma declaração: “O Senhor não vê (não viu ou aprovou)”. No entanto, o contexto dos versículos 34-36 sugere uma pergunta.
C. Nós pecamos e nos rebelamos (3.37-54) ■ 37-39 Mem. Os versículos 37-39 concentram-se nas ações soberanas de Deus e voltam a atenção para longe das ações opressoras dos inimigos nos ver¬ sículos 34-36. As calamidades que vieram sobre Jerusalém aconteceram como foram decretadas por Deus. Deus tem o poder de falar e de fazer acontecer (veja Gn 1). O Altíssimo Deus é a fonte tanto das desgraças como das bên¬ çãos (v. 38). No monoteísmo rígido do AT, a fonte do mal não pode ser colo¬ cada sobre o diabo. Na maior parte do AT, a calamidade (rã') vinha da mão de Deus. Amós pergunta: “Ocorre alguma desgraça (rã ') na cidade, sem que o Senhor a tenha mandado? (3.6). Lamentações 3.39 liga as calamidades de Jerusalém ao seu pecado (hãtã ’). Essa é a primeira menção explícita do pecado nesse poema (veja 1.22; 5.7; 5.16). O sofrimento de Jerusalém é o resultado do pecado, e, então, a reclamação dá lugar à submissão, a qual leva o povo à esperança. ■ 40-42 Nun. A reflexão e o exame de si próprio e a confissão e o arrependi¬ mento dominam os versículos 40-42. A primeira pessoa do plural nesses versí¬ culos indica que a comunidade está falando aqui. O versículo 40 começa com a decisão da comunidade de examinar e por à prova os seus caminhos e termina com uma urgente decisão de retornar ao Senhor. A palavra hebraica para “ar¬ repender” é literalmente retornar ou voltar (súb); ela está ligada à metáfora da vida como uma jornada (uma estrada ou um caminho). Voltar reflete o reco¬ nhecimento de que as pessoas haviam entrado no caminho errado e tomaram a decisão de reorientar sua jornada, a fim de seguirem as instruções do Senhor.
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O versículo 41 é um convite à postura de oração (de penitência e arre¬ pendimento, veja v. 42). No antigo Israel, a oração era realizada com as mãos levantadas (SI 28.2; 63.4). O levantar do coração implica na sinceridade por parte da comunidade adoradora. O arrependimento genuíno é a questão aqui, e não o ritual vazio. Pecamos e nos rebelamos c a confissão de uma comuni¬ dade penitente (v. 42). Nenhum pecado é mencionado de forma específica. A quebra da aliança de Israel envolvia tanto a vida religiosa (idolatria) como a vida social e política (injustiça social e alianças políticas). O reconhecimento público do pecado é a primeira e principal exigência para a experiência do per¬ dão de Deus (veja 2 Sm 12.13). O versículo 42 termina com um lembrete para Deus de que Ele não havia perdoado a comunidade. Isso parece surpreendente¬ mente ousado vindo de pessoas que admitiam: Pecamos e nos rebelamos, mas reflete uma longa tradição do AT que ousa fazer cobrança a Deus por Sua falta de ação (SI 6.3; 10.1; 13.1,2; 22.1; 35.17; 43.2; 62.3; Is 45.15; 49.14; Brueggcmann, 1997, p. 319-222,333). O convite ao arrependimento no versículo 40 é, então, de certa forma, cumprido no versículo 42, que admite a culpa, mas parece menos preocupado em aceitar a responsabilidade e mais preocupado em culpar Deus por ainda não ter perdoado o povo. 143-45 Sâmeq. O homem reclama diretamente com Deus (Tu) nos versí¬ culos 43-45. O versículo acusa Deus de cobrir a comunidade com a Sua ira e de persegui-la. A ira de Deus é um tema importante no capítulo 2. Na expressão te cobriste, o verbo não é reflexivo em hebraico e pode ser traduzido como cobriu-nos de ira, tendo a colocação pronominal de nos perseguiste (Hillers, 1972, p. 59). Apesar do vocabulário do amor, das misericórdias e da fidelidade de Deus nos capítulos anteriores (v. 22,23), o homem agora acusa Deus de não demonstrar piedade (hãmail). O homem reclama que Deus se cobriu com uma nuvem para bloquear a oração da comunidade que é o objeto de Sua ira (v. 44). Deus tapou o ouvido para a oração do Seu povo e tornou a sua oração ineficiente. O cobrir com ira (v. 43) e com a nuvem (v. 44) relembra a nuvem de ira de 2.1.
A nuvem do desconhecimento (séc. 14 d.C.) Essa escuridão e essa nuvem estão, seja como for que você fizer, entre você e o seu Deus, e ficam de forma que você não possa vê-lo clara¬ mente pela luz do entendimento e da razão, tampouco senti-lo na ternura do amor em sua afeição (Underhill, 1946, p. 19).
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O homem continua a acusação contra Deus no versículo 45. Deus fez de Jerusalém a escória (séhí) e o refugo do mundo. A palavra séhi é usada somente aqui, no AT, e parece vir da palavra sãhah, “raspar” (Ez 26.4). Israel antes era um tesouro de Deus, uma nação santa, um reino de sacerdotes (Êx 19.5,6). A presente condição de Jerusalém mostra uma total reversão na atitude de Deus em relação ao Seu povo e à Sua cidade. ■ 46-48 Pê. Duas letras do alfabeto são invertidas nesse ponto do acrós¬ tico ( aín deveria ser antes de pê). O desprezo de Deus para com Jerusalém é a razão pela qual os inimigos tratam Jerusalém com desdém (v. 46; também 1.7,8; 2.15,16; 3.14). O versículo 46 descreve os inimigos com a boca bem aberta contra o povo de Jerusalém. Essa imagem provavelmente transmite a ideia dos inimigos zombando de Jerusalém em alta voz com palavras insolen¬ tes. O versículo 47 continua a descrição do sofrimento de Jerusalém. As du¬ plas de palavras, terror e ciladas [pahad wãpahat), ruína e destruição ihassê t wêhassãber), têm sons semelhantes em hebraico. Isso ajuda a transmitir a in¬ tensidade do sofrimento. A voz do homem no singular retorna no versículo 48. Rios de lágrimas correm dos seus olhos por causa da destruição do seu povo. O sofrimento aqui é pessoal; o homem está desolado por causa da ruína de seu povo. I 49-51 Áin. O choro, nos versículos 49 e 50, tem um propósito além da expressão de angústia; o seu objetivo principal é atrair a atenção de Deus. Os olhos do homem chorarão até que os olhos de Deus se abram para aquele so¬ frimento. Presume-se que Deus agirá quando Ele vir (veja 1.9,11,20; 2.20). O homem deixará as lágrimas rolarem até que Deus contemple dos céus e veja o sofrimento do Seu povo (v. 50). O homem está triste pelo que cie vê na cidade, particularmente pelo sofrimento de todas as mulheres da cidade (v. 51). I 52-54 Tsade. Os versículos 52-54 continuam a descrição das perigosas condições em que o homem se encontra por causa da ira de Deus. O versículo 10 retrata Deus como um urso ou um leão perseguindo o homem, e, no versí¬ culo 52, o homem assemelha-se a um passarinho sendo caçado pelos inimigos, sem motivo (hinnãm). Os inimigos lançaram-no numa cova e tentaram matá-lo apedrejado (v. 53). Lançar alguém numa cova era um castigo ou aprisiona¬ mento comum no AT. José e Jeremias foram ambos lançados em covas {bôr; Gn 37.22; Jr 38.6). A cova também simbolizava o túmulo ou o Sheol (ex.: Is 14.15). Alguém que estivesse preso numa cisterna ou numa cova poderia estar em perigo se fosse afogado pelas águas, o que significava uma morte iminente (v. 54; veja Jn 2, que relata a experiência do profeta quando a água o rodeava).
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O versículo 54 transmite a experiência de uma nação à beira da morte; o perigo de chegar ao fim na terra dos viventes.
D. Ouça a minha petição! (3.55-66)
I 55-57 Cof. Os versículos 55-57 introduzem outra transição no capítulo 3 e sinalizam a conclusão do poema de uma forma positiva. Esses versículos utilizam a letra cof no início de cada verso para enfatizar o convite do homem a Deus {qãrã 'ti no v. 55), Deus ouvindo a voz do homem (qôli no v. 56) e a reação de Deus em ouvir e aproximar-se do homem ( qãrabtã no v. 57). Deus ouviu e respondeu à oração que ele fez das profundezas da cova. A frase ouviste o meu clamor, no versículo 56, deve ser entendida como um impera¬ tivo ( ouça a minha voz), o que é mais consistente com a próxima linha: Não feches os teus ouvidos. A NVI resolve esse problema tomando a segunda li¬ nha como uma citação direta das palavras que foram faladas no passado. Esse pedido procura reverter a situação da oração ineficaz descrita no versículo 44. O versículo 57 relata a resposta de Deus à oração do homem. Essa resposta, não tenha medo, é um anúncio inicial comum dos mensageiros divinos (ex.: Gn 15.1; Jz 6.23). Esse anúncio transmite a mensagem de que Deus já ouvira o apelo e que a salvação estivera a caminho. Essas palavras são as únicas no discurso direto atribuídas a Deus no livro inteiro. H 58-60 Rêsh. O homem começa com um reconhecimento de que o Se¬ nhor assumiu a causa dele (rib, v. 58). A frase tu assumiste a minha causa reflete a imagem da sala de julgamento; os profetas de Israel frequentemente anunciavam o caso do Senhor contra Israel (ex.: Is 3.13). Aqui, rib significa a reclamação do homem que enfrentava o perigo de ser cortado fora da terra dos vivos (v. 52-54). Deus salvou o homem da morte quando interveio como seu defensor e juiz, bem como o seu redentor (v. 58). A metáfora da redenção vem do conceito de “remidor” (gõ ’